Do salário mínimo aos dias de férias. Saiba o que vai mudar no trabalho em plataformas
- Flávio Nunes
- 18 Dezembro 2022
Deputados aprovaram esta semana um novo conjunto de regras para quem trabalha em plataformas como Uber, Bolt, FreeNow e Glovo. Saiba o que diz a lei e quais os novos direitos.
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- Flávio Nunes
- 18 Dezembro 2022
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O que vai mudar para os trabalhadores das plataformas?
O Parlamento aprovou na especialidade um novo conjunto de regras para o trabalho ao serviço de plataformas digitais, como Uber, Bolt, FreeNow e Glovo. Se o pacote merecer a aprovação final dos deputados, como se espera, o Código do Trabalho ganha um novo artigo que regulamenta a “presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital”.
A principal novidade aqui prende-se com um conjunto de seis “características” que ajudam a determinar se um trabalhador deve ser considerado funcionário da própria plataforma (saiba quais são os critérios na resposta seguinte).
Atualmente, parte das pessoas que trabalham nessas aplicações como motoristas ou estafetas não têm vínculo laboral com a própria plataforma. E já são “milhares” em todo o país, segundo o deputado do PS Fernando José.
Isto acontece porque, muitas vezes, o serviço é prestado através de um intermediário – por exemplo, uma empresa que tenha carros a transportar passageiros através da Uber. Aliás, nesse setor em concreto, a figura do intermediário até está consagrada numa lei de 2018 que ficou conhecida por “Lei da Uber”, porque veio regulamentar este novo negócio.
Mediante as novas regras, um trabalhador pode recorrer à Justiça para ver reconhecidos os seus direitos enquanto tal. Vai depender um pouco do caso concreto, mas a lei aprovada pelos deputados esta quinta-feira prevê que a existência de contrato de trabalho dependente é presumida, primeiramente, com a própria plataforma, caso se verifiquem, pelo menos, duas das tais “características”.
Historicamente, as plataformas não reconhecem estes trabalhadores como seus próprios funcionários. E também vão ter uma palavra a dizer neste processo. A nova lei determina que, caso a plataforma não queira ver esse vínculo ser reconhecido pela Justiça, tem de fazer “prova” de que “o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata”.
Mais: a plataforma “pode, igualmente, invocar que a atividade é prestada perante pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores”.
Nesses casos, é o tribunal a decidir quem é o patrão – se o intermediário, se a plataforma. A lei é clara nesse aspeto: cabe “ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora”, lê-se no articulado.
Proxima Pergunta: Quais os critérios para que haja vínculo laboral?
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Quais os critérios para que haja vínculo laboral?
As novas regras determinam que “presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital, se verifiquem algumas das seguintes características” – ou seja, pelo menos, duas:
- “A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela.”
- “A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade.”
- “A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica.”
- “A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma.”
- “A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta.”
- “Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por estes explorados através de contrato de locação.”
Proxima Pergunta: Que outras proteções e direitos estão previstos?
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Que outras proteções e direitos estão previstos?
A lei aprovada na especialidade especifica, em linhas gerais, os direitos que ficam salvaguardados quando um trabalhador consiga que lhe seja reconhecida a existência de contrato de trabalho.
Além de tudo o que estiver disposto no Código do Trabalho que seja compatível “com a natureza da atividade desempenhada”, passa a valer tudo o que estiver “disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias e limites ao período de trabalho”. Depende, depois, se o vínculo de trabalho dependente é reconhecido para com um intermediário ou a própria plataforma.
Os deputados acrescentaram ainda uma série de proteções. Por exemplo, a plataforma não pode estabelecer regras de acesso à atividade ou de “gestão algorítmica” que sejam “mais desfavoráveis ou de natureza discriminatória” para quem trabalhe diretamente para a plataforma, em comparação com quem trabalhe através de um intermediário. É uma forma de garantir que a prestação da atividade é feita nos mesmos termos, independentemente do vínculo que o trabalhador tiver.
A lei determina ainda que tanto a plataforma como o intermediário, bem como “os respetivos gerentes, administradores ou diretores, assim como sociedades que com estas se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, são solidariamente responsáveis pelos créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, celebrado entre o trabalhador” e o intermediário, “bem como pelos encargos sociais correspondentes e pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contraordenação laboral relativos aos últimos três anos”.
Segundo o Jornal de Negócios, foi também aprovada por unanimidade uma outra proposta do BE que prevê que a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) desenvolva, “no primeiro ano de vigência da presente lei, uma campanha específica de fiscalização deste setor, sobre a qual é elaborado um relatório a ser entregue e debatido na Assembleia da República.
Proxima Pergunta: Porquê estas mudanças agora?
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Porquê estas mudanças agora?
Portugal decidiu avançar com estas medidas no âmbito da discussão da Agenda do Trabalho Digno, um pacote de alterações à legislação laboral que está em discussão na Assembleia da República. Como ponto de partida, uma proposta de lei apresentada pelo Governo, que foi alvo de alterações por parte dos partidos.
O país decidiu não esperar pela União Europeia, onde o tema também está em discussão, na sequência de uma proposta da Comissão Europeia.
Em dezembro de 2021, Bruxelas divulgou a proposta de diretiva, que ficou conhecida por Platform Work Bill (Lei do Trabalho em Plataformas), onde se incluem “medidas para determinar corretamente o estatuto profissional das pessoas que trabalham através de plataformas digitais de trabalho e os novos direitos, tanto para os trabalhadores por conta de outrem como para os trabalhadores independentes, no que diz respeito à gestão algorítmica”.
O processo tem seguido os seus trâmites nas instituições europeias, incluindo no Parlamento Europeu. Ainda este mês, a Comissão do Trabalho aprovou medidas para combater os falsos recibos verdes no negócio das plataformas, entre outras medidas.
Tudo isto acontece numa altura em que cada vez mais europeus e estrangeiros trabalham ao serviço destas aplicações, que tendem a passar as responsabilidades para empresas “parceiras”, como acontece em Portugal. O objetivo é conferir mais direitos e proteções a estas pessoas, retirando algum do poder às plataformas.
Proxima Pergunta: Quando entram em vigor as novas regras?
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Quando entram em vigor as novas regras?
Ainda não se sabe ao certo. O novo artigo foi aprovado numa subcomissão na Assembleia da República e ainda tem de ser sujeito a votação final global, bem como a publicação no Diário da República.
O objetivo inicial era que as alterações à legislação laboral que estão em discussão entrassem em vigor em janeiro de 2023, mas não é garantido que isso aconteça.
Proxima Pergunta: O que dizem as plataformas?
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O que dizem as plataformas?
Cientes das mudanças no horizonte, as plataformas Bolt, Glovo e Uber uniram a sua voz e criaram uma associação, a que chamaram de Associação Portuguesa das Aplicações Digitais (APAD).
A oposição das plataformas a estas alterações legislativas fica clara num artigo de opinião publicado no ECO e assinado pelos diretores-gerais das quatro principais plataformas digitais em Portugal: David Ferreira da Silva, da Bolt; Bruno Borges, da Free Now; Joaquín Vázquez, da Glovo; e Francisco Vilaça, da Uber.
No texto, publicado antes da aprovação da versão final, argumentam que “as plataformas vieram dinamizar atividades económicas que já existiam, trazendo simplicidade, conveniência e conforto para todos quantos intervêm nesta cadeia de valor”.
“São os restaurantes, os pequenos comércios, os empresários em nome individual, os estafetas, os motoristas. São empresas, micro, pequenas ou médias cuja atividade subsistiu durante a pandemia graças às plataformas e têm agora uma atividade consolidada que garante um rendimento regular acima da média. É este o contexto que tem de ser levado em conta quando falamos das alterações presentemente em curso ao Código do Trabalho”, dizem.
Os diretores acusam os deputados de não se esforçarem por “entender a realidade” que querem regular e diziam que as propostas em cima da mesa não respondiam “aos anseios e às necessidades dos diversos agentes que fazem parte deste ecossistema”.
“Aquilo que se quer é voltar ao período anterior à entrada das plataformas? Um tempo sem inovação, crescimento ou emprego nestes setores. Um tempo em que restaurantes e comerciantes não tinham capacidade para chegar aos seus clientes? Em que os clientes tinham de esperar horas ou dias para receber qualquer encomenda? Em que não existiam alternativas de transporte fiáveis, acessíveis e flexíveis para se chegar de forma simples e rápida onde se quisesse?”, questionam.
Para estes responsáveis, “sabendo que esta discussão também está a acontecer na Europa, com negociações entre a Comissão e o Parlamento Europeu, porque há de Portugal se apressar?”
Por fim, as plataformas defendem “a promoção do diálogo social como base para a melhoria das condições de trabalho de motoristas e estafetas, preservando os muitos aspetos positivos que foram conseguidos até aqui”. “Uns e outros não devem ser forçados a escolher entre proteção social e o acesso a oportunidades de trabalho. Uns e outros não devem ser forçados a escolher entre trabalhar onde, como e com quem querem e direitos que todos devem ter, independentemente da forma como decidem organizar a sua vida. Ora, é precisamente isto que a atual proposta de Agenda do Trabalho Digno implicará. As plataformas digitais a operar em Portugal acham que ainda outro caminho é possível.”
Proxima Pergunta: Qual o texto final da lei?
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Qual o texto final da lei?
Com base na última proposta do PS e nas alterações introduzidas pelo BE, o novo artigo do trabalho em plataformas deverá ter a seguinte formulação:
Artigo 12.º-A
Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital
1 – Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou
estabelece limites máximos e mínimos para aquela;b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas,
nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;
d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à
organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;
f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por estes explorados através de contrato de locação.
2 – Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente desse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.
3 – O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico.
4 – A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.
5 – A plataforma digital pode, igualmente, invocar que a atividade é prestada perante pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.
6 – No caso previsto no número anterior, ou caso o prestador de atividade alegue que é trabalhador subordinado do intermediário a que se refere o número anterior, aplica-se igualmente, com as necessárias adaptações, a presunção a que se refere o número 1, bem como o disposto no número 3, cabendo ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora.
7 – A plataforma digital não pode estabelecer termos e condições de acesso à prestação de atividade em plataforma digital, incluindo na gestão algorítmica, mais desfavoráveis ou de natureza discriminatória para os prestadores de atividade que estabeleçam uma relação direta com a plataforma, comparativamente com as regras e condições definidas para as pessoas singulares ou coletivas que atuem como intermediários da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.
8 – A plataforma digital e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores, bem como os respetivos gerentes, administradores ou diretores, assim como as sociedades que com estas se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, são solidariamente responsáveis pelos créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, celebrado entre o trabalhador e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital, bem como pelos encargos sociais correspondentes e pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contraordenação laboral relativos aos últimos três anos.
9 – Nos casos em que se considere a existência de contrato de trabalho, aplicam se as normas previstas no presente Código que sejam compatíveis com a natureza da atividade desempenhada, nomeadamente o disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação.
10 – Constitui contraordenação muito grave imputável ao empregador, seja ele a plataforma digital ou pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores que nela opere, a contratação da prestação de atividade, de forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado.
11 – Em caso de reincidência são ainda aplicadas ao empregador as seguintes sanções acessórias:
a) Privação do direito a apoio, subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público, designadamente de natureza fiscal ou contributiva ou proveniente de fundos europeus, por período até dois anos;
b) Privação do direito de participar em arrematações ou concursos públicos, por um período até dois anos.
12 – A presunção prevista no n.º 1 aplica-se às atividades de plataformas digitais, designadamente as que são reguladas por legislação especifica relativa a transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica.