Plataformas recusam integrar estafetas. Ações abertas pela ACT já estão a chegar a tribunal
ACT abriu mais de mil ações de reconhecimento de contratos de trabalho entre estafetas e plataformas digitais, mas estas têm contestado existência de uma relação de trabalho dependente.
Apesar das notificações enviadas pelos inspetores da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), as plataformas digitais insistem que os estafetas não são trabalhadores por conta de outrem, mas trabalhadores independentes. As ações desencadeadas com vista ao reconhecimento de contrato de trabalho já estão, por isso, a chegar aos tribunais. Em Lisboa, por exemplo, já foram distribuídos mais de dezena e meia de processos, que têm como réus a Glovo e a Uber Eats.
A meio de novembro, a ministra do Trabalho anunciou no Parlamento que já tinham sido desencadeadas cerca de mil ações de reconhecimento de contratos de trabalho entre os estafetas e as plataformas digitais. Mas, entre a abertura dessas ações e os resultados efetivos, há ainda um caminho a percorrer.
Em declarações ao ECO, o Sindicato dos Inspetores do Trabalho (SIT) já tinha explicado que, após notificação da ACT, as plataformas digitais teriam dez dias para regularizar a situação ou pronunciar-se “dizendo o que tiverem por conveniente“.
Findo esse prazo, “sem que a situação do trabalhador se mostre devidamente regularizada, a ACT remete em cinco dias a participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade“, adiantou a estrutura sindical.
Ora, no momento em que Ana Mendes Godinho foi ao Parlamento anunciar as tais mil ações abertas pela ACT, a maioria destas (“a quase totalidade”, segundo o SIT) ainda estava na primeira dessas fases.
Mas, entretanto, esses processos já começaram a chegar aos tribunais, o que significa que, mesmo depois de terem sido notificadas, as plataformas digitais recusaram integrar os estafetas como trabalhadores, considerando que o que está em causa é trabalho independente, e não trabalho por conta de outrem.
“Ou seja, após notificação, a plataforma não reconheceu a existência de um contrato de trabalho com o estafeta“, esclarece o advogado Tiago Cochofel de Azevedo, da Antas da Cunha ECIJA, que ressalva que a plataforma pode sempre afastar a presunção de trabalho, “demonstrando que a natureza do vínculo com o estafeta não é laboral”.
E agora que os processos já estão distribuídos, as etapas que se seguem poderão ser “particularmente céleres”, de acordo com esse advogado. Isto uma vez que “não há realização de audiência de partes“.
Os passos seguintes seguintes são: petição inicial, contestação (isto é, a fase de articulados) e audiência final no prazo de 30 dias. “A celeridade é tal que o juiz pode, inclusive, decidir logo o mérito da causa a seguir aos articulados“, sublinha Tiago Cochofel de Azevedo.
Apesar do “fim meritório”, lei tem falhas
Para o advogado, apesar de ter um “fim meritório”, a nova lei tem falhas. Por exemplo, caso fique demonstrada a existência de contrato de trabalho entre plataforma e estafeta, “passam a ser aplicáveis as normas do Código do Trabalho compatíveis com a natureza da atividade desempenhada“, opção que, na sua visão, gera “incerteza e interrogação“.
“Parece-me que mais do que ver o mundo de modo dicotómico, seria porventura mais adequado reconhecer os diversos tons de cinzento e matizes das modernas relações laborais, prevendo um regime especial e adaptado ao trabalho em plataforma. Forçar a aplicação de um conjunto de normas a uma realidade para a qual não foram pensadas irá certamente trazer desafios exigentes, muitos dos quais evitáveis“, salienta o advogado.
Convém explicar que em maio entrou em vigor um pacote de alterações ao Código do Trabalho, no âmbito da Agenda do Trabalho Digno, que abre a porta a que os estafetas sejam considerados trabalhadores das plataformas digitais, desde que sejam identificados alguns indícios de subordinação. Por exemplo, se a plataforma fixa a retribuição, tem poder disciplinar ou controla a prestação de serviço, pode estar em causa um laço de subordinação.
Da parte das plataformas, a Associação Portuguesas das Aplicações Digitais (APAD) — que junta a Bolt, a Glovo e a Uber — continua a garantir que cumpre “escrupulosamente a lei em vigor” e frisa que “esta não impede o trabalho independente“.
Aliás, os responsáveis assinalam que, segundo um estudo do ISCTE, nove em cada dez estafetas preferem manter a sua atividade de estafeta num regime de freelancer.
“Os estafetas indicam que a flexibilidade e os rendimentos são exatamente as características que mais valorizaram no trabalho através de plataformas. Sendo este o modelo desejado pela esmagadora maioria de estafetas, deve ser preservado e melhorado, não eliminado”, defendeu a APAD em declarações recentes ao ECO.
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