Novas regras de trabalho em plataformas geram dúvidas e arriscam tropeçar na “lei da Uber”

Especialistas dividem-se quanto à forma como as novas regras de trabalho em plataformas digitais convivem com a chamada "lei da Uber", em vigor desde 2018. Deputados admitem mudar regime do TVDE.

As novas regras do trabalho em plataformas digitais estão a gerar dúvidas de interpretação e até arriscam tropeçar na regulamentação dos “Ubers” (TVDE, transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma). Mesmo os advogados contactados pelo ECO têm interpretações distintas daquilo que foi aprovado pelos deputados na passada sexta-feira.

No cerne da questão está o novo artigo 12.º-A do Código do Trabalho, que regulamenta a presunção da existência de um contrato de trabalho dependente para quem seja motorista ou estafeta das plataformas digitais. Após avanços e recuos na Assembleia da República, o texto em cima da mesa dá primazia a que os tribunais reconheçam que o vínculo laboral existe para com a própria plataforma. Mas a relação também pode ser reconhecida perante um intermediário.

A discussão esteve num impasse durante várias semanas até que PS e BE chegaram a um entendimento que viabilizou a aprovação na especialidade na passada sexta-feira. Só que um dos números acrescentados ao texto em cima da hora da votação pode tornar a chamada “lei da Uber” incompatível com o novo Código do Trabalho (e vice-versa). Trata-se do número 12, que foi proposto pelos bloquistas para salvaguardar que as novas regras também se aplicarão à atividade do TVDE.

Em concreto, a lei estipula que “a presunção prevista no n.º 1 aplica-se às atividades de plataformas digitais, designadamente as que são reguladas por legislação específica relativa a transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica”. Mas a presunção prevista no referido n.º 1 só faz referência às próprias plataformas, sendo que o regulamento do TVDE, aprovado em 2018, não prevê a existência de contratos com as plataformas. Determina, aliás, que o acesso à atividade é feito através de um intermediário, que tem de ser uma pessoa coletiva.

Contactado pelo ECO, o deputado bloquista José Soeiro fala na existência de “uma discrepância” entre o artigo 12.º-A e o “regime específico de TVDE” que “terá de ser resolvida no respeito pela nova presunção”. “Parece-me evidente que o n.º 12 é incompatível com a lei TVDE como hoje está escrita, porque remete para a impossibilidade de reconhecer contratos com plataformas”, acrescenta, prevendo que a lei dos “Ubers” tenha, por isso, de ser alterada em conformidade.

Por sua vez, o deputado socialista Fernando José, que coordena o grupo de trabalho que está a discutir a Agenda do Trabalho Digno no Parlamento, não conseguiu esclarecer, no momento, se vê uma incompatibilidade entre os dois regimes, mas abriu a porta a novas alterações legislativas, caso sejam necessárias. “Teremos de verificar se essa incompatibilidade se verifica. Se existir, obviamente que as legislações terão de ser harmonizadas. Se tiver de existir, irá acontecer.”

Teremos de verificar se essa incompatibilidade se verifica. Se existir, obviamente que as legislações terão de ser harmonizadas. Se tiver de existir, irá acontecer.

Fernando José

Deputado do PS

Fora das galerias do Parlamento, o novo artigo do Código do Trabalho também deixa margem para dúvidas interpretativas. Por exemplo, o advogado Pedro da Quitéria Faria, sócio da Antas da Cunha Ecija, vê uma “putativa contradição ou dúvida” no novo regime.

“Aparentemente existe um lapso ou omissão que induz a uma potencial contradição, que pode provir de má técnica legislativa ou da especial celeridade e pela forma como se consensualizou à 25.ª hora a aprovação na especialidade deste novo artigo 12º-A. Isto porque, de facto, o n.º 12 remete expressamente para plataformas digitais eletrónicas por remissão para o seu n.º 1 e a designada, comummente, como ‘Lei Uber’ de 2018 remete-nos para os motoristas de transporte individual e remunerado de passageiros o façam através de um intermediário”, diz o advogado ao ECO.

O especialista em legislação laboral sugere, como uma das soluções para o problema “com alguma facilidade” e “a bem da clareza e conexão entre os regimes”, alterar a lei da Uber para que a nova presunção de laboralidade aprovada agora na especialidade possa caber também na figura da plataforma digital”. O advogado propõe ainda outra possibilidade, que envolveria interpretar “extensivamente” os outros números do novo artigo do Código do Trabalho. Mas, dada a complexidade dessa opção, o próprio admite que tal levantaria “maiores dúvidas interpretativas” quando “o que se pretende é, absolutamente, o contrário”.

“Em suma e em boa verdade, parece-me que o espírito do legislador, até por referência ao constante na Agenda para o Trabalho Digno, será o de que a inversão do ónus da presunção de laboralidade ocorra quer para plataformas digitais quer para intermediários, como demonstram os números 1 a 6 do novo artigo, bem como, para os motoristas TVDE, razão pela qual entendo que, com relativa simplicidade, esta dúvida será rapidamente sanada”, remata Pedro da Quitéria Faria.

Aparentemente existe um lapso ou omissão que induz a uma potencial contradição, que pode provir de má técnica legislativa ou da especial celeridade e pela forma como se consensualizou à 25.ª hora a aprovação na especialidade deste novo artigo 12.º-A.

Pedro da Quitéria Faria

Sócio da Antas da Cunha Ecija

Já Susana Afonso, sócia da CMS e especialista em legislação laboral, tem outra posição face ao novo artigo aprovado na especialidade. “Parece-nos que não existe nenhuma situação de incompatibilidade entre a proposta de redação do artigo 12.º-A com o regime jurídico” do TVDE, assegura a advogada.

“De acordo com o projeto de redação do artigo 12.º-A, a presunção aplica-se às plataformas digitais, bem como, às entidades/pessoas singulares que atuem como intermediários. Nos termos do n.º 5 do referido artigo, a plataforma digital pode invocar que atividade é prestada perante pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores. Para além da situação referida, o próprio prestador de serviço pode ainda alegar que mantêm uma relação de subordinação jurídica com o intermediário e não com a plataforma digital. Em ambas as situações, caberá ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora, conforme disposto no n.º 6 do referido artigo”, detalha.

Autores do Livro Verde propõem atualizar “lei da Uber”

A lei da Uber, aprovada em 2018, já previa que o regulamento fosse reavaliado e, potencialmente, sujeito a alterações, um processo que está manifestamente atrasado nesta altura. Essa poderá ser a oportunidade para rever o disposto no regime do TVDE, adaptando-o às novas regras aprovadas no Parlamento, caso os deputados venham a entender ser necessário.

A opção é admitida pelos dois autores do Livro Verde do Futuro do Trabalho, o documento pedido pelo Governo que serviu de base às alterações à lei laboral em discussão. Ao ECO, Guilherme Dray, professor universitário, salienta que “é natural que se pondere a atualização” do regime TVDE, “de forma a adequá-lo à nova presunção de contrato de trabalho no âmbito das plataformas digitais”, tendo em conta que o mesmo “está pensado e concebido na lógica da existência de um intermediário – o operador TVDE – que contrata os motoristas”.

“Para o efeito, nem é necessário muito. Basta dizer-se, neste regime jurídico especial, que a atividade de transporte de passageiros tanto pode ser desempenhada por um operador de TVDE, como por um motorista individual contratado diretamente pela própria plataforma digital. E dizer se, também, que o motorista pode lançar mão da presunção prevista, não no atual artigo 12.º do Código do Trabalho, mas no novo artigo 12.º-A, especificamente dedicado ao trabalho prestado nas plataformas digitais”, propõe o especialista, que recorda, precisamente, que a lei, ela própria, prevê “a necessidade da sua atualização e reavaliação”.

Todavia, Guilherme Dray entende que a “lei da Uber” não implica, “necessariamente, que haja uma proibição da contratação de motoristas individuais por parte das plataformas digitais”. “Ou seja, aquela lei está feita no pressuposto da existência de um intermediário; mas nada no nosso ordenamento jurídico proíbe uma plataforma de contratar diretamente um motorista individual, ou que um juiz determine que existe um contrato de trabalho entre ambos. Quer a liberdade de gestão empresarial, quer a liberdade de trabalho, ambas previstas na Constituição, não se opõem a que uma plataforma contrate diretamente motoristas. Basta que ambos queiram”, defende.

Na segunda-feira, ao Público (acesso condicionado), Teresa Coelho Moreira, que também foi autora do Livro Verde do Futuro do Trabalho, disse que a lei TVDE “além de obrigar a criar um intermediário, diz expressamente que se aplica o artigo 12.º do Código do Trabalho e a dúvida era se se aplicava o novo artigo 12.º-A”. Tal “pode levar [o legislador] a pensar que tem de fazer uma alteração no sentido de eliminar a obrigatoriedade do intermediário que agora está na lei TVDE”, reconheceu, igualmente, a professora de Direito da Universidade do Minho.

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