Lagarde “deixa” mercados preverem múltiplos cortes de juros em 2024
O BCE ainda não começou a discutir a descida das taxas de juro e Lagarde manteve um discurso agressivo, mas investidores e economistas continuam a prever uma “mão cheia” de cortes no próximo ano.
Christine Lagarde esteve longe da mudança significativa de discurso efetuada pelo seu homólogo da Reserva Federal, mas a mensagem transmitida pela presidente do Banco Central Europeu (BCE) não foi suficientemente restritiva para investidores e economistas corrigirem a perspetiva de uma “mão cheia” de cortes de juros em 2024.
Foram sobretudo três os fatores que permitem aos mercados continuar a descontar cortes agressivos de juros no próximo ano:
- O BCE alterou a linguagem do comunicado no que diz respeito às expectativas para a inflação. Deixou cair a referência de que era “expectável a inflação permanecer elevada por um período longo e que as pressões domésticas nos preços permaneciam fortes”. Passou a mencionar que “as pressões nos preços permanecem elevadas, sobretudo devido aos custos laborais fortes”, mas estimando uma “descida gradual ao longo próximo ano”.
- O BCE reviu em baixa as previsões para o crescimento da economia da Zona Euro e para a evolução da inflação. Vê o PIB crescer apenas 0,6% este ano e 0,8% em 2024 (em setembro apontava para 1%). O banco central estima ainda que a inflação vai baixar para 2,7% no próximo ano e 2,1% em 2025, ficando abaixo da meta dos 2% em 2026. Em setembro, o BCE antevia uma taxa de inflação de 3,2% em 2024.
- O BCE surpreendeu também com o anúncio de alterações aos reinvestimentos das obrigações que chegam à maturidade e foram adquiridas no âmbito do programa de compra de ativos na pandemia (PEPP). Os reinvestimentos vão baixar numa média de 7,5 mil milhões de euros por mês no segundo semestre até terminarem no final do próximo ano.
Ao alterar o conteúdo do comunicado, o BCE “mata” quase definitivamente a possibilidade de voltar a subir as taxas de juro, algo inédito na mensagem do banco central nos últimos meses. Ao rever em baixa as projeções para a inflação, o BCE reconhece e trajetória benigna do indicador, o que lhe dá maior conforto para aliviar a política monetária e diminuir o nível de restritividade das taxas de juro na atividade económica.
Ao anunciar já o plano para reverter o apoio de 1,7 biliões de euros concedido durante a pandemia, o BCE deixa o caminho aberto para começar a reduzir os juros. Comunicar a redução dos reinvestimentos das obrigações (medida de aperto da política monetária) ao mesmo tempo que sinaliza reduções de juros seria transmitir uma mensagem contraditória aos mercados.
BCE (ainda) não discutiu cortes de juros …
Apesar desta mensagem mais suave por parte do BCE, Christine Lagarde fez questão de utilizar um discurso que continua a ser marcado por alguma agressividade e foco no combate à inflação, deixando de parte o cenário de descida das taxas de juro.
“Não foi discutido qualquer corte de taxas de juro” na reunião do Conselho do BCE desta quinta-feira, assegurou a presidente da autoridade monetária, vincando que “somos dependentes dos dados económicos e não dependentes do tempo”. Uma mensagem claramente distinta da que foi transmitida por Jerome Powell, que admitiu que a Fed já está a debater o timing da descida de juros.
Lagarde manteve a retórica de que “ainda há trabalho a fazer” na luta contra a inflação, que “não chegou a altura de ‘baixar a guarda’” e que entre o fim das subidas de juros e o início dos cortes “existe um planalto de pausas”. A presidente do BCE alertou que a inflação deverá subir em dezembro e os preços vão abrandar de forma mais lenta no próximo ano. Na atividade económica descarta o cenário de recessão, mas reconhece que “os riscos são enviesados para o lado negativo.”
… mas mercados continuam a prever uma “mão cheia” de cortes
Apesar de Lagarde e Powell terem optado por discursos distintos nas conferências após as reuniões de política monetária, a verdade é que os mercados estão a descontar rumos muito semelhantes para a evolução dos juros do BCE e da Fed em 2024.
Apesar do banco central dos EUA ter sinalizado três cortes de juros no próximo ano, os mercados de futuros está a antecipar um alívio acumulado de 150 pontos (seis descidas de 25 pontos base) em 2024, com o primeiro corte a surgir já em março.
A mensagem suave da Fed entusiasmou os investidores, que antes da reunião do BCE chegaram a precificar 165 pontos base de descida de juros da autoridade monetária europeia no próximo ano. As palavras mais cautelosas de Lagarde temperaram esta visão, mas de forma pouco expressiva face ao que era previsto no início da semana.
O mercado está atualmente a descontar uma redução de 140 pontos base nas taxas de juro do BCE, sendo que a probabilidade de a primeira redução surgir já em março continua muito elevada (acima de 60%). A confirmarem-se estas previsões, o BCE baixará os juros cinco ou seis vezes em 2024, ao ritmo de 25 pontos base por reunião, fechando o ano com a taxa dos depósitos em 2,5%. Um nível que é visto como sendo neutral para a atividade económica. Desde que iniciou o ciclo de subida de juros em 2022, o BCE agravou as taxas por dez vezes, num total de 450 pontos base (4,5 pontos percentuais).
As taxas swap, que anteveem a direção dos juros dos bancos centrais, são bastante voláteis e reagem com grande amplitude à publicação de dados económicos e declarações de responsáveis de política monetária. Mas no passado têm sido um barómetro fiel das movimentações das taxas de juro.
Economistas destacam “porta aberta”
Na reação à reunião do BCE, também os economistas alinham na convicção que o banco central vai reduzir os juros a bom ritmo no próximo ano.
“Pensamos que a inflação e o crescimento do PIB vão ficar abaixo das estimativas do BCE para o próximo ano, pelo que antecipamos cinco cortes de juros de 25 pontos base em 2024, com o primeiro a surgir em abril”, refere a Capital Economics. A consultora prevê que a inflação da Zona Euro se situe abaixo de 2,5% no segundo trimestre, pelo que “BCE vai concluir que não é necessário manter a taxa dos depósitos em 4% por mais tempo.”
Mário Martins, analista da ActivTrades, realça que o BCE abandonou a retórica dos “juros altos por muito tempo”, mas ao contrário da Fed “não criou expectativas no sentido da redução dos juros”. Neste contexto, é “expectável que os juros tenham uma descida [em 2024], no entanto tal só deverá começar a ocorrer no segundo semestre”.
Mark Wall, economista-chefe do Deutsche Bank Research para a Europa, destaca que “tirar o anúncio do PEPP do caminho reduz o obstáculo para descidas mais céleres das taxas de juro”, pelo que embora “possa parecer que o BCE não está a seguir o caminho de mudança da Fed, pode ter subtilmente aberto a porta” à redução de juros.
A Bloomberg Economics concorda que a alteração relacionada com o reinvestimento das obrigações pandémicas “abre a porta a que o Conselho do BCE decida descer os juros quando chegar a altura certa”. Acrescenta que “o outlook para a inflação dá ao BCE alguma flexibilidade para o timing do primeiro corte, que pode facilmente ser uma realidade antes de junho”.
Para os economistas do ING, a reunião desta quinta-feira “marca o fim do atual ciclo de subida de juros, mas também mostra que ainda existe um longo caminho antes de o BCE começar a cortar os juros”. O banco dos Países Baixos diz que “é difícil entender como o banco central pode decidir uma reviravolta total da política monetária sem que a inflação baixe da fasquia dos 2%.”
“Pensamos que vai ser necessário uma desaceleração económica mais acentuada e/ou uma inflação abaixo dos 2% de forma sustentada para vermos o BCE reduzir as taxas até ao nível que está a ser precificado pelos mercados (150 pontos base)”, acrescenta o ING, que vê o primeiro corte de juros em junho.
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