Lei do Clima faz dois anos com quase tudo por fazer

De fundamental e bem-feita a inconsequente e platónica. A Lei de Bases do Clima celebra dois anos com aplausos por existir mas apupos pelos atrasos na concretização, com resultados quase nulos.

A Lei de Bases do Clima celebra dois anos desde a sua entrada em vigor, esta quinta-feira. Mas celebrar pode não ser a palavra certa. Enquanto alguns sublinham os méritos de esta lei estar cá fora, muitos reconhecem que o efeito prático está a tardar.

Claramente existe um antes e um depois da lei de bases [do clima]“, considera Miguel Costa Matos, deputado do Partido Socialista que foi coautor da proposta de lei que vingou. O que separa os dois momentos, na sua opinião, é que após a publicação da lei floresceu a “noção clara” de que as alterações climáticas têm de ser prioridade”, e facilitaram-se os consensos políticos, pois ” tornou-se mais difícil ter um discurso contra [a causa climática]”. No entanto, assume, “é frustrante para quem esteve na construção da lei ver tantos dos seus instrumentos por concretizar“.

Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS), concede que a Lei do Clima está “bastante bem feita”, mas aponta um “défice de planeamento, decisão e de ação” e afirma que “não há muita ação governativa que tenha sido baseada na lei do clima”. A associação ambientalista Zero, num comunicado enviado às redações, vai mais longe: apesar de ser uma “lei decisiva” pois “estabelece diretrizes fundamentais para uma abordagem coletiva e integrada”, “os progressos são medíocres”. A velocidade de ação foi “parada, devagar ou devagarinho” e ” muito pouco foi feito nestes dois últimos anos”.

O Governo, cuja liderança está nas mãos de António Costa desde que esta lei nasceu, defende-se afirmando que “os resultados expressivos em matéria climática que o país tem vindo a alcançar, também reconhecidos internacionalmente, estão alinhados com os objetivos centrais da Lei de Bases do Clima“. Neste âmbito, fonte oficial do ministério do Ambiente recorda que Portugal encerrou as centrais a carvão nove anos antes do previsto, e que na última revisão do Plano Nacional de Energia e Clima o Governo antecipou em quatro anos as metas de produção de eletricidade e confirmou o compromisso de acabar a produção de eletricidade com base em gás natural em 2040. Além disso, ” tem havido uma evolução muito favorável da produção descentralizada, além de se ter promovido, como nunca, a eficiência energética, protegendo os mais vulneráveis”, conclui.

Aprovada e publicada em 2021, a Lei de Bases do Clima entrou em vigor em fevereiro de 2022, e é o texto legislativo no qual o país se compromete a atingir a neutralidade carbónica até 2050, e a tentar acelerar esse esforço de forma a estar idealmente concluído em 2045. Ou seja, o objetivo era que nesse ano o país compensasse todas as suas emissões de dióxido de carbono, depois de as ter reduzido ao mínimo possível. O primeiro-ministro reforçou na última cimeira global do clima, a COP28, que 2045 é o verdadeiro objetivo.

Para tal, a lei prevê a criação de vários outros diplomas estratégicos nos quais se concretize o caminho que deve ser percorrido até à meta. É um “diploma assumidamente não autossuficiente“, explica Raquel Freitas, consultora sénior da PLMJ na área de Público e focada em direito do ambiente.

E são vários os diplomas previstos nesta lei que não viram a luz do dia, ignorando o prazo que lhes era imposto. Precisamente a 1 de fevereiro de 2024, era suposto ter-se a apresentação de uma Estratégia Industrial Verde, dos Planos setoriais de mitigação e de adaptação às alterações climáticas e dos Planos regionais e municipais para a ação climática. Dos dois primeiros não há registo, dos últimos verifica-se que a execução está muito incompleta.

Confrontado com o atraso nos planos setoriais de mitigação, o ministério da tutela indica que “os recursos humanos da APA [Agência Portuguesa do Ambiente] estão a ser reforçados, dotando a instituição dos meios necessários para assumir as novas responsabilidades conferidas pelas Lei de Bases do Clima, incluindo a coordenação dos planos setoriais”. Para Filipe Duarte Santos, devia ter sido dada mais prioridade à questão de adaptação às alterações climáticas, pois estão a viver-se “problemas reais” como a escassez de água no Algarve que pediam medidas de resiliência ao invés de medidas restritivas, acredita.

No que toca à Estratégia Industrial Verde, a Zero só vê condições para que esta seja lançada daqui um ano depois do prazo, apesar de a avaliar como sendo “extrema relevância”. O gabinete chefiado por Duarte Cordeiro afirma que já havia sido criado um grupo interministerial para desenhar esta estratégia, e que haviam sido iniciados os trabalhos, mas “no atual contexto político e tratando-se de um documento estruturante, a Estratégia deverá ser elaborada pelo próximo Governo”. Miguel Costa Matos considera que, apesar de este instrumento ser “relevante”, tem sido compensado pelo investimento que tem sido captado a nível europeu nas áreas de sustentabilidade, sobretudo no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência.

Já no que respeita aos planos regionais e municipais para a ação climática, “a falta de apoio por parte do governo central às autarquias na elaboração destes planos, quer ao nível financeiro quer ao de recursos humanos técnicos adequados, traduz-se na impossibilidade de apresentação do plano por parte da maioria dos municípios”, acusa a Zero. À data, apenas 124 dos 308 municípios que existem em Portugal finalizaram este documento. Miguel Costa Matos Concorda que “é importante arranjar maneiras de apoiar e mobilizar” sobretudo pela larga abrangência destes planos, que dão resposta sobretudo do lado da procura e não tanto do fornecimento de serviços.

Neste terceiro ponto, o Governo indica que a Agência Portuguesa do Ambiente publicou orientações para a elaboração dos planos regionais e interagiu com algumas Comunidades Intermunicipais (CIM). “O plano futuro” contemplava a capacitação dos municípios e das comissões regionais através de planos formativos e de acompanhamento.

Fora estes três assuntos que adquirem o rótulo de “fora do prazo” no segundo aniversário da entrada em vigor da lei, são amplamente criticados o atraso na criação de um Conselho para a Ação Climática, um órgão consultivo e independente que supervisionará a aplicação da lei, e do qual dependem alguns dos diplomas, assim como a ausência dos chamados Orçamentos de Carbono. Estes últimos deveriam estabelecer limites quinquenais de emissões de gases de efeito de estufa para o país, mas não existem para o período atual até 2025 nem para 2025-2030.

A eleição do presidente do CAC fica para a próxima legislatura e, quanto aos Orçamentos de Carbono, Costa Matos afirma que o Governo garantiu que estão feitos, mas à espera de um CAC que os valide. Assim, deverão fixar igualmente pendurados.

Numa nota mais positiva, a cumprir a lei do clima está a divulgação de dois relatórios. Um, por parte da Assembleia da República, que apresentou o seu relatório de avaliação do impacte carbónico da sua atividade e funcionamento. Outro, é o relatório anual sobre a exposição ao risco climático do setor financeiro e segurador, apresentado pelo Banco de Portugal e a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF).

Consequente ou inconsequente, eis a questão

O atraso no cumprimento das ações previstas na LBC pode implicar um atraso no alcance das metas a que o Estado Português se encontra vinculado, alerta a consultora da PLMJ. A Zero diz mesmo que os atrasos na implementação desta lei “prejudicam fortemente o correto planeamento e execução da política e ação climática nacional”. Pelo contrário, Costa Matos considera que “não foi por não haver planeamento que deixou de haver atraso na ação climática”, mas reconhece que “esse atraso poder-se-á revelar daqui a uns tempos“, estando dependente da capacidade de recuperar o tempo perdido.

Mas, afinal, se não em sido respeitada, para que serve esta lei? A PLMJ vê-a como “um primeiro passo de uma ação sistematizada”. É neste documento que estão “as linhas mestras das políticas públicas” ligadas ao clima, realça Susana Alberto, associada no Departamento de Administrativo e Contratação Pública da SRS Legal.

Na barricada oposta, está Armando Rocha, professor na Universidade Católica portuguesa e responsável pelo Climate Litigation Lab desta instituição. Considera a Lei do Clima uma “lei para o cidadão ver”, que “cumpriu o seu objetivo simbólico” mas ” não produziu nada de substancial”. Para Carla Amado Gomes, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, esta é “uma lei platónica, ou quase”, apesar de ser fruto de compromissos assumidos junto da União Europeia.

Também cético apresenta-se João Macedo Vitorino, líder da sociedade Macedo Vitorino. “A LBC é uma lei inconsequente, sim“, já que “pouco ou nada acrescenta de concreto ao PNEC, que já é ele próprio pouco conclusivo”.

Na visão deste jurista, qualquer lei sobre clima que tenha resultados práticos passa por desincentivar já quem polui (por exemplo proibindo o uso industrial e o consumo de materiais poluentes para os quais já haja alternativa) e incentivar as boas práticas ambientais (por exemplo, com redução de impostos sobre a atividades climaticamente sustentáveis). “Não há tempo para mais grupos de trabalho, nem para relatórios, estratégias e planos a 10 anos“, remata.

E, de acordo com a avaliação da SRS Legal, não existe penalização prevista para os atrasos. “Não existe legislação que contemple sanções para o não cumprimento dos prazos fixados na Lei de Bases do Clima para a sua regulamentação”, indica. Existe um regime sancionatório previsto na própria lei de bases, mas este debruça-se sobre “ações e omissões danosas que acelerem ou contribuam para as alterações climática” e não sobre a não regulamentação da Lei de Bases.

No entanto, é possível recorrer aos tribunais para “obrigar à emissão das normas em falta e para responsabilização por danos causados”, ressalva. A professora Amado Gomes partilha da mesma interpretação. E a prática já o confirmou. Em novembro do ano passado, a associação ambientalista Último Recurso avançou um processo em tribunal contra o Estado português, por falhar na aplicação da lei de bases do clima.

Ação nas mãos de próximo Governo. Mas há riscos

Nas eleições de 10 de março vai saber-se qual o Governo que terá a responsabilidade de executar — ou voltar a falhar — a Lei de Bases do Clima.

Filipe Duarte Santos mostra-se otimista, “os dois partidos principais de Portugal têm pontos de vista muito semelhantes em relação à necessidade de descarbonizar”, e “em Portugal não temos uma situação comparável a outros países como os EUA. Na Europa há um consenso bastante grande entre várias forças políticas sobre a realidade da mudança climática e necessidade de descarbonização”. No entanto, realça que as alterações climáticas não estão tão presentes no debate político como entende que se justificaria.

Miguel Costa Matos faz uma avaliação semelhante, mas alerta que o crescimento do partido Chega, “abertamente negacionista” acerca das alterações climáticas, é “preocupante” do ponto de vista da ação nesta área.

 

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