Sem “colo” de Marcelo, tensão política volta à mesa do Conselho de Estado
Avaliação ao Governo na segunda ronda no Palácio de Belém aquece motores da política portuguesa, com o Presidente a fazer marcação cerrada e a ser “um fator de desgaste” para o Executivo socialista.
O clima de tensão entre a Presidência da República e o Governo deve voltar esta terça-feira à tarde a assumir contornos mais institucionais quando for retomada a reunião do Conselho de Estado, que tinha sido interrompida a 21 de julho sem que o primeiro-ministro e o chefe de Estado tivessem sequer realizado as suas intervenções de fundo. No arranque do novo ano político, habitação, juros, inflação, estagnação económica, redução de impostos e privatização da TAP são os principais temas na agenda, ameaçando gerar novas clivagens nos próximos meses entre os dois maiores protagonistas da política portuguesa.
Depois de um regresso em modo suave, com o PSD a apresentar cinco propostas fiscais no tradicional discurso da Festa do Pontal, Marcelo Rebelo de Sousa agendou esta segunda parte do encontro com os conselheiros para a véspera da rentrée do PS – António Costa vai discursar na quarta-feira na abertura da Academia Socialista, em Évora, que só termina a 10 de setembro –, que está a ser encarado pelos analistas como o “tiro de partida” para os vários atos eleitorais programados para os próximos quatro anos. Depois das regionais na Madeira já a 24 de setembro, seguem-se as europeias em junho de 2024 e as autárquicas em outubro de 2025, a anteder as presidenciais e as legislativas no ano seguinte.
“O Conselho de Estado é um órgão apagado, por natureza, mas a partir do momento em que o Presidente da República o convoca, não deixa de ter algum impacto público, o que significa que [Marcelo], como prometeu, está atento ao que se passa na vida política”, sublinha ao ECO o professor de Ciências Políticas da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, José Palmeira. Notando que o chefe de Estado já “sobrevalorizou” as europeias ao avisar para o efeito que podem ter na “governabilidade dos países”, o que “significa que não vai deixar de fazer uma leitura interna” desse resultado eleitoral.
A reunião para a análise da “situação “política, económica e social” foi originalmente convocada com o objetivo de avaliar o Governo no final da comissão parlamentar de inquérito à TAP, que deixou os dois Palácios em conflito aberto após Costa decidir não aceitar a demissão do ministro das Infraestruturas. Na primeira parte da reunião, que durou quatro horas, segundo relatos publicados na imprensa, as principais vozes críticas foram as de Cavaco Silva, Marques Mendes, Lobo Xavier, Francisco Pinto Balsemão e Miguel Cadilhe. Entretanto, a pressão sobre Galamba arrefeceu, mas a desconfiança em Belém acabou por provocar outros episódios de tensão.
Já depois de ter chumbado uma primeira versão do diploma sobre o tempo congelado dos professores, a 21 de agosto, Marcelo vetou o pacote Mais Habitação com duras críticas às medidas e também à forma como o Governo as decidiu sem ouvir ninguém. Do lado do PS, recebeu a resposta imediata e liminar de que o programa será confirmado sem alterações no Parlamento dentro de poucas semanas. Porém, em entrevista à TVI este domingo, o Presidente disse que há uma “segunda parte da história”. “Esse diploma precisa de regulamentação e tem de vir às minhas mãos. Parece um caso encerrado, não é”, avisou. Mariana Mortágua, líder do BE, atirou esta segunda-feira que os portugueses preferem saber “como se resolve a crise da habitação” do que assistir a “conflitos palacianos”.
O chefe de Estado, que pela primeira vez desde que está no cargo, participou em Castelo de Vide na Universidade de Verão do PSD, ao lado de Luís Montenegro, deixou antever na mesma entrevista outros dossiês em que estará vigilante. Desde logo, o decreto-lei que vai definir o modelo de privatização da TAP, que o Executivo socialista prometeu para setembro; e a descida dos impostos para a qual vê “com bom senso, uma folga no Orçamento” do Estado para 2024, correspondendo a “um apelo social muito grande para se ir exonerando as famílias e as empresas”. No que toca ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), assinalou ser essencial executar “tudo até ao último cêntimo e o melhor possível”, pois é preciso que dinheiro chegue “ao terreno” dentro dos prazos previstos, notou ainda.
“Governo conta apenas com as suas próprias forças”
Na semana passada, Marcelo Rebelo de Sousa indicou que a intervenção que fará na reunião desta tarde terá “em linha de conta” as opiniões dos conselheiros, reconhecendo até que “está escrita há muito tempo”. Nestas reuniões, a regra é o segredo, com a lei a determinar que “as atas do Conselho de Estado não podem ser consultadas nem divulgadas, durante um período de 30 anos a contar do final do mandato presidencial em que se realizaram”. Contudo, o Observador noticiou que António Costa defendeu a 21 de julho mudanças nas regras das buscas judiciais aos partidos, o que levou Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República, a considerar “errado e perigoso” saber o que se passa nesses encontros.
José Palmeira antecipa que o maior atrito com o Presidente da República, com o PSD a aproximar-se nas sondagens, será “um fator de desgaste” para o Executivo socialista. “Não quer dizer que tenha ganho um opositor”, mas “perdeu um aliado” depois da polémica ligada a João Galamba, que seria “particularmente importante no atual contexto de dificuldades e de instabilidade”. “A partir do ponto em que [Marcelo] deixa de andar com o Governo ao colo, significa que o Governo conta apenas com as suas próprias forças”, acrescenta o professor da Universidade do Minho.
Governo perdeu um aliado que seria particularmente importante no atual contexto de dificuldades e de instabilidade. A partir do ponto em que [Marcelo] deixa de andar com o Governo ao colo, significa que o Governo conta apenas com as suas próprias forças.
“Marcelo não pode ser o líder da oposição, até porque tem consciência que isso seria extremamente prejudicial ao PSD. (…) O Presidente da República pode desgastar o Governo, mas convém, na perspetiva desse partido, que a oposição capitalize esse desgaste – e não é líquido que isso esteja a acontecer. Começa até a ser duvidoso que Luís Montenegro tenha essa capacidade”, concluiu o especialista em Ciência Política.
A rentrée política promete, por outro lado, ser “apimentada” pelo lançamento do novo livro de Aníbal Cavaco Silva, que nos últimos tempos tem aproveitado para lançar várias críticas a António Costa e até deu a Luís Montenegro dez mandamentos para seguir na estratégia de oposição. “O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar” é o título da mais recente publicação do homem que chefiou o Governo durante uma década e depois foi Presidente da República. Incluirá capítulos sobre como deve ser gerido um Governo, incluindo o processo de escolha dos ministros, e tem apresentação prevista para 15 de setembro no Grémio Literário, em Lisboa.
Curiosamente, no Conselho de Estado têm assento alguns potenciais candidatos à sucessão de Marcelo nas próximas presidenciais, que foi outro tópico que animou as lides políticas em agosto depois de Luís Marques Mendes ter sinalizado que poderá avançar em 2026. Além do antigo presidente do PSD, que é um dos cinco cidadãos designados pelo Presidente da República para este órgão, na corrida a Belém poderão estar também Augusto Santos Silva (tem assento enquanto presidente da Assembleia da República); António Sampaio da Nóvoa, que concorreu nas últimas presidenciais com o apoio de parte do aparelho socialista; e Carlos César, presidente do PS – estes últimos dois nomes estão no Conselho de Estado pelo contingente dos eleitos pela Assembleia da República, pelo período correspondente à duração da legislatura.
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