Estágios pagos e fiscalização externa são a nova realidade da Ordem dos Advogados

Estágios de um ano com remuneração obrigatória, bem como um órgão externo para avaliar a classe e sociedades multidisciplinares fazem parte da alteração do regulamento das ordens profissionais.

Muito se criticou, muito se falou, alguma coisa mudou. O projeto de lei relativo às ordens profissionais, que altera questões como as condições de acesso a algumas profissões como a de advogado, contabilista ou médico, introduz estágios profissionais remunerados e contempla uma entidade externa para fiscalizar os profissionais, acabou mesmo a ser aprovado pelo Parlamento, a 22 de dezembro. As alterações ao regulamento das ordens profissionais geraram polémica até ao fim, com PSD e PCP a insistirem nas críticas ao texto em declarações de voto orais no final das votações.

Este diploma surge na sequência de inúmeros alertas da Comissão Europeia e da OCDE relativamente ao facto de em Portugal existirem demasiadas restrições no acesso às atividades profissionais, prejudiciais à nossa atividade económica. Alertas que se intensificaram com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que trouxe de novo a questão da desregulamentação das ordens profissionais, incluindo a sua fiscalização por entidades exteriores, também em matéria disciplinar, e o fim do acesso reservado da atividade a profissionais inscritos nas mesmas, como médicos, advogados, engenheiros, economistas, psicólogos, contabilistas, nutricionistas ou arquitetos. Portugal comprometeu-se junto de Bruxelas que a lei relativa às profissões regulamentadas entraria em vigor até ao quarto trimestre deste ano. É um dos marcos que Portugal tem de cumprir para ter acesso ao terceiro cheque do PRR de 2,4 mil milhões de euros.

Segundo dados do Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP), existem atualmente em Portugal 20 ordens profissionais, tendo as duas últimas sido criadas em 2019, a Ordem dos Fisioterapeutas e a Ordem das Assistentes Sociais. Estas ordens regulam a atividade de mais de 430 mil profissionais.

No Memorando de Entendimento da troika — assinado a 17 de maio de 2011 — já constavam medidas destinadas a rever e reduzir o número de profissões reguladas e liberalizar o acesso e o exercício de profissões reguladas. Medidas que contemplavam a eliminação das restrições ao uso de comunicação comercial (publicidade) em profissões reguladas, a revisão e redução do número de profissões reguladas e, em especial, eliminação das reservas de atividades em profissões reguladas que deixaram de se justificar, a adoção de medidas destinadas a liberalizar o acesso e o exercício de profissões reguladas desempenhadas por profissionais qualificados e estabelecidos na União Europeia.

Exigiam também a melhoria do funcionamento do setor das profissões reguladas (tais como técnicos oficiais de contas, advogados, notários) levando a cabo uma análise aprofundada dos requisitos que afetam o exercício da atividade e eliminando os que não fossem justificados ou proporcionais.

Como funcionam os estágios na Ordem dos Advogados?

A Ordem dos Advogados conta com cerca de 35 mil advogados inscritos e é uma das associações públicas profissionais mais antiga (criada em 1927). Estas alterações foram, aliás, denominador comum nos discursos dos sete candidatos a bastonário para as eleições para o cargo que, a 15 de dezembro, elegeram Fernanda de Almeida Pinheiro como líder da classe.

Uma atividade em que os estágios não são remunerados, apesar de a Ordem dos Advogados, só em receitas de estágios com o pagamento da taxa de inscrição, estima receber em 2023 mais de dois milhões de euros (2.153.961 euros) – mais 154 mil euros do que recebeu este ano.

Um estagiário tem de pagar, só no ato da inscrição, 700 euros. A que acrescem mais 300 euros a pagar até cindo dias antes do termo da primeira fase do estágio e ainda mais 500 euros, a pagar até 30 dias antes da data designada para a realização da prova escrita e da de agregação (que dita o final do estágio). Ou seja: do início ao fim do estágio, no espaço de ano e meio, um jovem licenciado tem de pagar dois mil euros. Além da inscrição, o estagiário ainda tem de pagar 15 euros por mês, de quotas à OA.

O que pode mudar, em concreto, para os advogados?

  • Extinção do Conselho Superior da Ordem dos Advogados como órgão jurisdicional e como instância de recurso disciplinar que fiscaliza a disciplina dos advogados;
  • Alteração da composição dos Conselhos de Deontologia que passariam a ser integrados também por não advogados;
  • Pretende-se substituir o Conselho Superior da OA por um órgão de supervisão integrado maioritariamente por não advogados, com poderes em matéria disciplinar e em matéria de regulação do exercício da advocacia;
  • Será então o Estado a determinar como se exerce a advocacia, a determinar o que é e o que não é infração disciplinar;
  • Redução do estágio de advocacia de 18 para 12 meses;
  • Impor a remuneração desses mesmos estágios;
  • As regras do estágio e a avaliação final do estagiário deixam de estar a cargo da OA e dos advogados e passam a ser da competência exclusiva do tal órgão de supervisão, o qual acumulará tais funções com as funções jurisdicionais até agora da competência do Conselho Superior;
  • Este órgão de supervisão será constituído por sete pessoas, sendo apenas três delas advogados (o Conselho Superior tem hoje 21 advogados);
  • E será o órgão que, em exclusivo, se pronunciará sobre as propostas legislativas da Assembleia da República e do Governo;
  • Possibilidade da multidisciplinaridade nos escritórios de advocacia. Ou seja: que consultoras, ateliers de arquitetura, solicitadores (a título de exemplo) possam estar integrados num escritório de advocacia. Esta é uma das medidas mais polémicas, já que podem colidir com o segredo profissional a que um advogado está sujeito;
  • A criação de novas ordens profissionais “é sempre precedida” de audições de associações representativas da profissão em causa e “emissão de parecer de outras partes interessadas”, nomeadamente os conselhos de reitores e dos politécnicos.

“Nenhuma Ordem carece da figura de um provedor para fiscalizar a sua atuação”, diz a futura bastonária

Em declarações à Advocatus/ECO, a advogada que tomará posse a 9 de janeiro como bastonária, Fernanda de Almeida Pinheiro, defendeu que “nenhuma Ordem carece da figura de um provedor para fiscalizar a sua atuação, porque tem órgãos próprios, democraticamente eleitos, que o fazem, com total isenção e independência, e muito menos precisa de ter um provedor, que nem sequer é um membro associado e desconhece totalmente as características da profissão, para garantir a qualidade dessa mesma atuação. Essa é, aliás, uma das propostas avançadas pelo projeto de lei das APP, que nos merece total repúdio, principalmente nos moldes em que está prevista no projeto de lei”.

O ainda bastonário, Luís Menezes Leitão também fez desta questão uma das bandeiras do seu mandato, que termina daqui a 15 dias. Defendendo que “a profissão de advogado é dificilmente compatível com outras profissões, nomeadamente com os contabilistas certificados. Basta ver que os contabilistas certificados não têm sigilo profissional, são obrigados a reportar à Autoridade Tributária, enquanto os advogados têm sigilo profissional, que têm que defender”, explicou. O diploma pode “levar a que os advogados deixassem de ter uma adequada formação, que outros profissionais praticassem os seus atos próprios, ou que a sua regulação fosse feita por pessoas estranhas à Ordem dos Advogados. Nem no tempo do Estado Novo existiu alguma vez uma proposta semelhante”.

Quem votou a favor e quem votou contra no processo legislativo

O texto final juntou as propostas iniciais do PS e do PAN e acolhe algumas propostas de alteração do PSD e do PCP. Foi na quinta-feira aprovado com os votos a favor do PS, Iniciativa Liberal (IL), PAN e do deputado social-democrata Alexandre Poço, que apresentou uma declaração de voto. Contra votaram o PSD, Chega e PCP, Diploma contou ainda com a abstenção do Livre e do BE.

Emília Cerqueira, do PSD, acusou o Governo “atropelos” e de querer com esta alteração legislativa, assente na “chantagem do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR)”, fazer aprovar uma proposta de forma apressada com o objetivo de eliminar alguns obstáculos no acesso às profissões reguladas, que o PSD acompanhou, mas também “eliminar o incómodo de bastonários que lhes possam trazer barulho”.

A social-democrata disse ainda que o texto acarreta o risco de os jovens não terem acesso a estágios, uma vez que a remuneração fica dependente do financiamento de programas que podem ser extintos, acusando também o PS de não ter coragem de assumir o objetivo de querer “acabar com as ordens”.

Já Alma Rivera, do PCP, defendeu que o diploma traz “consequências negativas” inclusivamente para os cidadãos, no acesso aos serviços prestados pelos profissionais abrangidos, e favorece multinacionais, “em forma de sociedades disciplinares”, em detrimento de sociedades de pequena dimensão ou até unipessoais.

Para o PCP, o problema coloca-se também no que foi definido ao nível da composição de órgãos superiores das ordens profissionais, criticando a admissão de elementos externos. Os comunistas consideram também não estar garantida a remuneração dos estágios.

Pedro Delgado Alves, do PS, rebateu as críticas, que se repetem desde o início do debate sobre o diploma na Assembleia da República, afirmando, entre outras coisas, que as críticas insistem em passar a “falsa ideia” de que os órgãos de cúpula, com poderes disciplinares ou sancionatórios, tenham uma maioria de elementos externos, algo só permitido neste diploma em órgãos sem poder decisório, frisou.

O deputado sublinhou ainda que o processo legislativo nesta matéria está “a meio do caminho”, faltando a revisão dos estatutos das cerca de duas dezenas de profissões de acesso regulado.

No texto final foram introduzidas alterações como precisões sobre as taxas cobradas durante o estágio e a possibilidade de serem reduzidas. A duração dos estágios fixa-se em 12 meses, podendo ser maior em casos excecionais. Segundo explicou Joana Sá Pereira na quarta-feira, foram “clarificadas” algumas alíneas do artigo relativo às atribuições das ordens, designadamente o propósito de defesa dos interesses dos destinatários dos serviços.

Outra das alterações introduzidas, mencionou a deputada, foi a aprovação da existência de um órgão disciplinar (não previsto na anterior lei-quadro), que prevê a fiscalização sobre a atuação dos membros das ordens profissionais. A deputada salientou que o texto final do projeto foi o resultado de “mais de 30 audições” e de “mais de meia centena de contributos recebidos” para a elaboração do diploma.

Ainda na quarta-feira, o Conselho Nacional das Ordens Profissionais considerou que houve uma “evolução positiva” no texto final, mas criticou a manutenção de “aspetos não coerentes”, como o órgão de supervisão. Para a CNOP, o preconceito contra as ordens “mantém-se bem presente” em várias disposições do texto aprovado, que considera como sendo um suposto atributo de independência a não filiação numa ordem profissional.

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