Dos “cofres” aos impostos, Montenegro mostra agenda e narrativa do novo Governo
Nas entrelinhas do discurso de posse, primeiro-ministro ata Pedro Nuno ao “bloqueio democrático”, recusa “despesas insustentáveis” na ressaca do excedente, abraça temas do Chega e redesenha os fundos.
No discurso de tomada de posse de Luís Montenegro, em que começou a assinalar o “enorme sentido de responsabilidade” com que assume funções após as eleições mostrarem “a vontade do povo na mudança política” e acabou a citar o Papa Francisco – “contamos com todos, todos, todos” –, o novo primeiro-ministro deixou vários sinais sobre a narrativa e as prioridades políticas do novo Executivo.
Das condições de governabilidade com que o Governo minoritário contará para esta legislatura “de quatro anos e meio” aos recados para a responsabilização da oposição, sobretudo para o Partido Socialista, passando pelo refrear das promessas eleitorais e pelo desenho de algumas medidas e áreas prioritárias, como a baixa de impostos, a reorientação estratégica dos fundos comunitários ou o combate à corrupção, uma leitura do discurso de Montenegro nas entrelinhas.
Atar Pedro Nuno Santos a força de “bloqueio democrático”
- “O Partido Socialista (…) deve ser claro e autêntico quanto à atitude que vai tomar: ser oposição democrática ou ser bloqueio democrático”
Após ter vencido as legislativas com a margem mais estreita de sempre, Luís Montenegro fez questão de assinalar logo no início do discurso que “cabe a todos os agentes políticos mostrar a sua maturidade e o seu grau de compromisso com a vontade dos portugueses”, expressa nas urnas a 10 de março. Da parte do novo Executivo deixou a promessa de que terá “humildade, espírito patriótico e capacidade de diálogo” e lançou a frase que marcou a intervenção inaugural: “Este Governo está aqui para governar os quatro anos e meio da legislatura”.
Algo que, numa referência às palavras do secretário-geral socialista, Pedro Nuno Santos, logo na noite eleitoral, em que se prontificou a liderar a oposição, Montenegro avisou esperar também das restantes bancadas parlamentares. “Em particular o Partido Socialista, que governou 22 dos últimos 28 anos, apesar da sua legitimidade em se constituir como fiscalizador da ação do Governo e em alternativa futura, que compreendemos com total respeito democrático, deve ser claro e autêntico quanto à atitude que vai tomar: ser oposição democrática ou ser bloqueio democrático”, advertiu.
Viabilizar Governo implica executar programa até final do mandato
- “A investidura parlamentar, nestas circunstâncias, só pode significar que as oposições vão respeitar o princípio de nos deixarem trabalhar e executar o Programa de Governo”.
“Deixem-nos trabalhar”. Já passaram mais de três décadas desde que foi proferida por Aníbal Cavaco Silva uma das frases que ficaram para a história da política nacional – o então primeiro-ministro aludia às críticas da oposição parlamentar e do Presidente da República, Mário Soares – e que Luís Montenegro retomou no discurso da tomada de posse, em que advertiu igualmente que o novo Executivo “não está aqui de turno”. “A investidura parlamentar, nestas circunstâncias, só pode significar que as oposições vão respeitar o princípio de nos deixarem trabalhar e executar o Programa de Governo”, sublinhou na cerimónia no Palácio da Ajuda.
Não podia ser mais direta a alusão à expressão que Cavaco gravou na pedra da política nacional e também à garantia que já foi deixada por Pedro Nuno Santos de que o PS não irá votar favoravelmente a moção de rejeição que o PCP apresentará ao programa de Governo da Aliança Democrática (AD), que será apresentado a 10 de abril e discutido nos dois dias seguintes. Algo que, interpreta o novo primeiro-ministro, “não significa apenas permitir o início da ação governativa [mas] a sua execução até ao final do mandato ou, no limite, até à aprovação de uma moção de censura”. Isto é, deixar passar os Orçamentos do Estado até haver uma coligação negativa entre o PS e o Chega.
“Cofres cheios” não abrem a torneira da despesa pública
- “Temos a noção de que não ficámos um país rico só porque tivemos um superavit orçamental.
Foi um dos temas quentes na fase de transição de pastas, promete marcar o início da legislatura e não foi esquecido na tomada de posse. Luís Montenegro herda um excedente de 3,2 mil milhões de euros, o que representa 1,2% do PIB, acima do saldo orçamentado de 0,8% para 2023, mas o novo primeiro-ministro salienta que “não ficámos um país rico só porque tivemos um superavit orçamental” e que a “teoria dos ‘cofres cheios’ conduz à reivindicação desmedida e descontrolada de despesas insustentáveis”, além de que “[induzir] o país a pensar que não há necessidade de mudar estruturalmente a economia e o Estado porque afinal parece que está tudo bem”. Uma ideia “perigosa, errada e irresponsável”, avisou ainda.
Com as pressões para o aumento dos gastos públicos a chegarem de vários setores, dos professores aos polícias, Luís Montenegro procurou colocar um travão que já tinha sido ensaiado na véspera pelo PSD, através do presidente do conselho de jurisdição, José Matos Correia, de que o novo Executivo não poderá dar tudo a todos, nem tem essa “disponibilidade”, e deverá resistir a “satisfazer reivindicações corporativas”. E em linha com os avisos deixados pelos economistas, como Carlos Lobo, especialista em Finanças Públicas, de que o superavit “virtuoso” pode “tornar-se perigoso” ao subir a pressão para aumentos salariais e agravar o risco de desequilíbrios orçamentais.
Redução de impostos como medida de política económica
- “Baixar os impostos não é uma benesse do Governo. Baixar os impostos é uma medida de política económica e justiça social.”
Habitação, saúde, educação, justiça, política externa. Durante os 30 minutos em que falou ao país, pela primeira vez desde a noite eleitoral, Luís Montenegro fez referência a várias áreas de governação, mas deixou uma nota mais estrutural e demorada à redução da carga fiscal prometida para a legislatura e em que assentou, aliás, o ambicioso cenário macroeconómico apresentado pela AD: economia a crescer 3,5%, dívida pública inferior a 90% do PIB, um ligeiro excedente orçamental, o emprego a crescer acima de 1% e as exportações mais de 4% até ao final da legislatura.
“Baixar os impostos não é uma benesse do Governo. Baixar os impostos é uma medida de política económica e justiça social. A carga fiscal elevada é um bloqueio à economia, à produtividade e ao sentimento de justiça”, assegurou o novo primeiro-ministro. Joaquim Miranda Sarmento, o novo ministro das Finanças, contabilizou durante a campanha, enquanto um dos mentores do programa económico com que a AD concorreu às legislativas, quanto custavam essas propostas fiscais: são 3 mil milhões que o Estado devolve aos portugueses com a redução do IRS, mais 1,5 mil milhões em IRC e há ainda 500 milhões através da conjugação de várias medidas na habitação.
Quais as principais medidas que constavam do programa eleitoral e que devem ser agora vertidas para o programa de Governo? Reduzir o IRS até ao 8.º escalão, através da redução das taxas marginais entre 0,5 pontos e três pontos face a 2023; isentar de impostos e contribuições os prémios de produtividade até ao limite de um vencimento mensal; reduzir em dois terços as taxas de IRS aplicáveis aos rendimentos dos jovens até aos 35 anos (com uma taxa mínima de 15%); atualizar os escalões de IRS e as tabelas de retenção na fonte em linha com a inflação e o crescimento da produtividade; e reduzir o IRC em dois pontos percentuais por ano até aos 15% no final da legislatura.
Redesenhar aplicação dos fundos comunitários
- “O PRR, como de resto os outros fundos, não pode ser mais uma oportunidade para desbaratar dinheiro público.
A execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), outro tema forte nas últimas semanas e que provocou uma troca de argumentos entre Luís Montenegro e Mariana Vieira da Silva, mereceu uma palavra especial na posse do primeiro-ministro. “O PRR, como de resto os outros fundos, não pode ser mais uma oportunidade para desbaratar dinheiro público. Tem de ser uma oportunidade de investimento reprodutivo que alicerce uma economia forte e resiliente”, apontou o chefe do novo Executivo, abrindo assim a porta a eventuais mexidas no desenho dos pacotes comunitários. Manuel Castro Almeida, que irá tutelar este dossiê, advertiu há dois anos para o uso sistemático de fundos europeus para pagar despesa corrente do Estado.
Na passagem de pastas, António Costa fez um ponto de situação do PRR que apontava para a necessidade de concluir seis metas e marcos para que o novo Governo possa pedir o quinto cheque da bazuca, que ascende a 2,88 mil milhões de euros líquidos. Mas, de acordo com o ponto de situação do quinto pedido de pagamento feito pela Estrutura de Missão Recuperar Portugal, há quatro reformas e um investimento que “não se encontram totalmente completos” e são classificados como “em estado crítico”. Mas há mais 24 metas e marcos que ainda não estão fechados, porque ainda se encontram na fase de recolha e/ou envio de evidências, para posterior submissão à Comissão Europeia.
“Abraçar” a agenda do Chega: corrupção, imigração e segurança
- “Irei propor a todos os partidos com assento parlamentar a abertura de um diálogo com vista a uma fixar uma agenda ambiciosa, eficaz e consensual de combate à corrupção”.
No arranque de uma legislatura em que a bancada parlamentar do Chega, com um total e 50 deputados, poderá ser determinante para o sucesso e para a sobrevivência do Governo liderado pelo PSD, depois de ter conseguido mais de um milhão de votos nas legislativas, Montenegro fez uma incursão por temas que têm marcado o discurso do partido liderado por André Ventura, puxando-os para a agenda do novo Executivo. Desde logo, a imigração, dizendo que o país não pode estar “nem de portas fechadas, nem de portas escancaradas”, ou a insegurança, prometendo aos portugueses “zelar pela sua segurança e dos seus bens”.
No entanto, o principal destaque foi para o tema da corrupção, em que a AD tem “propostas ousadas e inovadoras” e outros partidos têm ideias que “merecem ser igualmente estudadas, discutidas e consideradas”. Anunciou que a nova ministra da Justiça vai avançar logo a seguir à investidura parlamentar com um diálogo formal com todas as forças políticas para “fixar uma agenda ambiciosa, eficaz e consensual de combate à corrupção”.
“O objetivo é, no prazo de dois meses, ter uma síntese de propostas, medidas e iniciativas que seja possível acordar e consensualizar, depois de devidamente testada a sua consistência, credibilidade e exequibilidade. A partir daí partiremos para a aprovação das respetivas leis, seja por proposta do Governo, seja por iniciativa do Parlamento”, detalhou Montenegro.
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