É no Complexo do Carregado onde o Banco de Portugal tem as impressoras de notas e o nosso ouro. Mas a fábrica do dinheiro guarda um bem ainda mais precioso: a nossa confiança no sistema financeiro.
No Complexo do Carregado, onde se imprime dinheiro “às paletes” e onde está parte importante das nossas reservas de ouro, o Banco de Portugal protege um bem ainda mais precioso. É a partir de lá que o banco central disponibiliza de forma ininterrupta a liquidez necessária para os bancos sobreviverem à azáfama diária da circulação do dinheiro na economia. Numa altura em que a viabilidade do sistema financeiro apresenta níveis de descrença nunca vistos, é na fábrica do dinheiro onde o Banco de Portugal guarda imponentemente a nossa confiança.
Quem chega à zona industrial do Carregado, a cerca de 30 minutos de Lisboa, facilmente repara num complexo rodeado de muros altos e de militares da GNR armados até aos dentes ao lado de uma simples fábrica de batatas fritas. Os mais distraídos podem não perceber a razão de tal aparato de segurança. Mas no seu interior de 67.000 metros quadrados trabalha a Valora, a fábrica do dinheiro do Banco de Portugal e cujas impressoras produziram 108 milhões de novas notas de 50 euros num total de 5.400 milhões de euros. Mais. Metade das reservas de ouro portuguesas, avaliadas em 6.000 milhões de euros, está guardada numa pequena câmara austera dentro da casa forte do complexo.
António (nome fictício) é um dos funcionários do Banco de Portugal. Pede para que não sejam tiradas fotografias em que seja facilmente identificado. Quem trabalha neste setor está mais sujeito ao tiger kidnaping, um tipo de rapto com vista à execução de outro crime por parte da vítima. “No ano passado, registaram-se três raptos de elementos do Banco de Inglaterra por causa do fácil acesso que têm ao dinheiro. Mas iludem-se”, conta. Por isso, todos os cuidados são poucos. E nem os filhos podem dizer na escola onde o pai trabalha.
Mas a principal função do Complexo do Carregado não passa sequer pela impressão das notas — o Banco de Portugal pode ser substituído nessa tarefa por outros 15 bancos centrais do Eurosistema com capacidade para produzir dinheiro (sob orientação de Frankfurt). Todos os dias, ao início da tarde, as empresas de transporte de valores vão lá buscar dinheiro vital para alimentar a rede de bancos e ATM que suporta toda a atividade económica, desde levantamentos no multibanco até empréstimos às famílias e empresas. No fundo, é como se fosse o coração que bombeia sangue para todo o corpo. E se para de bombear dinheiro para a economia…
Em 2016, foram levantados no banco central 10.570 milhões de euros, de acordo com o Relatório da Emissão Monetária, apresentado esta semana em simultâneo com a introdução da nova nota de 50 euros. É sobretudo no período das férias e do Natal, em que há maior disponibilidade para o consumo da parte das famílias portuguesas, que se registam picos de levantamentos e aos quais o Banco de Portugal dá sempre resposta.
Exportar e sanear
Nesta unidade industrial do Banco de Portugal as notas são tratadas como se fossem uma mercadoria qualquer. Na verdade, a Valora — detida integralmente pelo banco central — funciona como uma empresa transformadora como muitas outras: recebe uma matéria-prima (neste caso, algodão), há máquinas e pessoal qualificado que a processa e transforma num produto final e as notas são colocadas em paletes de muitos milhões de euros.
Como numa fábrica qualquer, há um custo de produção: cada nota tem um preço de fabrico entre seis cêntimos e dez cêntimos, dependendo do tamanho e especificidades de cada denominação. E há uma forte vertente de exportação: dos 5.400 milhões de euros produzidos o ano passado, 4.800 milhões de euros foram destinados a outros bancos centrais de zona euro. Sim, a Valora seria uma das maiores exportadoras nacionais…
Números do cofre forte do Banco de Portugal
Da mesma forma que as empresas de transportes e valores vão lá levantar dinheiro, também lá vão depositar os excessos de caixa que os bancos registam no final de cada dia de trabalho. Os bancos confiam mais nos cofres do Banco de Portugal do que nos seus próprios cofres. No ano passado, foram depositados mais de 12.000 milhões de euros junto do banco central liderado por Carlos Costa. Todas as operações de levantamento e depósito ficam registadas no “livro do merceeiro”.
Assim que o dinheiro chega ao Complexo do Carregado, inicia-se uma importante tarefa de regeneração das notas que usamos e desgastamos todos os dias. São cinco máquinas no departamento de saneamento que verificam as condições materiais de 33 notas por segundo, mais de 14 milhões de notas por dia. Assim, as notas que estiverem danificadas já não regressam à circulação, são destruídas e substituídas por novas.
É também a esta unidade que chegam notas em profundo estado de degradação, como as que escaparam ao incêndio que destruiu por completo a fábrica Conforama, em 2015. Face ao elevado grau de estragos, estas notas exigem um trabalho de pinças bem mais minucioso, quase de cirurgião. Só assim se consegue uma recomposição quase integral da nota para que possa ser considerada válida para substituição.
“Aqui cobrimos todas as fases do ciclo de vida da nota. Como são de uso diário, as notas são um produto sujeito a enorme desgaste”, diz Hélder Rosalino, administrador do Banco de Portugal.
A casa suspensa e o ouro da URSS
Hélder Rosalino, antigo secretário de Estado da Administração Pública e atual responsável pela emissão monetária, é o guardião da casa forte do Banco de Portugal. Só ele determina quem pode entrar no principal cofre do banco central.
A casa forte encontra-se bem no interior do Complexo e o seu sistema de segurança é tão apertado que este cofre está “suspenso no ar”. Qualquer tentativa de assalto por via subterrânea é facilmente detetada pelos sensores que estão colocados por debaixo desta caixa de segurança. Não é para menos. É lá onde está a reserva fiduciária em numerário e ainda metade das reservas de ouro do país no valor de 6.000 milhões de euros.
Ironicamente, ao contrário do valor que guarda, a casa forte é tudo menos apelativa. É como se fosse um simples armazém, com lâmpadas fluorescentes, mas com o “pormenor” de guardar milhões e milhões de notas empilhadas em paletes que permitem dar resposta a situações de crise. Ao lado, num pequeno compartimento isolado, estão os lingotes de metal amarelo do Banco de Portugal. É uma pequena câmara, parecida com um bunker, onde estão cerca de 190 das 382 toneladas de barras de ouro que Portugal tem, dispostas em prateleiras. Algumas destas barras têm gravadas a foice e o martelo da antiga URSS, a origem desse ouro.
Inaugurado em 1995, constituído por 54 mil metros de betão e sete mil toneladas de ferro, o Complexo do Carregado é um autêntico cofre gigantesco que guarda e protege mais do que o dinheiro que produz e as reservas de ouro nacionais. Está lá a nossa confiança no sistema financeiro. E esse é o bem mais precioso.
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A fábrica do dinheiro onde o Banco de Portugal guarda a nossa confiança
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