Greves, compra de férias, contratos a prazo e outsourcing. Conheça as propostas do Governo para a reforma laboral

Anteprojeto mexe em mais de 100 artigos do Código do Trabalho. Para passar pelo crivo da Assembleia da República, o Executivo vai precisar do apoio do Chega ou do PS.

Serviços mínimos das greves ampliados a mais setores essenciais, como creches e lares ou abastecimento alimentar, fim da proibição do outsourcing após despedimentos, compra de até dois dias de férias em troca de salário mas sem perda de outros benefícios ou alargamento dos contratos a prazo são apenas algumas das mais de 100 alterações ao Código do Trabalho que o Governo de Luís Montenegro propôs aos parceiros sociais num anteprojeto de reforma laboral que intitulou de “Trabalho XXI“.

Tratando-se de alterações à legislação laboral, este pacote de medidas terá de passar pelo crivo da Assembleia da República para entrar em vigor. Como Executivo não tem uma maioria absoluta de 116 deputados, vai precisar do apoio do Chega ou do PS para fazer vingar o seu desiderato.

Os socialistas já levantaram o cartão vermelho. Por isso, resta o partido de André Ventura para viabilizar a reforma.

Serviços mínimos das greves alargados a creches e lares

No que diz respeito à greve, o objetivo é “ser um bocado mais exigente quanto à definição dos serviços mínimos, mas sem beliscar o direito à greve, é mais compatibilizar com outros direitos fundamentais como o direito ao acesso à saúde, ao trabalho e ao direito a circular”, começou por explicar a ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho quando apresentou a medida.

Para além disso, serão alargados os setores imprescindíveis para os quais a legislação já prevê serviços mínimos obrigatórios. “Há apenas uma nova área para os cuidados a crianças, pessoas doentes ou portadoras de deficiência, incluindo as que estão em cuidados continuados”, ou seja, ligada também a “creches e lares” de idosos, esclareceu.

Questionado pelos jornalistas se os serviços mínimo obrigatórios passam a abranger escolas básicas e secundárias, além de creches, fonte oficial do Ministério do Trabalho respondeu: “Não está definido”.

O Código do Trabalho, no n.º 2 do artigo 537.º, apresenta uma lista exemplificativa de setores onde, por estarem em causa necessidades sociais impreteríveis, pode justificar-se a imposição de serviços mínimos. Entre eles incluem-se:

  • Correios e telecomunicações;
  • Serviços médicos, hospitalares e medicamentosos;
  • Salubridade pública, incluindo a realização de funerais;
  • Serviços de energia e minas, incluindo o abastecimento de combustíveis;
  • Abastecimento de águas;
  • Bombeiros;
  • Serviços de atendimento ao público que assegurem a satisfação de necessidades essenciais cuja prestação incumba ao Estado;
  • Transportes, incluindo portos, aeroportos, estações de caminho de ferro e de camionagem, relativos a passageiros, animais e géneros alimentares deterioráveis e a bens essenciais à economia nacional, abrangendo as respetivas cargas e descargas;
  • Transporte e segurança de valores monetários.

O alargamento dos serviços mínimos a outros setores pode ser inconstitucional, como já referiu ao ECO Sofia Carneiro Silva, da CCA Law Firm: “Se a proposta do Governo vier a permitir a imposição de percentagens mínimas de trabalhadores durante greves fora desses contextos, poderá colidir com o direito à greve consagrado no artigo 57.º da Constituição da República Portuguesa. Tal cenário poderá originar um pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade”.

O anteprojeto de reforma da legislação laboral prevê ainda incluir o abastecimento alimentar e os “serviços de segurança privada de bens ou equipamentos essenciais” nos setores que passam a estar abrangidos por serviços mínimos em caso de greve.

Compra de até dois dias de férias em troca de salário

Quanto à possibilidade de compra de dias de férias, a proposta do Executivo prevê que o trabalhador possa faltar de forma justificada “mais dois dias antes ou depois do período normal de férias com perda de retribuição mas sem perda de mais regalias”, afirmou Maria do Rosário Palma Ramalho.

Ou seja, o trabalhador poderá meter até mais dois dias a seguir ou antes do seu período de férias com perda do correspondente a dois dias de salário mas sem penalizações noutros benefícios como subsídio de refeição, de férias ou de natal e na contagem de tempo da carreira contributiva para cálculo da pensão de velhice ou prestação de desemprego.

O documento que a ministra entregou a patrões e sindicatos estabelece ainda a reposição do banco de horas individual, mas em moldes diferentes do do passado, uma vez que, na proposta do Executivo, “passa a ser subsidiado pelo regime de horas em convenção coletiva”, explicou Rosário Palma Ramalho. Ou seja, será possível instituir o banco de horas se a contratação coletiva o prever, daí o presidente da Confederação Empresarial (CIP), Armindo Monteiro ter criticado ainda as “amarras” que subsistem à proposta.

Jovens e desempregados passam a justificar contratos a prazo

As regras para contratos de muito curta duração estão bem balizadas no Código do Trabalho. Só podem ser celebrados para “a satisfação de necessidades temporárias, objetivamente definidas pela entidade empregadora e apenas pelo período estritamente necessário à satisfação dessas necessidades”, de acordo com o artigo 140.º da lei laboral.

Para além disso, e de segundo a legislação atual, é permitido celebrar “contrato de trabalho a termo certo para:

a) lançamento de nova atividade de duração incerta, bem como início do funcionamento de empresa ou de estabelecimento pertencente a empresa com menos de 250 trabalhadores, nos dois anos posteriores a qualquer um desses factos;

b) contratação de trabalhador em situação de desemprego de muito longa duração”.

É este ponto que o Governo pretende alterar. No documento enviado aos parceiros sociais, já não se exige que a empresa tenha menos de 250 trabalhadores e alarga-se o espetro da contratação ao “trabalhador que nunca tenha prestado atividade ao abrigo de contrato de trabalho por tempo indeterminado”, que pode ser um jovem à procura do primeiro emprego ou um trabalhador que nunca tenha estado efetivo, “ou que esteja em situação de desemprego de longa duração”, isto é, sem emprego há mais de um ano.

Estas alterações revogam parte da Agenda para o Trabalho Digno, do anterior Governo de António Costa, ao voltar a incluir jovens e desempregados de longa duração nos motivos que justificam a celebração de vínculos a termo, isto é, precários. Espera-se por isso a contestação das confederações sindicais a esta alteração.

Abre-se ainda a porta à contratação a prazo de pensionistas por velhice e invalidez. Atualmente, a lei já permite vínculos a termo de seis meses para quem se reformou mas para trabalhar na empresa onde até então esteve empregado. O Governo quer permitir que este trabalhador possa, agora que se aposentou, prestar serviços a outras entidades.

Também há mudanças nos prazos dos contratos a termo. “A proposta é que não durem menos do que um ano, apenas em casos excecionais, quando, até agora, eram de seis meses”, como explicou esta quinta-feira o ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho.

Ou seja, o mínimo passa de seis meses para um ano. Também a duração máxima vai ser alargada: no caso dos contratos a termo certo, o prazo “aumenta de dois para três anos” e, nos contratos a termo incerto, sobe de “quatro para cinco anos”, acrescentou.

Fim das restrições ao outsourcing após despedimentos

O fim das restrições ao outsourcing, durante um ano, para funções que eram desempenhadas por trabalhadores que foram despedidos também faz parte do rol das mais de 100 alterações ao Código do Trabalho.

Em causa está o artigo 338.º A do Código do Trabalho, introduzido pelo Governo socialista de António Costa, em maio de 2023, que estabelece que “não é permitido recorrer à aquisição de serviços externos a entidade terceira para satisfação de necessidades que foram asseguradas por trabalhador cujo contrato tenha cessado nos 12 meses anteriores por despedimento coletivo ou despedimento por extinção de posto de trabalho”. A violação desta regra implica uma contraordenação muito grave para quem recorre aos referidos serviços.

A antiga provedora e agora ministra da Administração Interna, Maria Lúcia Amaral, considerou que esta restrição vai muito além dos limites constitucionais ao exercício da liberdade de iniciativa económica privada. E o Governo quer agora deixar cair esse travão ao outsourcing como exigem os patrões. Apesar disso, essa norma já teve o respaldo do Tribunal Constitucional. Ou seja, está blindada do ponto de vista da Lei Fundamental.

Está em risco o pagamento de créditos a trabalhadores no fim dos contratos

Uma das grandes bandeiras da Agenda para o Trabalho Digno, introduzida em 2023 pelo anterior Governo socialista de António Costa, está em risco de cair: a garantia do pagamento de créditos devidos aos trabalhadores, como subsídios de férias ou de natal, quando são despedidos ou o contrato cessa.

O anteprojeto para a reforma laboral que o Governo entregou aos parceiros sociais, e a que o ECO teve acesso, passa a permitir que o trabalhador abdique desse tipo de direitos através de declaração reconhecida pelo notário.

Essa cláusula, designada de remissão abdicativa, tinha sido eliminada por proposta do Bloco de Esquerda para contrariar uma prática que os bloquistas classificaram, na altura, de “abusiva”, através da qual as empresas incluíam na cessação do contrato uma alínea em que o trabalhador declarava que estavam liquidados todos os créditos devidos, deixando depois de poder reclamar outros valores que forem apurados.

Em 2023, a proposta do BE foi aprovada com os votos favoráveis do proponente, do PS e do PCP e com a abstenção do PSD. Assim, o artigo 337.º do Código do Trabalho relativo à prescrição e prova de crédito passou a estabelecer, no seu n.º 3, que “o crédito de trabalhador não é suscetível de extinção por meio de remissão abdicativa, salvo através de transação judicial”.

A reforma laboral que a ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma, apresentou esta quinta-feira às confederações patronais e centrais sindicais vem alterar esse ponto, que passa a ter a seguinte redação, segundo o documento a que o ECO teve acesso: “O crédito do trabalhador não é suscetível de extinção por remissão abdicativa, salvo nos casos em que o trabalhador descare expressamente a renúncia ao mesmo em declaração escrita reconhecida notarialmente”.

Atualmente, os trabalhadores não podem abdicar de créditos devidos a não ser por decisão dos tribunais. Se a mudança agora proposta for aprovada, passa a ser possível prescindir do pagamento desses direitos, seja subsídios de férias de natal ou horas de formação não pagas, desde que o trabalhador apresente uma declaração escrita com a assinatura reconhecida por uma conservatória.

Dever de formação contínua reduzido para microempresas

Outra das alterações introduzidas no anteprojeto, aprovado esta quinta-feira em Conselho de Ministros, prende-se com o direito que os trabalhadores têm à formação contínua, que se reduz de 40 para 20 horas por ano, no caso de microempresas.

O artigo 131.º do Código do Trabalho estabelece hoje que “o trabalhador tem direito, em cada ano, a um número mínimo de quarenta horas de formação contínua ou, sendo contratado a termo por período igual ou superior a três meses, a um número mínimo de horas proporcional à duração do contrato nesse ano”.

A proposta apresentada pelo Governo reduz a obrigatoriedade de horas de formação para as microempresas, isto é, entidades que empregam menos de 10 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede os dois milhões de euros.

Assim, e de acordo com a nova redação do n.º2 do mesmo artigo: “Em cada ano, o número de horas de formação contínua a que o trabalhador tem direito é, respetivamente, 20 horas no caso de microempresas, 40 horas nas restantes […]”.

Fim da criminalização da não declaração de trabalho por parte das empresas

O Governo quer acabar com a criminalização do trabalho não declarado que também se aplica aos particulares que recorrem ao trabalho doméstico.

O anteprojeto que aprovou em Conselho de Ministros, e que depois apresentou aos parceiros sociais revoga o artigo do regime geral das infrações tributárias que determinava, desde maio de 2023, que as entidades empregadoras que não comuniquem à Segurança Social a admissão de trabalhadores no prazo de seis meses são punidos com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

Governo pretende eliminar falta por luto gestacional

O Governo pretende ainda acabar com a falta por luto gestacional, atualmente três dias sem perda de direitos, acrescentando à licença por interrupção de gravidez o regime de faltas para assistência à família.

Atualmente, o Código do Trabalho prevê que a mãe pode gozar destes três dias quando não goza a licença por interrupção de gravidez, licença essa que dá à trabalhadora o direito a ausentar-se entre 14 a 30 dias.

A falta por luto gestacional pode também ser gozada pelo pai, até três dias consecutivos, se a mãe estiver a usufruir da licença por interrupção da gravidez.

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