Do teletrabalho ao subsídio de férias, o lado B da reforma da lei do trabalho

Anteprojeto "Trabalho XXI" prevê mais de 100 mudanças à legislação do trabalho. Além das medidas mais polémicas (e mediáticas), há, por exemplo, mexidas no teletrabalho, duodécimos e formação.

Entre as mais de 100 mudanças que o Governo quer fazer à legislação do trabalho, estão não só as medidas mais críticas e mediáticas — como o alargamento dos contratos a prazo e a limitação da dispensa para amamentação –, mas também alterações que têm tido menos atenção e dizem respeito, nomeadamente, ao teletrabalho, às plataformas digitais, ao trabalho doméstico e até à formação.

O pacote como um todo motiva, esta quinta-feira, a primeira greve geral conjunta da UGT e CGTP dos últimos 13 anos.

A intenção de rever o Código do Trabalho já tinha sido anunciada pelo primeiro Governo de Luís Montenegro, tendo o processo passado à prática no final de julho. Foi nessa altura que foi aprovado em Conselho de Ministros e apresentado na Concertação Social o anteprojeto “Trabalho XXI”, que prevê mais de 100 mudanças à lei laboral.

Entre essas muitas propostas, há algumas que têm conquistado maior atenção, sendo consideradas particularmente graves por parte dos sindicatos. Mas há também outras que, embora já tenham sido noticiadas, não têm feito correr tanta tinta. No dia em que os trabalhadores param em protesto contra este pacote, o ECO explica esse lado B menos conhecido da reforma da lei do trabalho.

Recusa de teletrabalho facilitada

Se a proposta do Governo for aprovada, vai ser mais fácil às empresas negarem teletrabalho aos seus empregados.

Hoje, quando as funções são compatíveis com o teletrabalho, se o trabalhador propuser um acordo, o empregador só pode recusá-lo com a indicação de um fundamento. Mas o anteprojeto da reforma da lei laboral elimina esse requisito. Segundo os advogados ouvidos pelo ECO, tal significa que será mais fácil ao empregador recusar teletrabalho a um empregado.

Por outro lado, hoje está estipulado que, quando a proposta de acordo de teletrabalho parte do empregador, “a oposição do trabalhador não tem de ser fundamentada”. Esse princípio também desaparece com a proposta do Governo, o que poderá abrir a porta a que os empregadores exijam aos trabalhadores uma justificação para a eventual recusa do teletrabalho.

O socialista Miguel Cabrita chegou a alertar que, sem essa salvaguarda, “as pessoas podem ser pressionadas a aceitar teletrabalho, quando é do interesse das empresas e não delas”.

Subsídios de Natal e férias em duodécimos

É uma das medidas nas quais o Governo já recuou (parcialmente). Em julho, a proposta que estava em cima da mesa era a de que o subsídio de Natal deveria ser pago até 15 de dezembro de cada ano ou em duodécimos com a retribuição mensal, se essa for a vontade expressa do trabalhador, prevendo-se também que o subsídio de férias pudesse ser pago em duodécimos juntamente com a retribuição mensal, se essa for a vontade expressa do trabalhador.

Já no documento enviado mais recentemente aos parceiros sociais, o Governo substituiu a expressão “se essa for a vontade expressa do trabalhador” pela exigência de que seja feito um acordo entre as partes, para que os subsídios sejam pagos em duodécimos.

Com este novo modelo, o Governo recupera o que tinha sido criado em 2003, mas foi eliminado quando a Troika esteve em Portugal.

Alterações para quem trabalha por conta própria

A reforma da lei do trabalho proposta pelo Governo não vai ter impacto apenas na vida de quem é trabalhador por conta de outrem. Há também mudanças na calha no que diz respeito ao trabalho independente.

O Governo quer fazer subir a fasquia a partir da qual se considera haver dependência económica. Hoje, está estabelecido que um trabalhador independente só é considerado economicamente dependente quando, pelo menos, 50% da sua atividade está ligada a um único beneficiário. O anteprojeto em discussão prevê que se passe a considerar que há dependência económica sempre que o prestador de trabalhado obtenha 80% do seu rendimento anual de um único beneficiário.

Esta mudança tem consequências várias na vida de quem trabalha por conta própria. Por exemplo, só os trabalhadores em dependência económica têm acesso, por exemplo, ao subsídio por cessação de atividade.

Acumular pensão e salário

É uma das medidas que não constavam do anteprojeto apresentado em julho, mas foram introduzidas na versão mais recente da proposta de revisão da lei do trabalho: o Governo quer eliminar a regra que proíbe a acumulação da reforma antecipada com salário.

Hoje, é proibida a acumulação de pensão antecipada de velhice, atribuída no âmbito da flexibilização, com rendimentos provenientes de exercício de trabalho ou atividade, a qualquer título, na mesma empresa ou grupo empresarial, por um período de três anos a contar da data de acesso à pensão antecipada.

O Governo quer, porém, eliminar essa norma, acolhendo, assim, uma das propostas da Confederação Empresarial de Portugal (CIP).

Não declarar trabalho doméstico deixa de ser crime

Desde 2023, com a Agenda do Trabalho Digno, que não declarar trabalhadores é crime, norma que levou a que milhares de trabalhadores domésticos (na sua maioria, mulheres) tenham entrado no sistema, pela primeira vez, ao longo dos últimos dois anos.

O Governo propõe, contudo, revogar essa norma, o que já foi duramente criticado pela ex-ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, nomeadamente no podcast do Trabalho by ECO “Trinta e oito vírgula quatro”.

“O objetivo foi dar um sinal claríssimo de afirmação de que é inaceitável que exista alguém que presta trabalho a outro sem ter uma proteção social associada a este trabalho. Foi um avanço histórico. Para que é que se elimina uma medida que teve este efeito positivo do ponto de vista de proteção de dezenas de milhares de trabalhadores, sem ter havido uma avaliação do ponto de vista quantitativo de impacto?, questionou a ex-governante.

Abdicar de créditos laborais sem ir a tribunal

Uma das vitórias da esquerda na Agenda do Trabalho Digno foi a garantia do pagamento de créditos devidos aos trabalhadores, como subsídios de férias ou de natal, quando são despedidos ou o contrato cessa, exceto se o empregado abdicar em tribunal.

No entanto, o Governo quer permitir que o trabalhador abdique desse tipo de direitos através de declaração reconhecida pelo notário.

“O crédito de trabalhador não é suscetível de extinção por remissão abdicativa, salvo nos casos em que o trabalhador declare expressamente a renúncia ao mesmo em declaração escrita reconhecida notarialmente nos termos da lei“, lê-se no anteprojeto. Os sindicatos criticam fortemente essa intenção do Executivo.

Jornada contínua no privado

Esta é outra das medidas que não constavam do anteprojeto apresentado em julho, mas foram introduzidas na versão mais recente da proposta de revisão da lei do trabalho: o Governo quer deixar na lei a possibilidade da jornada contínua no setor privado, à semelhança do que já consta da lei relativa ao trabalho no setor público.

A jornada contínua é um regime que permite ao empregado prestar o seu trabalho de forma ininterrupta (salvo um período de descanso de, no máximo, 30 minutos), de modo a que consiga sair mais cedo (até uma hora).

No setor privado, se a proposta do Governo se concretizar, a jornada contínua será um direito dos trabalhadores com filho menor de 12 anos ou, independentemente da idade, com filho com deficiência, doença crónica ou doença oncológica “que com ele viva em comunhão de mesa e habitação”.

Formação: identifique as diferenças

Em julho, o Governo propôs que as microempresas tivessem uma obrigação reduzida no que diz respeito às horas de formação que têm de garantir, por ano, aos seus trabalhadores, passando as 40 horas atuais para 20 horas. Mas no documento mais recente essa medida foi eliminada.

Por outro lado, nessa nova proposta, fazem-se alguns esclarecimentos, que impactam a vida de quem trabalha em part-time ou acabou de assinar um novo contrato de trabalho.

Quanto aos primeiros, o documento do Ministério do Trabalho clarifica que não se devem aplicar as 40 horas previstas para os trabalhadores a tempo completo, mas, em vez disso, o número de horas proporcional ao tempo de trabalho contratado.

Por outro lado, a nova proposta do Governo esclarece que, nos anos de admissão e cessação do contrato, o trabalhador tem direito a um número de horas de formação proporcional à duração do contrato durante esse mesmo ano, e não às 40 horas.

Sindicatos com entrada mais difícil nas empresas

Com o anteprojeto “Trabalho XXI”, o Governo quer também introduzir novos limites à atuação dos sindicatos nas empresas nas quais não há trabalhadores sindicalizados.

Há muito que o Código do Trabalho determina que os trabalhadores e os sindicatos têm “direito a desenvolver atividade sindical na empresa”. Mas havia uma discussão antiga sobre os casos em que não há delegados sindicais na empresa, até que, em 2023, com a entrada em vigor da Agenda do Trabalho Digno, a dúvida foi esclarecida.

Desde então, a lei dita que os direitos relacionados com reuniões no local de trabalho, utilização das instalações e afixação de informações sindicais aplicam-se “igualmente a empresas onde não existam trabalhadores filiados em associações sindicais”, com as “necessárias adaptações”.

O Governo quer agora eliminar essa norma, mas pretende introduzir alterações a outros artigos do Código do Trabalho, que garantem que os sindicatos continuarão a poder entrar nessas empresas, embora com restrições acrescidas.

No caso das reuniões de trabalhadores no local de trabalho, hoje os sindicatos podem convocar encontros tanto durante o horário de trabalho da generalidade dos trabalhadores ou fora do horário de trabalho. A proposta do Governo estabelece, porém, que, nas pequenas, médias e grandes empresas sem trabalhadores sindicalizados, os sindicatos só podem convocar reuniões fora do horário de trabalho e “desde que o âmbito subjetivo, objetivo e geográfico da associação sindical abranja os trabalhadores da empresa”.

Por outro lado, no que diz respeito à afixação e distribuição de informação sindical, hoje está previsto que o delegado sindical tem direito a fazê-lo nas instalações da empresa e em “local apropriado disponibilizado pelo empregador”. Neste caso, o Governo propõe que, nas empresas onde não existam trabalhadores sindicalizados, as associações sindicais “cujo âmbito subjetivo, objetivo e geográfico abranja os trabalhadores da empresa” possam solicitar ao empregador que afixe ou permita a afixação a informação em causa.

Novas regras do trabalho nas plataformas digitais

Desde maio de 2023 que o Código do Trabalho abre a porta a que os estafetas sejam considerados trabalhadores dependentes, desde que sejam registados indícios de subordinação. A proposta de revisão da lei laboral do Governo não elimina esse mecanismo, mas reformula-o.

Antes de mais, define-se que o mecanismo só se aplica, quando o estafeta presta atividade à plataforma em causa de forma regular e quando, pelo menos, 80% da sua atividade está ligada a esse beneficiário (ou seja, está em situação de dependência económica).

Por outro lado, passa-se a incluir os estafetas no mecanismo de presunção de contrato de trabalho aplicável à generalidade do mercado de trabalho, acrescentando aos indícios de subordinação gerais outros adaptados a essa realidade concreta.

Em concreto, os indícios especificamente pensados para o trabalho nas plataformas digitais são os seguintes: a determinação dos períodos de trabalho ou ausência pelo beneficiário da atividade, restrições à liberdade de aceitação de tarefas pelo prestador de atividade, limitação do recurso a subcontratados ou substitutos pelo prestador de atividade, e a escolha dos clientes pelo beneficiário da atividade.

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