Advogados constituídos arguidos sem suspeitas no caso TAP. O que permite a lei?

A TAP e a SRS Legal foram alvo de buscas na sequência de uma investigação relativa à indemnização paga a ex-administradora da TAP. Advogado acabou a ser constituído arguido.

Na terça-feira, a TAP foi alvo de buscas na sequência de uma investigação do Ministério Público (MP) relativa à indemnização paga a Alexandra Reis, ex-administradora da TAP. Mas também o escritório de advogados SRS Legal – que durante anos foi o responsável pela assessoria da TAP em questões laborais – foi alvo de buscas. Em resultado disso, o advogado e sócio César Sá Esteves foi constituído arguido no processo. As buscas incidiram sobre correspondência eletrónica relativa a 2022, ano em que foi atribuída a indemnização a Alexandra Reis.

Mas o facto do advogado ser arguido não indica que em causa possam estar suspeitas relativas à sua atuação. E não é caso único. Ou seja: buscas a escritórios de advogados para apreender correspondência, discos rígidos, computadores ou documentação em que os advogados são constituídos arguidos de forma a que as autoridades judiciárias tenham acesso à prova dos clientes desses mesmos advogados sem que existam indícios sérios e fortes da prática de qualquer ilícito penal.

“Enquanto Bastonário da Ordem dos Advogados, não posso deixar de expressar firme oposição a este tipo de atuação por parte das autoridades judiciais e reiterar a necessidade absoluta do respeito pela legalidade e pelas garantias da Advocacia e dos direitos dos Advogados”, diz o bastonário da Ordem dos Advogados, João Massano, em declarações ao ECO/Advocatus.

João MassanoHenrique Casinhas/ECO

Sobre buscas e apreensões em escritórios de advogados, o Código de Processo Penal é claro: o artigo 177.º, n.º 5, exige que o juiz de instrução criminal presida à busca, assegurando igualmente a presença de um representante da Ordem dos Advogados durante toda a diligência — precisamente para proteger o sigilo profissional. Por outro lado, artigo 180.º, n.º 2, reforça que está proibida a apreensão de documentos cobertos por sigilo profissional, salvo se forem eles próprios objeto ou elemento de crime — cabendo sempre essa decisão ao senhor juiz de instrução, com possibilidade de recurso para a Relação.

Também no Estatuto da Ordem dos Advogados, o artigo 75.º regula detalhadamente a presença do juiz de instrução e do representante da Ordem dos Advogados nessas buscas; o artigo 76.º proíbe a apreensão de correspondência relativa ao exercício da profissão, exceto documentação sobre factos criminosos nos quais o próprio advogado tenha já sido constituído arguido — regime que, aliás, serviu de justificação formal para a constituição do advogado como arguido na operação relacionada com a TAP.

Por seu turno, o artigo 77.º do referido Estatuto garante ainda que, durante a diligência, o advogado, seus familiares ou colaboradores presentes, bem como o representante da OA podem sempre reclamar para garantir a preservação do sigilo profissional de determinados documentos: nestes casos, esses elementos devem ser selados e remetidos ao Presidente da Relação para decidir acerca da manutenção da apreensão.

“É, por isso, absolutamente ilegal e uma ofensa à Advocacia que se constitua um advogado como arguido de forma instrumental e unicamente com vista a ultrapassar as regras previstas na Lei quanto ao segredo profissional e justificar apreensões, sem qualquer base concreta de suspeita do seu envolvimento criminal. Sublinho, a esse propósito, o acórdão relatado em 2010 pela Desembargadora Fátima Mata-Mouros, que considerou inválida a apreensão realizada nestes moldes e criticou expressamente esta prática — uma posição que a Ordem dos Advogados tem sustentado ao longo dos anos”, acrescenta o bastonário. “Exigimos, por isso, rigor, respeito pela lei e salvaguarda dos princípios do Estado de direito. A proteção do sigilo profissional dos advogados não é um privilégio: é pilar essencial da Justiça e da defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos num Estado de Direito Democrático como é o nosso”, concluiu.

O Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, liderado por Telmo Semião, repudiou igualmente a utilização da constituição de arguido de um advogado, no exercício das suas funções profissionais, “como meio de permitir à investigação aceder de forma facilitada a elementos de prova – designadamente correio eletrónico – quando existiriam outros mecanismos legais adequados para esse efeito”. Acrescentando ainda que “importa esclarecer que não se questiona a legitimidade da constituição de arguido de advogados em casos em que tal se mostre justificado. Não generalizamos nem rejeitamos, em abstrato, essa possibilidade. O que denunciamos é a utilização deste expediente em situações que dizem respeito exclusivamente ao exercício da advocacia, as quais, não raras vezes, terminam sem qualquer condenação e até mesmo sem dedução de acusação contra o advogado visado, como já ocorreu em processos anteriores”.

É, por isso, absolutamente ilegal e uma ofensa à Advocacia que se constitua um advogado como arguido de forma instrumental e unicamente com vista a ultrapassar as regras previstas na Lei quanto ao segredo profissional e justificar apreensões, sem qualquer base concreta de suspeita do seu envolvimento criminal. Sublinho, a esse propósito, o acórdão relatado em 2010 pela Desembargadora Fátima Mata-Mouros, que considerou inválida a apreensão realizada nestes moldes e criticou expressamente esta prática — uma posição que a Ordem dos Advogados tem sustentado ao longo dos anos”.

João Massano, bastonário da Ordem dos Advogados

Bruno Melo Alves, sócio da Melo Alves Advogados explica que “o que a jurisprudência tem reiteradamente sublinhado é a necessidade de evitar abusos nesta matéria. Em particular, têm sido censuradas situações em que a constituição de arguido surge apenas como expediente instrumental para contornar o segredo profissional e permitir a apreensão de correspondência, sem que existam indícios consistentes contra o advogado. Nestes casos, os tribunais têm ordenado a restituição dos documentos apreendidos e lembrado que o segredo profissional não é uma barreira formal, mas uma garantia essencial ao exercício da advocacia e à confiança dos cidadãos no sistema de justiça. Subverter esta proteção através de manobras processuais enfraquece direitos fundamentais e compromete a credibilidade da própria justiça.”, diz o advogado.

Raquel Caniço, Advogada da Caniço Advogados explica que “o segredo profissional é a regra de ouro da advocacia. Todas as informações que o cliente fornece ao advogado encontram-se abrangidas pelo sigilo profissional, pelo que a partir do momento em que o advogado toma conhecimento da informação recai sobre ele uma obrigação de não divulgação, sob pena de violar um dever institucional/estatutário. O dever de segredo profissional visa garantir e salvaguardar a relação de confiança com o cliente, bem como proteger o advogado de pressões exteriores, revelando-se assim, um dever para com a comunidade em geral. Contudo, por força da impossibilidade de ficar dispensado por parte do cliente da reserva de sigilo, a constituição do advogado como arguido, pode muito bem ser um o recurso artificial como forma de legitimar a apreensão de comunicações e documentos cobertos pelo sigilo profissional. A artificialidade pode também servir de forma de obtenção de prova pela via mais facilitadora, dispensando quem investiga de procurar e averiguar por outros meios. Decorrente desta última forma de obtenção de prova, naturalmente que sou contra, por considerar que ao abrigo do artigo 18º da CRP deve haver contenção na “restrição dos direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, conclui a advogada.

O mesmo foi explicado pelo escritório SRS Legal, liderado pelo próprio César Sá Esteves e Otávio Castelo Paulo. “Para que esta correspondência seja copiada e levada por parte da equipa de buscas numa sociedade de advogados, é obrigatória a constituição de arguido. Trata-se de uma formalidade habitual neste tipo de diligência, sobretudo quando as mesmas são num escritório de advogados”, explica fonte oficial da SRS Legal. Que adianta ainda que “a SRS Legal recebeu, a 23 de setembro de 2025, diligências de busca e apreensão por parte do Ministério Público e da Polícia Judiciária, no âmbito de um processo de averiguação relativo a um caso de 2022, que envolveu um cliente da SRS Legal à data. As mesmas decorreram com normalidade, tendo a SRS Legal prestado todo o apoio e colaborado em tudo o requisitado”, diz o comunicado.

Em 2022, a TAP esteve envolvida numa polémica devido ao pagamento de uma indemnização de 500 mil euros à então administradora Alexandra Reis pela sua saída da companhia, por mútuo acordo entre as partes. A TAP divulgou, no Sistema de Difusão de Informação (SDI) da CMVM, em 4 de fevereiro de 2022, um comunicado no qual informava que “tendo sido nomeada pelos anteriores acionistas, e na sequência da alteração da estrutura societária da TAP, Alexandra Reis, vogal e membro do Conselho de Administração e Comissão Executiva da TAP” tinha apresentado naquele dia “renúncia ao cargo”, decidindo encerrar aquele capítulo da sua vida profissional e “abraçando agora novos desafios”.

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