Golpe militar na Guiné-Bissau ameaça 160 milhões de exportações nacionais

O golpe na Guiné-Bissau pressiona negócios portugueses num mercado pequeno, mas rentável. Portugal exporta 300 euros por cada euro importado de Bissau, até a instabilidade cobrar a fatura.

O novo golpe militar na Guiné‑Bissau apanha Portugal numa posição de força comercial no país. Em duas décadas, o país tornou‑se um destino estável para bens e serviços portugueses, com uma balança estruturalmente excedentária para as contas públicas.

Agora, a suspensão das instituições volta a colocar um prémio de risco sobre um mercado pequeno, mas relevante para várias empresas nacionais, num Estado onde a memória de expropriações, como as que atingiram o grupo Interfina, continua por sarar.

A Guiné‑Bissau é uma das economias mais frágeis da África Ocidental, altamente dependente da castanha de caju nas exportações, de fluxos de ajuda e de financiamento externo para fechar as contas públicas. No ano passado, apresentava um PIB de 2,1 mil milhões de euros (a economia portuguesa é 137 vezes superior à guineense) e um PIB per capita de 963 dólares, segundo dados do Banco Mundial.

Os dados do Gabinete de Estratégia e Estudos (GEE), com base em estatísticas do Banco de Portugal e do Instituto Nacional de Estatística (INE), mostram que a relação comercial Portugal–Guiné‑Bissau entrou na década de 2020 em velocidade de cruzeiro. Entre 2020 e 2024, as exportações portuguesas de bens e serviços para a Guiné‑Bissau oscilaram entre cerca de 95 milhões e 160 milhões de euros anuais, sempre muito acima das importações, que ficaram na ordem dos 9 a 11 milhões de euros por ano.

A balança entre os dois países é tão desequilibrada que, no ano passado, a taxa de cobertura de mercadorias ultrapassou os 33.800%, ou seja, por cada euro importado Portugal exporta mais de 300 euros.

No final do ano passado, o saldo comercial era positivo em cerca de 143 milhões de euros para Portugal, com as exportações de bens a superarem em 64 vezes as importações e o volume de serviços exportados a ultrapassar em 16,5 vezes os serviços importados.

Só em mercadorias, as exportações portuguesas passaram de cerca de 73 milhões de euros em 2015 para mais de 120 milhões de euros em 2024, com um pico próximo de 130 milhões em 2022. Já as importações de bens vindos da Guiné‑Bissau são residuais – pouco mais de 200 a 350 mil euros por ano nos últimos cinco anos, apesar da forte volatilidade percentual típica de bases muito baixas.

Em termos de peso no comércio externo global de Portugal, a Guiné‑Bissau continua a ser um “mercado nicho”: em 2024 representava cerca de 0,16% das exportações portuguesas de bens e praticamente 0% das importações. Mas é um nicho em crescimento, com uma presença portuguesa relevante na economia guineense.

Fonte: Gabinente de Estratégia e Estudo, a partir de dados de base estimados do INE (inclui estimativas abaixo dos limiares de assimilação e das não-respostas desde 1993); últimas versões disponíveis em outubro de 2025.

O que Portugal vende (e quase não compra)

O padrão comercial confirma a lógica histórica da relação entre os dois países. Portugal é sobretudo fornecedor de bens industriais e agroalimentares, e comprador marginal de produtos primários. Nas exportações de mercadorias para a Guiné‑Bissau em 2024 destacam‑se três grandes blocos:

  • Produtos alimentares e bebidas (incluindo transformados), que valem cerca de um terço das vendas;
  • Fornecimentos industriais, desde químicos a materiais de construção e plásticos;
  • Máquinas, equipamentos, material elétrico e algum material de transporte, que juntos representam perto de metade das exportações industriais transformadas, com forte peso de bens de média‑baixa e média‑alta intensidade tecnológica.

Na prática, Portugal exporta para Bissau tudo o que faz funcionar uma economia urbana: alimentos embalados, bebidas, medicamentos, químicos para a agricultura e para a indústria, materiais para obras públicas e privadas, equipamentos elétricos, máquinas e veículos. Do lado das importações, o fluxo é muito curto. A Guiné‑Bissau vende essencialmente produtos agroalimentares de base (por exemplo, produtos do reino vegetal e alguma pesca) e muito poucos bens industriais.

A balança entre os dois países é tão desequilibrada que, no ano passado, a taxa de cobertura de mercadorias ultrapassou os 33.800%, ou seja, por cada euro importado Portugal exporta mais de 300 euros. No ano anterior, a taxa de cobertura de mercadorias superou os 60.000%.

O golpe na Guiné-Bissau pressiona negócios portugueses num mercado pequeno, mas rentável. Portugal exporta 300 euros por cada euro importado de Bissau, até a instabilidade cobrar a fatura.

Empresas portuguesas no terreno e o fantasma das expropriações

Ao longo das últimas décadas, vários grupos portugueses construíram presença na Guiné‑Bissau, atraídos por margens elevadas, mercados cativos e proximidade linguística, apesar de o país figurar constantemente entre os países mais difíceis de fazer negócio. Mas o histórico é marcado por conflitos com o Estado e perdas patrimoniais.

O caso mais emblemático é o da Interfina e os Armazéns do Povo. Privatizada em 1992, esta empresa foi adquirida maioritariamente pelo grupo português (55% do capital), chegando a representar cerca de 15% das exportações portuguesas para o país e a empregar mais de 200 trabalhadores locais.

Em março de 2022, o Governo guineense anunciou a nacionalização da empresa, alegando má gestão e dívidas acumuladas de 14 milhões de euros. A administração portuguesa contestou a decisão como “ilegal”, argumentando que o Estado, com apenas 5% do capital, não tinha poderes estatutários para extinguir unilateralmente uma empresa privada.

À data de hoje, continua a ser possível comprar bilhetes para Bissau no site da TAP para este sábado e para os habituais voos de terça, quinta e sábado das semanas seguintes, apesar das fronteiras terem sido encerradas.

Outro litígio prolongado envolveu a Portugal Telecom, que deteve participações na Guiné Telecom e na Guinetel. A relação deteriorou‑se nos anos 2000, com o Estado a acumular dívidas superiores a 30 milhões de euros em serviços não pagos. Em 2010, a PT retirou‑se das duas operadoras e, em 2012, o Governo rescindiu unilateralmente o contrato de concessão.

No setor energético, a Galp manteve durante anos uma rede de postos e cerca de 50% da quota de mercado de combustíveis, mas vendeu a operação à Zener por 31 milhões de euros em julho de 2024, consolidando a saída do país.

O golpe militar, que depôs o Presidente Umaro Sissoco Embaló, suspendeu o processo eleitoral de fomingo passado e encerrou as fronteiras do país. Esta situação coloca uma pressão imediata sobre a TAP Air Portugal, única companhia europeia com ligações aéreas regulares a Bissau. Em cenários anteriores de instabilidade – como o golpe de 2012 – a transportadora suspendeu temporariamente as operações, e é expectável que o faça novamente se a situação securitária se agravar ou se as autoridades aeronáuticas emitirem restrições.

Ainda assim, à data de hoje, continua a ser possível comprar bilhetes para Bissau no site da TAP para este sábado e para os habituais voos de terça, quinta e sábado das semanas seguintes. A companhia aérea não anunciou, até ao momento, qualquer suspensão formal da rota, mas a evolução do quadro político nas próximas horas será determinante.

O golpe de quarta-feira é mais um capítulo num país onde a instabilidade política é crónica e os investidores portugueses já aprenderam, a custo, que contratos assinados podem valer pouco quando mudam os generais.

Para a TAP, a rota Lisboa–Bissau tem valor estratégico na ligação à diáspora guineense em Portugal e ao fluxo de técnicos, empresários e cooperantes que mantêm a ponte económica entre os dois países. Uma interrupção prolongada teria impacto limitado nas contas da companhia, mas simbólico na perceção de risco do mercado lusófono africano.

O golpe de quarta-feira é mais um capítulo num país onde a instabilidade política é crónica e os investidores portugueses já aprenderam, a custo, que contratos assinados podem valer pouco quando mudam os generais. Para as empresas nacionais com presença no terreno, a equação permanece a mesma: margens atrativas num mercado com pouca concorrência, mas sujeitas a um prémio de risco que, de tempos a tempos, se cobra de forma abrupta.

Se a história serve de guia, Portugal continuará a exportar arroz, cimento e geradores para Bissau; mas quem ali fizer negócio fará bem em não esquecer que, neste nicho lusófono, a estabilidade é sempre provisória.​

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