Garantia pública está a ser usada por jovens que não precisam da ajuda do Estado para comprar casa

Jovens com e sem poupanças estão a aproveitar o financiamento a 100% da garantia pública para comprar casa, ao mesmo tempo que os vendeores estão também a flexibilizar as condições de compra.

A garantia pública para o crédito à habitação jovem, que está disponível desde o início do ano, está a “abanar” o mercado bancário e também o mercado da habitação. Desde logo porque, contrariamente às expectativas do Governo, esta medida não só está a beneficiar jovens sem poupanças, mas, principalmente, está a ser estrategicamente aproveitada por aqueles que dispõem de capitais próprios suficientes para a entrada de um crédito à habitação sem necessitarem da “ajuda” do Estado.

“Muitos dos jovens que estão à procura de casa, mesmo quando têm capitais para darem como entrada do crédito à habitação, estão a optar por recorrer à garantia pública para obterem financiamento a 100%”, refere Carla Correia, gerente da ERA de Rio Tinto, que conta fechar janeiro com 12 escrituras ao abrigo da garantia pública (cerca de 30% do total) e duplicar esse número em fevereiro, “tal tem sido a procura”.

Hugo Pinheiro, CEO da empresa de intermediação de crédito Credível, confirma esta tendência. “Temos de tudo: uns têm capitais próprios, mas querem ficar com o dinheiro para realizar pequenas obras, mobilar a casa ou simplesmente para terem um fundo de emergência, e outros não têm mesmo dinheiro praticamente nenhum e até têm de pedir emprestado a familiares para pagar o sinal do CPCV [contrato promessa compra e venda].”

Esta realidade levanta questões sobre o verdadeiro impacto da garantia pública e se está a cumprir o seu propósito original que, segundo a Portaria que a regula, deve servir como apoio aos jovens que, apesar de terem rendimentos para pagar a prestação do crédito à habitação, não têm poupanças suficientes para avançarem com 10% ou 20% como entrada do negócio, como é exigido pela banca nos contratos comuns.

Júlio Quintela, COO da Zome, também sublinha estas tendências no mercado. Embora confirme que é cada vez mais comum os jovens com capacidade financeira para dar uma entrada inicial optarem pela garantia pública, por verem este apoio como “uma oportunidade para maximizar a liquidez disponível”, estes jovens “não representam a maioria”.

Garantia pública “contorna” sinal para garantir a casa

A implementação da garantia pública está também a desencadear uma transformação nas práticas estabelecidas do mercado imobiliário nacional. Uma dessas mudanças mais significativas e imediatas é a flexibilização das condições de compra, especialmente no que diz respeito ao sinal tradicionalmente exigido para “segurar” um imóvel, que tradicionalmente ronda 10% a 20% do valor do imóvel, referem os especialistas da área.

“Há casos em que não há sinalização e a venda passa logo para a fase da escritura, e não são tão raros quanto isso”, refere Manuel Alvarez, presidente da Remax Portugal, sublinhando que a garantia pública “tem sido promotora de muitos bons negócios.”

Esta flexibilidade por parte dos vendedores reflete uma adaptação rápida e necessária às novas condições do mercado, especialmente quando se trata de compradores jovens que recorrem à garantia pública. “Grande parte dos vendedores, se garantirmos que temos o crédito aprovado, estão recetivos a não pedirem sinal” refere Carla Correia, salientando, contudo, que, “se o crédito não está garantido, não temos recetividade dos vendedores.”

A garantia pública para o crédito à habitação jovem está a mexer com o mercado. Se por um lado está a democratizar o acesso à habitação própria, por outro, está a criar um cenário onde os limites entre necessidade e oportunismo tornam-se cada vez mais ténues.

“Em muitos casos, os vendedores, ao lidarem com compradores que recorrem à garantia pública e apresentam poucas ou nenhumas poupanças, estão a adaptar-se à realidade do mercado”, revela também Júlio Quintela, destacando ainda que “isso tem levado alguns a optarem por fixar um valor simbólico de reserva, em vez de exigir o tradicional sinal elevado associado ao CPCV.”

No entanto, é importante salientar que qualquer adiantamento que seja feito para “segurar” a casa não condiciona em nada o financiamento a 100% do negócio, por via da contratualização do crédito à habitação através da garantia pública.

Nas situações em que, previamente à celebração de um contrato de crédito à habitação, se verifica um adiantamento de um valor para garantir a casa, “o que tipicamente sucede é que, na data de contratação do crédito à habitação, o crédito relativo ao sinal é integrado no crédito à habitação”, esclarece o Banco de Portugal, porque o crédito à habitação solicitado junto do banco pode ser feito até 100% do valor da transação.

Bancos registam forte adesão dos jovens

A liberdade com que a garantia pública está a ser empregue tem levado a que a sua adesão esteja a ser feita a bom ritmo. O Santander Totta, por exemplo, já registou “mais de 1.000 pedidos que correspondem a mais de 200 milhões de euros de crédito hipotecário”, refere fonte oficial do banco ao ECO.

O Novobanco também reporta uma adesão positiva, com “cerca de 300 propostas com um crescimento diário evidente” e o Banco BPI revela que já ultrapassou os 200 pedidos, “num total superior a 40 milhões de euros” de crédito bancário.

Esta forte procura enquadra-se no envelope financeiro de 1,2 mil milhões de euros que o Governo reservou para a garantia pública que se destina a jovens entre os 18 e os 35 anos que pretendam adquirir a sua primeira habitação própria permanente.

Os candidatos devem ter domicílio fiscal em Portugal, auferir rendimentos que não ultrapassem o 8.º escalão do IRS (até cerca de 80 mil euros de rendimento coletável anual) e não ser proprietário de qualquer outro imóvel habitacional.

Cumprindo estes requisitos, o Estado garante até 15% do valor da transação do imóvel, com um limite máximo de 450 mil euros, funcionando assim como uma fiança, permitindo aos bancos concederem financiamento até 100% do valor do imóvel – mas desde que os mutuários do crédito apresentem rendimentos equivalentes a pelo menos 50% da prestação do crédito à habitação, conforme é exigido por uma das medidas macroprudenciais do Banco de Portugal (a LTV).

A garantia pública para o crédito à habitação jovem está a mexer com o mercado. Se por um lado está a democratizar o acesso à habitação própria, por outro, está a criar um cenário onde os limites entre necessidade e oportunismo tornam-se cada vez mais ténues.

O verdadeiro teste virá quando as taxas de juro eventualmente subirem ou o mercado de trabalho enfrentar desafios. Nesse momento, saber-se-á se esta política habitacional foi verdadeiramente um trampolim para a independência financeira dos jovens ou um alçapão de dívida a longo prazo.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Garantia pública está a ser usada por jovens que não precisam da ajuda do Estado para comprar casa

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião