O que levou à “liderança chinesa” na inteligência artificial?
A China já lançou mais de 1.500 grandes modelos de inteligência artificial. O planeamento e o contexto geopolítico ajudaram a criar uma superpotência tecnológica.

Um robô humanóide chinês calçado com uns ténis da marca americana Converse faz uns movimentos de artes marciais, depois uns passos de dança e no fim pede o aplauso do público, que responde entre o entusiasmo e o espanto. A cena acontece no stand da Unitree Robotics na Web Summit em Lisboa, onde a empresa chinesa demonstra as capacidades do seu último modelo, o G1, que permite auxiliar em tarefas domésticas.
Os robôs humanóides foram o exemplo escolhido pelo fundador e CEO da Web Summit, Paddy Cosgrave, para ilustrar a “liderança chinesa na inteligência artificial” na abertura da China Summit, que teve lugar pela primeira vez no âmbito da cimeira tecnológica.
“Há apenas um ano teria sido inimaginável pensar que um modelo open source chinês estaria na linha da frente da inteligência artificial (IA). O Deepseek foi lançado há nove meses e nos meses seguintes, se olharmos para os rankings dos melhores grandes modelos de linguagem natural [LLM] são cada vez mais dominados pelos modelos de IA chineses“, sublinhou Paddy Cosgrave, acrescentando que nas muitas viagens que fez à China pôde testemunhar a “incrível transformação da China nos últimos anos”.
“Os LLM desenvolvidos pelas empresas chinesas conseguiram muitas descobertas, possibilitando novos paradigmas para o desenvolvimento global da IA em termos de código aberto, custo e desempenho“, salientou Jianchao Wang, diretor adjunto do Gabinete de Cooperação Internacional da Administração do Ciberespaço da China.
Guangyao Zhu, subdiretor do Departamento de Comércio de Serviços do Ministério do Comércio chinês, aproveitou a ocasião para debitar alguns números sobre as conquistas tecnológicas da China. É o maior mercado de internet do mundo, o segundo país em termos de capacidade de computação, o segundo que mais investe em I&D, e já contabiliza 1.509 modelos de IA lançados e mais de 500 milhões de utilizadores de IA. É ainda líder mundial na produção de energia renovável, que representa já 60% da capacidade total.
O desenvolvimento tecnológico da China é inseparável da digitalização, da ‘inteligencificiação’ e da transição verde.
“O desenvolvimento tecnológico da China é inseparável da digitalização, da ‘inteligencificação’ e da transição verde”, afirmou Guangyao Zhu, acrescentando que estas continuarão a ser “as forças motrizes da economia mundial”. Têm sido também estas apostas, embuídas nos planos quinquenais, que ajudam a explicar o salto tecnológico dado pelo país.
Há outros ingredientes que alimentaram o sucesso chinês. “Há dez anos não tínhamos cientistas de IA e tínhamos de contratar aos EUA, agora temos muitos cientistas de IA”, apontou Joleen Liang, co-fundadora da Squirrel AI Learning, oradora de um dos painéis da China Summit. “Apostámos muito na educação e na formação de cientistas de IA”, disse também, assinalando ainda a disponibilidade de uma grande quantidade de dados para treinar os modelos de inteligência artificial.
As empresas chinesas tiveram de ir para fora porque o mercado doméstico ficou saturado e enfrentaram menos concorrência do que estavam à espera.
Ben Harburg, managing partner da Novo Capital, um fundo de venture capital, apontou o contexto doméstico e internacional como fatores determinantes. “As empresas chinesas tiveram de ir para fora porque o mercado doméstico tornou-se saturado e enfrentaram menos concorrência do que estavam à espera”, tornando-se players globais. A fabricante de automóveis BYD é disso um exemplo.
Além disso, “a guerra fria tecnológica com os EUA levou a China a desenvolver o seu próprio software e hardware“, nomeadamente nos semicondutores, e “agora consegue competir em igualdade com os EUA”, referiu também o antigo investidor da Uber e Airbnb. O 15.º plano quinquenal reforça o caminho para a autossuficiência como antídoto para a ascensão do nacionalismo económico, de que a própria China é um exemplo.
Harburg somou ainda o facto de a China controlar 90% das terras raras sem as quais não se podem fabricar, por exemplo, os grandes centros de dados usados para os modelos de IA, e a disponibilidade de talento. “A China forma licenciados STEM [acrónimo em inglês para Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemáticas] em muitos múltiplos face aos EUA”, disse.
Para o managing partner da Novo Capital, o lançamento do DeepSeek, em janeiro, foi um “momento Sputnik”, comparando o surgimento do modelo de IA chinês com o lançamento pela União Soviética do Sputnik 1, o primeiro satélite artificial, que desencadeou a corrida ao espaço pelos EUA. Só que nos EUA não existem as terras raras, nem a disponibilidade de talento e existe uma regulação mais apertada.
Uma IA “para o bem” e que não é só para os países ricos
Num país capitalista de planeamento central socialista, a estratégia vem de cima. “O presidente Xi Jinping assinalou que a inovação é uma importante força motora que leva ao desenvolvimento do mundo”, vincou Jianchao Wang, diretor adjunto do Gabinete de Cooperação Internacional da Administração do Ciberespaço da China, na sua intervenção.
O plano está traçado. “Olhando para o futuro, devemos aprofundar a integração e colaboração entre a inovação tecnológica e a inovação industrial, juntar esforços no desenvolvimento de tecnologias-chave, acelerar a conversão da produção académica em aplicação prática e permitir que os dividendos da transformação da inteligência beneficiem o mundo“, disse Jianchao Wang.
O Presidente Xi Jinping salientou que a IA é um bem público internacional que beneficia a humanidade. A IA é um bem comum de toda a humanidade e não é um ganho para indivíduos e países ricos.
Para a China, a inteligência artificial é mais um instrumento para reforçar a sua influência global, tal como a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”.
“Ainda existem fossos significativos entre países e grupos no acesso aos dividendos digitais. O Presidente Xi Jinping salientou que a IA é um bem público internacional que beneficia a humanidade. A IA é um bem comum de toda a humanidade e não é um ganho para indivíduos e países ricos”, acrescenta.
Nesta visão chinesa da IA, deixada por Jianchao Wang perante a plateia cheia do palco 3 da Web Summit, devem ser definidos padrões internacionais, num espírito de colaboração multilateral, que permitam garantir “um desenvolvimento saudável e ordeiro” da tecnologia.
“A China defende um desenvolvimento da IA para o bem e para todos”. Pode ser uma visão idealista, ou apenas cínica, mas face ao ascendente tecnológico chinês é certamente uma visão a ter em conta.
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