Uso dos solos rústicos para habitação exige “cautela”, reconhece setor
Enquanto o setor imobiliário sugere uma abordagem "cautelosa" na aplicação da medida do Governo para fomentar a oferta de habitação, os ambientalistas preferem outras soluções para a habitação.
Do setor imobiliário aos ambientalistas, o potencial em disponibilizar solos rústicos para construção de habitação, uma medida lançada recentemente pelo Governo com o objetivo de aumentar a oferta, é reconhecido. No entanto, apontam vários desafios na implementação da medida, desde a velocidade de execução até ao impacto no ambiente e ordenamento do território.
Enquanto o setor imobiliário sugere uma abordagem “cautelosa”, os ambientalistas preferem outras soluções para a habitação.
A medida em causa, lançada pelo Governo a 10 de maio no âmbito de um pacote com 30 medidas, consiste na alteração da lei dos solos para permitir o uso de solos rústicos para “soluções sustentáveis de habitação”. Estas soluções sustentáveis passam pela criação de habitação a custos controlados para arrendamento acessível, alojamento temporário ou oferta para casas de função para professores, forças de segurança, trabalhadores agrícolas, industriais e setor do turismo.
O solo rústico, explica a ANP/WWF, é aquele que não é urbano e, por isso, não permite qualquer tipo de construção, estando reservado para atividades agrícolas, pecuárias, florestais, conservação, valorização de recursos naturais, entre outros. De acordo com dados da Direção-Geral de Território partilhados pela mesma organização, em 2018 o solo rústico ocupava 94,8% do território continental.
José Cardoso Botelho, CEO da Vanguard Properties, classifica a medida como “ambiciosa” e considera que tem o mérito de “desbloquear terrenos até agora subutilizados para o desenvolvimento habitacional, o que poderia ajudar a atenuar a escassez de oferta”, sendo “uma oportunidade considerável para desenvolvimento, se bem planeado“.
Apesar do potencial que lhe atribui, “é fundamental uma abordagem cautelosa e bem planeada para assegurar que a expansão habitacional em solos rústicos contribua positivamente para a sociedade“, para “evitar a urbanização excessiva e a perda de espaços naturais valiosos”, destaca José Cardoso Botelho.
Luís Filipe Silveira, diretor de Imobiliário da Hipoges Portugal, considera que a medida tem uma “perspetiva interessante para abordar a questão urgente da habitação acessível”, mas salienta também que “merece uma avaliação cuidadosa”, dado os possíveis impactos no setor agrícola e nas economias locais.
Implementação deverá ser demorada
O CEO da Vanguard Properties alerta que a própria eficácia como “resposta imediata” levanta desafios, nomeadamente regulatórios, ambientais e infraestruturais, “que podem prolongar a sua implementação“. Para Luís Filipe Silveira é claro que a medida “não terá efeitos imediatos”, tendo em conta a viabilidade económica para tornar estes terrenos urbanos e para construir as infraestruturas necessárias.
A criação de comunidades em solos rústicos “pode exigir investimentos substanciais em transportes, saneamento e serviços públicos“, alerta José Cardoso Botelho. Recolha de resíduos, fornecimento de água, saneamento e eletricidade são alguns dos serviços que a organização ambientalista Zero aponta como desafiantes para trazer para esta nova organização.
Na visão de Catarina Grilo, responsável da ANP/WWF, “a construção irá demorar tempo a ser planeada, autorizada, e executada, e entretanto, não só estaremos a impermeabilizar solos rústicos, que têm outra finalidade (agrícola, proteção ambiental), como se adiam medidas de intervenção no mercado da habitação que poderiam ser mais eficazes e imediatas”.
Ambientalistas preferem a reabilitação
Luís Filipe Silveira considera também que o impacto ambiental da conversão de solos rústicos em áreas habitacionais precisa de ser “cuidadosamente avaliado e mitigado“, pelo que será necessário implementar medidas que protejam habitats naturais, controlem o uso de recursos naturais e promovam práticas de construção sustentáveis.
O diretor da Hipoges Portugal acredita que é necessário envolver as comunidades locais, autoridades municipais, organizações da sociedade civil e empresas privadas, para que a iniciativa tenha sucesso. Na ótica da Zero, será difícil garantir que se previnam “os mais que previsíveis atropelos” aos instrumentos de gestão território, afirma o diretor Paulo Lucas.
“Não temos um problema de escassez de habitação, mas sim de escassez de habitação disponível no mercado”, alerta a diretora de Conservação e Políticas da ANP|WWF. Isto é, a habitação existe, mas não está disponível para venda ou arrendamento. “Assim, não faz sentido permitir construção onde ela não é até agora permitida (salvo algumas exceções), por razões de interesse público e de proteção ambiental“, conclui Catarina Grilo.
“É inegável que estas medidas poderão dar uma resposta à crise da oferta, mas colocam desafios significativos e impactes negativos em matéria de ordenamento do território. A aposta deveria desde logo promover a reabilitação de áreas degradadas e desocupadas e travar os fenómenos de gentrificação”, defende, também, a Zero.
Em paralelo, a diretora de Conservação e Políticas da ANP|WWF realça que a palavra “sustentável” é usada em função da finalidade da habitação (se é usada para professores, polícias, entre outros), o que “não significa que sejam usados quaisquer critérios de sustentabilidade na sua localização e construção“, e, portanto, não exige o uso de materiais reciclados e recicláveis ou integração na paisagem, por exemplo.
“Portugal devia estar a procurar planear a designação de áreas protegidas (naturalmente em solo rústico, e não em solo urbano) para cumprir a sua obrigação internacional de proteger eficazmente 30% da sua superfície terrestre até 2030, e não a procurar utilizar essas áreas com potencial valor natural para outras finalidades que levam à sua destruição”, remata ainda Catarina Grilo.
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