Inspetores da ACT tiveram apenas três horas de formação sobre 70 mexidas na lei do trabalho
São dezenas as alterações feitas recentemente à lei laboral, mas a ACT está a dar somente "por volta de três horas" de formação aos inspetores. Sindicato defende que o ideal seriam dois ou três dias.
Do teletrabalho às plataformas digitais, foram dezenas as alterações à lei laboral que entraram em vigor a 1 de maio, no âmbito da Agenda do Trabalho Digno, mas a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) decidiu dar só cerca de três horas de formação aos inspetores responsáveis por fiscalizar no terreno o cumprimento dessas regras. Em declarações ao ECO, a dirigente do Sindicato dos Inspetores do Trabalho (SIT), Carla Cardoso, relata que há quem nem a essas horas tenha ainda tido acesso, já que a formação foi agendada para o período de férias.
“A formação está a durar meio-dia, por volta de três horas, e é via Teams [plataforma digital de comunicação à distância, nomeadamente videochamadas]. É claramente insuficiente”, sublinha a sindicalista.
Carla Cardoso destaca que essa ação formativa abrange todas as alterações à lei laboral que ficaram previstas na Agenda do Trabalho Digno, nomeadamente a criminalização do trabalho não declarado, o reforço das compensações por despedimento, o aumento da remuneração por trabalho suplementar, a flexibilização do teletrabalho e as novas regras do trabalho nas plataformas digitais, que abrem a porta a que os estafetas sejam considerados trabalhadores por conta de outrem, por exemplo, da Glovo ou da Uber Eats.
“Estas alterações levantam uma série de questões novas. Há que equacionar essas questões e encontrar uma interpretação transversal”, entende a líder do SIT, que considera, porém, que em três horas de formação é impossível encontrar essa leitura comum que uniformize a fiscalização em todo o país.
Em contraste, Carla Cardoso defende que seriam precisos, pelo menos, dois a três dias de formação, tendo em conta o número, diversidade e complexidade de mexidas à lei laboral que estão em causa.
Ora, como está, o modelo de formação merece, assim, duras críticas por parte dos inspetores do trabalho, que dizem que, por exemplo, no caso das plataformas digitais – uma das novidades consideradas mais complexas da Agenda do Trabalho Digno – as referidas três horas “pouco ou nada ajudaram”.
Estar a organizar para estes dois meses [julho e agosto], que são por excelência de férias, levou a que muitos colegas não tenham tido ainda formação.
Pior, Carla Cardoso avança que há inspetores que ainda não tiveram qualquer formação, embora a lei tenha entrado em vigor há cerca de três meses. No caso concreto desta dirigente sindical, a formação foi agendada para o período em que estava de férias. Resultado: não conseguiu participar. “Estar a organizar para estes dois meses [julho e agosto], que são por excelência de férias, levou a que muitos colegas não tenham tido ainda formação”, salienta. Em setembro, haverá, então, formação para esses inspetores, acrescenta.
Mesmo sem formação, Carla Cardoso, por exemplo, já esteve no terreno a fiscalizar as novas regras laborais, confessando que tem ainda uma série de dúvidas por esclarecer.
O ECO questionou a ACT e o Ministério do Trabalho sobre a formação dos inspetores do trabalho, mas ainda não obteve resposta.
“Inspeção tem tudo para ser bonita, mas consequências não existem”
Uma das grandes novidades do recente pacote de mexidas à lei laboral é a adaptação do mecanismo de presunção de contrato de trabalho às funções prestadas através das plataformas digitais, isto é, a abertura da possibilidade de os estafetas serem reconhecidos como trabalhadores dependentes das plataformas (ou, pelo menos, de um intermediário).
A aplicação dessa medida, têm avisado os advogados e especialistas, ameaça contudo ser complexa, devido à natureza própria deste tipo de relações laborais. “As plataformas digitais trazem um novo mundo”, admite a líder do Sindicato dos Inspetores do Trabalho.
Ao ECO, Carla Cardoso avança, contudo, que os inspetores, na sua maioria, mesmo com as tais três horas de formação, ainda não conseguem fazer o tratamento dos dados para eventualmente reconhecer o contrato de trabalho, até porque uma mesma pessoa pode ter várias contas em várias plataformas, como estafeta.
“Fazemos o nosso melhor, como sempre”, garante. Mas atira: “Até agora as inspeções, do que tenho conhecimento, não foram consequentes. Pelo que sei, ainda não houve alteração da vida dos trabalhadores”.
Segundo a sindicalista, todas as semanas, os inspetores têm ido para a rua fiscalizar o trabalho nas plataformas digitais, mas ainda não houve nenhum vínculo reconhecido. “A inspeção tem tudo para ser bonita, mas consequências não existem”, ironiza Carla Cardoso, que frisa que, assim, os inspetores estão a ser desviados de outras funções que também mereciam a sua atenção.
De resto, no Parlamento, questionada sobre as novas regras do trabalho nas plataformas digitais, a ministra Ana Mendes Godinho deixou claro que estas “são para cumprir” e que a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) tudo fará para que isso aconteça.
Os estafetas que estejam interessados em ver reconhecido um contrato de trabalho com as plataformas têm, importa explicar, duas opções: podem fazer-se representar por um advogado e avançar com o processo; ou podem pedir à ACT que inspecione e, se forem encontrados indícios de um vínculo, a empresa poderá ser notificada para reconhecer que está em causa um trabalhador por conta de outrem. Por outro lado, a própria ACT pode desencadear o processo (mesmo sem denúncia por parte do estafeta).
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