Mudança “estrutural” na mobilidade elétrica aplaudida, mas persistem dúvidas

A liberalização do mercado da mobilidade elétrica traz mais flexibilidade mas também alguns riscos.

O novo regime da mobilidade elétrica, que esteve em consulta pública entre janeiro e março deste ano, chegou agora a Diário da República, oficializando a sua entrada em vigor. A versão que “vingou” mostra poucas alterações face àquela que era já conhecida da consulta, pelo que continua a dividir opiniões: se, por um lado, alguma simplificação administrativa, maior transparência nos preços e estímulo à inovação e à entrada de novos negócios no mercado são destacados pela positiva, levantam-se também receios quanto à perda da interoperabilidade e quanto aos efeitos na concorrência.

A avaliação que fazemos do novo Regime Jurídico da Mobilidade Elétrica (RJME) é claramente positiva“, indicam André Zibaia da Conceição e Catarina Franco Madeira, advogados e sócios da Franco Zibaia. Os especialistas na área da mobilidade elétrica consideram que, apesar dos “aspetos positivos” iniciais do modelo anterior, este tornou-se “demasiado centralizado e divergente de todos os modelos existentes no resto da Europa (e do mundo)”.

Do lado da Miio, que atua no mercado como facilitador entre os utilizadores de veículos elétricos e os operadores de pontos de carregamento, através de uma plataforma de comparação de preços e de gestão de disponibilidade dos postos, o novo regime é visto como “uma mudança estrutural no modelo nacional de mobilidade elétrica, ao substituir a gestão centralizada por um quadro em que cada operador pode desenvolver e gerir a sua própria rede”.

O Governo está empenhado na liberalização do mercado“, posiciona-se o Executivo, no texto do decreto-lei que oficializa o novo regime. Em termos de novidades, face à versão do regime que foi a consulta pública, na ótica da Franco Zibaia, destaca-se a introdução de medidas de simplificação, como é o caso da dispensa de licenças para a operação de pontos de carregamento, que é substituída apenas por uma comunicação prévia.

A Miio considera que não se identificam “alterações estruturais significativas” relativamente ao projeto inicial. Além disso, entende que “não foram totalmente endereçadas” as críticas da Autoridade da Concorrência sobre riscos de concentração de mercado e as preocupações da Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos e das frotas sobre a ausência de enquadramento claro para o modelo “Detentor de Ponto de Carregamento”.

Estes são pontos que existem em ambiente doméstico e condomínios, nos quais a energia é faturada ao utilizador ou à sua empresa e não ao estabelecimento. “Não nos é claro como é que vai funcionar”, indica a CEO.

Do lado da sociedade de advogados, entende-se que persistem dúvidas quanto às obrigações dos prestadores de serviços de mobilidade elétrica, como é o caso dos operadores de pontos de carregamento ou empresas com soluções integradas, “o que pode gerar incertezas na aplicação prática da legislação”.

Além disso, continua pendente a regulamentação relativa à emissão de títulos pelas emissões de dióxido de carbono poupadas através da integração de energias renováveis na mobilidade elétrica, alertam.

Da abertura a novos operadores à segmentação

Os sócios da Franco Zibaia apontam para “o aumento da concorrência entre os agentes do mercado de mobilidade elétrica“, como consequência de, a partir de agora, não ser necessário ter contratos e subscrições prévias para carregar o veículo num posto de carregamento. Os mesmos colocam esta mudança entre os “avanços significativos” desta legislação, a par com a eliminação da figura do comercializador de eletricidade e o fim da gestão centralizada da mobilidade elétrica por uma entidade única, até agora a Mobi.E.

Os operadores de postos de carregamento ganham também o acesso às áreas de serviço em autoestradas, que antes só podiam ser exploradas pelos respetivos concessionários, observam os advogados. No seu entender, a liberalização permite largar “um modelo centralizado, rígido e que bloqueava ou dificultava o acesso ao mercado de muitos operadores”.

Daniela Simões, CEO e cofundadora da Miio, concede que se abre agora espaço “para uma maior liberdade de ação comercial, para estratégias competitivas diferenciadas e para novos modelos de negócio no setor”. Contudo, afirma que “esta liberdade também coloca em risco a interoperabilidade” e realça o “risco de redes isoladas que dificultem a comparação e reduzam a concorrência“.

Na visão da Miio, uma vez que a ligação entre redes deixa de ser garantida por um ponto único, até agora a Mobi.E, e passa a depender “da capacidade técnica e da vontade de cada operador em integrar-se com outros”, pode verificar-se uma segmentação da rede “e deteriorar significativamente a experiência do utilizador final“. A Miio alerta para a “ausência de salvaguardas regulatórias robustas” para garantir cobertura nacional e preços competitivos.

Transparência, carregamento inteligente e simplificação

A já referida simplificação dos processos de licenciamento e da operação dos pontos de carregamento é, unanimemente, um ponto positivo do diploma, tal como a possibilidade de produção de energia renovável em regime de autoconsumo nos pontos de carregamento.

Da parte da Miio, são considerados também avanços no sentido certo a maior transparência nos preços e nas condições de utilização nos postos, já que se promove a afixação, nos postos, do preço por quilowatt-hora, permitindo a comparação. Em paralelo, elogia a promoção de inovação, através do enquadrando do carregamento inteligente e bidirecional.

Mobi.E deixa de estar no centro mas mantém-se ativa

Para evitar disrupções na mudança de um regime centralizado para o liberalizado, é estabelecido um regime transitório, até 31 de dezembro de 2026. Fonte oficial do ministério das infraestruturas esclarece, contudo, que “o novo regime de mobilidade elétrica não dita, a partir de 2027, a extinção da Mobi.E”.

Vai ser apenas extinta a plataforma única, gerida até agora por esta entidade, à qual todos estavam obrigados a aderir. Essa obrigatoriedade cessa a partir do próximo dia 19 de agosto, data de entrada em vigor do Novo Regime da Mobilidade Elétrica.

A Mobi.E fica com as seguintes funções:

  • Gestão da plataforma tecnológica de mobilidade elétrica durante o período de transição (até 31 de dezembro de 2026);
  • Suporte técnico e operacional aos operadores que optem por manter ligação à sua plataforma;
  • Disponibilização de dados sobre carregamentos, métodos de pagamento, idiomas disponíveis e funcionalidades como carregamento inteligente e bidirecional;
  • Prestadora de dados ao PAN, Ponto de Acesso Nacional;
  • Promoção da interoperabilidade e da transparência no setor;
  • Apoio à expansão da rede de postos de carregamento em territórios de baixa densidade, através de projetos-piloto e parcerias com municípios;
  • Campanhas de sensibilização e literacia energética, dirigidas a consumidores e operadores;
  • Colaboração com entidades públicas e privadas na definição de políticas públicas.

Contactada, a Mobi.E preferiu não comentar a nova legislação, e afirmou apenas que “dentro das suas competências, está empenhada em contribuir para que a transição energética da mobilidade continue a ser uma realidade em Portugal”.

Questionado sobre se as alterações nas responsabilidades da Mobi.E implicariam algum tipo de reestruturação, o Governo também optou por não responder.

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