Dívida de 254 mil milhões na CGA ameaça sustentabilidade da Segurança Social

O alerta para a "insustentabilidade" da Segurança Social feita pelo Tribunal de Contas está numa fatura de 254 mil milhões de euros contraída pelo Estado com a Caixa Geral de Aposentações (CGA).

O Tribunal de Contas lançou uma bomba no debate sobre a sustentabilidade da Segurança Social. Numa auditoria aos relatórios sobre a “Sustentabilidade Financeira da Segurança Social” que acompanharam as propostas de Orçamento do Estado entre 2018 e 2024, é sinalizado um “buraco” de 228 mil milhões de euros no sistema de proteção social contributiva em Portugal, além de apontarem para falhas significativas na forma como a sustentabilidade do sistema de Segurança Social tem sido avaliada e projetada.

Este valor, equivalente a 96,1% do PIB de 2023, surge quando se junta o Sistema Previdencial da Segurança Social, atualmente a gerar excedentes orçamentais, ao Regime de Proteção Social Convergente (RPSC), gerido pela Caixa Geral de Aposentações (CGA), que, segundo contas dos técnicos do Tribunal de Contas, apresenta responsabilidades (presentes e futuras) cinco vezes acima dos seus ativos, gerando com isso um saldo deficitário de 253,9 mil milhões de euros.

“O sistema está em défice há mais de duas décadas e tem uma dívida implícita no longo prazo que supera 250% do PIB até por volta de 2080”, referiu Jorge Bravo, professor de Economia na Nova IMS, em entrevista ao ECO. “O sistema da Segurança Social não é sustentável”, alertou ainda Jorge Bravo, que foi designado como perito pelo Instituto dos Atuários Portugueses na capacitação dos elementos da equipa de auditoria do relatório do Tribunal de Contas para a análise e apreciação do modelo utilizado para as projeções.

Fonte: Tribunal de Contas. Cálculos próprios.

À primeira vista, o défice de 228 mil milhões de euros do sistema de proteção social contributiva é alarmante. Contudo, vários especialistas ouvidos pelo ECO contestam veementemente esta análise, argumentando que juntar os dois sistemas é um erro metodológico grave que distorce a realidade. “É um disparate juntar os dois sistemas”, refere Fernando Ribeiro Mendes, economista e ex-secretário de Estado da Segurança Social, argumentando que não só o regime da CGA está fechado desde 2005 como foi criado com um propósito e uma estrutura bem diferente do atual regime geral da Segurança Social.

“Tanto Jorge Bravo como o Tribunal de Contas ignoram, ou fazem por ignorar, pois não esclarecem, por que razão a CGA apresenta anualmente elevados défices que têm de ser suportados pelo Orçamento do Estado”, refere o economista Eugénio Rosa, sublinhando que “a razão é que durante 75 anos (até 2005) o Estado apropriou-se do dinheiro dos descontos e contribuições [da CGA] que devia ter sido aplicados num fundo semelhante ao atual Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS). Se tivesse feito isso não teria de suportar esses défices agora, mas sim o fundo.”

Estado deficitário das contas da CGA

A CGA tem uma história que remonta a 1929, quando foi criada para gerir o sistema de pensões dos funcionários públicos, fazendo parte da Caixa Nacional de Previdência, em conjunto com o Montepio dos Servidores do Estado, sob a administração da Caixa Geral de Depósitos. “Foi criado no regime anterior com uma lógica de compensação aos funcionários públicos, porque o Estado salazarista pagava mal e resolveu criar um sistema de pensões bastante vantajoso que compensava os baixos salários – porque dava a pensão como sendo igual ao último salário”, recorda Fernando Ribeiro Mendes.

Este regime especial para os funcionários públicos foi encerrado a novas adesões a 31 de dezembro de 2005. A partir de 2006, todos os novos trabalhadores do Estado passaram a ser inscritos no regime geral da Segurança Social. A CGA tornou-se assim um sistema fechado, responsável apenas pelos trabalhadores públicos inscritos até ao final de 2005.

Em 2023, foram transferidos para a CGA 5.718 milhões de euros do Orçamento do Estado. É este o verdadeiro elefante na sala quando se fala de sustentabilidade da proteção social em Portugal.

Atualmente, a CGA gere um universo de cerca de 389 mil subscritores. O problema é que este número está em declínio constante, enquanto o número de pensionistas aumenta. Resultado: a receita contributiva da CGA tem diminuído a um ritmo superior ao da despesa com pensões, agravando o seu défice estrutural.

Além disso, as reservas financeiras provenientes de antigos fundos de pensões, públicos e privados, transferidos para a CGA, como os fundos de pensões do pessoal dos CTT, RDP, Caixa Geral de Depósitos, ANA, NAV-Portugal, INCM e os três planos de pensões da Portugal Telecom, têm-se esgotado progressivamente para cobrir responsabilidades crescentes com pensões e outros encargos.

Este desequilíbrio obriga a um aumento constante da comparticipação do Orçamento do Estado. Em 2023, foram transferidos para a CGA 5.718 milhões de euros do Orçamento do Estado. É este o verdadeiro elefante na sala quando se fala de sustentabilidade da proteção social em Portugal. E é neste contexto que surge a polémica análise do Tribunal de Contas, que defende que para avaliar corretamente a sustentabilidade da proteção social, é necessário olhar em conjunto para o Sistema Previdencial da Segurança Social e para o Regime de Proteção Social Convergente da CGA.

Os técnicos do Tribunal de Contas argumentam que a separação dos dois regimes “prejudica a transparência da avaliação da sustentabilidade financeira do conjunto dos regimes contributivos de proteção social pública em Portugal.” No entanto, esta análise conjunta está longe de ser consensual entre os especialistas.

Teresa Garcia, professora do ISEG, é categórica: “A CGA é da responsabilidade do Estado, ponto final. Não pode assumir isso como responsabilidade da Segurança Social”, sublinhando, no entanto, que isso “não significa que não há responsabilidades da CGA.” Fernando Mende Ribeiro destaca inclusive que “ao integrar a CGA com o Sistema Previdencial era pedir que as contribuições das empresas e do Estado [após 2025] tinham que ir financiar as pensões da função pública, que tem outra lógica.”

A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Maria do Rosário Palma Ramalho, assinou um despacho para criar um grupo de trabalho para propor medidas destinadas à reforma da Segurança Social, para garantir a sustentabilidade a longo prazo do sistema. ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSAANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

Dois problemas para uma só solução?

Durante décadas, a CGA funcionou com uma lógica diferente do sistema geral da Segurança Social, que se pautava por ao contrário do regime geral não ter uma lógica contributiva. “As pessoas descontavam, mas não era no sentido de dar sustentabilidade só por essa via. Sempre foi financiado pelo Orçamento de Estado”, recorda Fernando Ribeiro Mendes.

“Com o poder que tem, e legislando em “casa própria”, o Governo estabeleceu um sistema que lhe permitia apropriar-se de uma parcela das contribuições”, refere ainda Eugénio Rosa, notando que “o empregador público, que era o Estado, não pagava uma contribuição percentual fixa, mas apenas transferia do Orçamento do Estado, durante o ano, somente o necessário, que junto às contribuições dos trabalhadores, fosse suficiente para pagar as pensões aos trabalhadores que já estavam aposentados.

Esta particularidade histórica é crucial para entender o atual desequilíbrio financeiro da CGA e sustentar a ideia defendida por vários especialistas que argumenta a existência não da sustentabilidade da Segurança Social mas de dois problemas distintos:

  • A CGA apresenta um problema transitório que se resolverá naturalmente com o tempo. Este sistema, exclusivo para funcionários públicos, representa um compromisso histórico do Estado que não pode ser ignorado. À medida que o número de pensionistas da CGA diminui, o encargo financeiro associado irá gradualmente desaparecer. “O Estado não se pode abstrair do problema e por isso tem de pagar”, defende Fernando Ribeiro Mendes.
  • O sistema universal da Segurança Social enfrenta desafios mais complexos e duradouros. Desde logo, o envelhecimento acelerado da população portuguesa coloca uma pressão significativa sobre o sistema. Embora a recente vaga de imigração tenha trazido um alívio temporário, com mais contribuintes ativos, é importante notar que estes novos residentes também estão a acumular direitos no sistema, o que poderá ter implicações a longo prazo para a sua sustentabilidade.

O debate sobre a sustentabilidade da proteção social em Portugal é complexo e multifacetado. O relatório do Tribunal de Contas, ao apontar para um “buraco” de 228 mil milhões de euros, lançou um alerta importante. No entanto, a metodologia utilizada, juntando as contas do Sistema Previdencial da Segurança Social e da CGA, é alvo de fortes críticas por parte de vários especialistas.

O que parece claro é que Portugal enfrenta desafios significativos nesta área. Se por um lado tem de lidar com o legado da CGA, um sistema fechado que continuará a pesar nas contas públicas nas próximas décadas, por outro lado, precisa também de garantir a sustentabilidade a longo prazo do Sistema Previdencial da Segurança Social, num contexto de envelhecimento da população, não perdendo o foco de que, como revela Teresa Garcia, “os sistemas previdenciais são uma marca de economias de mercado civilizadas e prósperas porque conseguiram dar segurança na reforma e são um verdadeiro seguro social assente num pacto social.”

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