O mito do excesso de garantias
É tempo de abandonarmos o princípio do achismo e de submetermos todo o debate da justiça criminal aos princípios científico-jurídicos inatos ao Estado de direito democrático.
O excesso de garantias processuais penais é tido como um dos maiores problemas da morosidade da justiça criminal, em especial as admissibilidades de recurso por parte dos arguidos. Dois mitos urbanos instalaram-se nos discursos políticos e jurídicos: o excesso de garantias e a morosidade da justiça criminal.
Quanto ao segundo mito, cujo tratamento nos remete para os relatórios internacionais, há que elucidar que a justiça criminal em Portugal, em geral, não é morosa. A maioria dos processos-crime que resultam em acusação chegam a Ítaca num tempo normal (tempo razoável). Não podemos nem devemos trazer para este debate os megaprocessos e os processos de elevada complexidade e especialidade como se a justiça criminal neles se esgotasse. Confundir estas realidades e utilizá-las para propalar uma maior eficácia não parece ser o mais acertado para discutir os problemas da justiça criminal.
Mais avisado seria perguntarmo-nos se a opção do megaprocesso é a mais adequada para prevenir e reprimir essa a criminalidade. Pouco ou nada se fala sobre esta estratégia dos operadores judiciários responsáveis pela persecução criminal, quando se lhe impunha uma séria reflexão. Perceber o «porquê» da estratégia do megaprocesso seria um passo de gigantes e de extrema relevância para conhecermos, com maior profundidade, os reais entolhos de um sistema penal que pretende realizar a justiça sem que algum inocente seja preso.
O que se tem revelado ainda mais preocupante, por empolgar o discurso justicialista e quantas vezes securativista, é o mito de que os arguidos gozam de garantias processuais penais a mais, desde logo o direito ao recurso. Note-se que, desde 2007, o espaço de admissibilidade de recurso tem vindo a diminuir de reforma em reforma, melhor, de alteração em alteração legislativa.
O reforço das inadmissibilidades de recurso em processo penal tem sido a tónica de uma política criminal pro-securitária sem que primeiro se faça um aprofundado estudo sobre se a propalada morosidade tem como fundo o exercício de um direito fundamental pessoal constitucionalizado e consagrado nos instrumentos jurídicos supranacionais assinados, aprovados e ratificados por Portugal.
Ninguém se debruça sobre a necessidade de se estudar profundamente as razões de ser dos problemas da justiça criminal: p. e., será a organização judiciária desatualizada ao tempo e ao espaço (?); será o abandono da reserva de código nas matérias criminais e, por essa razão, o emaranhado de leis e leis em confronto gerando uma contínua insegurança jurídica (?); será a formação técnica e jurídica dos operadores judiciários (?); será alguma incongruência normativa processual penal (?); será o desrespeito por princípios regentes do sistema processual penal constitucionalizados (?); será a incessante teimosia em não se interpretar as normas processuais penais em conformidade com a Constituição?; será um deficit democrático da realização da justiça (?).
Muitas (mais) questões se podem convocar para o debate da justiça criminal e se exige que sejam convocadas caso se pretenda olhar para as questões da justiça criminal sem as reduzir ou sem esgotar o debate ao mito das garantias processuais penais dos arguidos. Impõe-se uma urgente autocrítica em detrimento de um empurrar ensurdecedor de ‘culpas’ para as garantias dos arguidos que aos poucos vêm sendo restringidas em cada alteração legislativa.
É tempo de abandonarmos o princípio do achismo e de submetermos todo o debate da justiça criminal aos princípios científico-jurídicos inatos ao Estado de direito democrático cuja edificação custou liberdades dos nossos antepassados e, em muitos casos, vidas humanas. Se tivermos a coragem de o fazer, por mais que a frontalidade nos atordoe, saberemos, com clareza, que o discurso das garantias é um mito urbano e não uma realidade.
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