Os sete “pecados” na gestão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Audições de atuais e antigos gestores da Santa Casa arrancam esta quarta-feira. Atual administração, já exonerada, apontou sete "preocupações" que colocaram a instituição à beira da rutura.
Arranca esta quarta-feira a ronda de audições “urgentes” a um conjunto de personalidades ligadas à atual e anterior gestão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (CSML). O “tiro” de partida é dado pelo anterior provedor Edmundo Martinho, cuja gestão tem estado no epicentro da polémica, nomeadamente devido ao investimento no processo de internacionalização dos jogos sociais, cujas perdas rondam, pelo menos, cerca de 50 milhões de euros. Mas, afinal, quais são os sete “pecados” na gestão desta instituição que conta com mais de cinco séculos de existência?
1. “Provável rutura de tesouraria”
Entre as principais preocupações identificadas pela mesa da SCML, liderada pela provedora (agora exonerada) Ana Jorge constava uma “provável rutura de tesouraria”, dado que no final de 2023 foi estimado um défice de 25 milhões de euros e a necessidade de um reforço entre 55 milhões e 65 milhões, tendo em vista “satisfazer compromissos inadiáveis, nomeadamente, despesas com pessoal”, segundo consta no Plano de Orçamento e Atividades 2024 da SCML. Ou seja, estava na iminência de não conseguir pagar salários e a fornecedores.
O “buraco” levou, aliás, a Santa Casa a receber, em agosto de 2023, uma transferência do Instituto da Segurança Social (ISS) de cerca de 34 milhões de euros, em resultado de uma dívida “com utentes em estruturas residenciais para idosos durante a pandemia”, que lhe permitiu equilibrar as contas de 2023, ano em que terá registado um resultado líquido positivo de 10 milhões de euros. Mas os problemas financeiros da SCML vinham da anterior administração, liderada por Edmundo Martinho, que exerceu funções entre 2017 e o final de março de 2023.
O momento de “viragem” da saúde financeira da instituição, fundada em 1498, coincidiu com o primeiro ano de pandemia, com a Santa Casa a passar de lucros a prejuízos. Em 2020, a SCML passou de lucros de 37,5 milhões de euros no ano anterior para prejuízos de 52,8 milhões de euros. Nos anos que se seguiram, as contas não saíram do vermelho: prejuízos de 39,8 milhões em 2021 e de 12,4 milhões em 2022.
Naquele último ano, as contas tiveram mesmo de ser corridas na sequência da auditoria, dado que inicialmente o primeiro relatório apontava para lucros de 10,9 milhões. Mesmo assim ficaram aquém do orçamentado.
Nos relatórios e contas, a SCML justificava os prejuízos com as “perdas de imparidade associadas às perdas de valor decorrentes dos negócios de internacionalização e pela redução do justo valor das propriedades arrendadas”.
2. “Previsões excessivas de receitas”
A situação financeira da Santa Casa foi agrava por saldos correntes deficitários, com as despesas a excederem as receitas. Em 2022, o défice do saldo corrente atingiu os 11,31 milhões de euros e o orçamentado para 2023 é quase o triplo, mais de 33 milhões negativos, de acordo com um documento interno a que o ECO teve acesso.
A análise às contas mostra também uma tendência recorrente para uma orçamentação demasiado otimista das receitas, que quer em 2021 quer em 2022 ficaram abaixo do previsto. Em 2021, as receitas ficaram 14% abaixo do orçamentado e em 2022 17%, de acordo com os cálculos realizados pelo ECO com base nos relatórios e contas.
Se a receita desapontou, a despesa corrente foi crescendo. Em 2022, atingiu os 252,5 milhões de euros em 2022, um aumento de quase 20% face aos 211,1 milhões de euros registados em 2017, quando Edmundo Martinho subiu a provedor da SCML. Esta rubrica aumentou consecutivamente entre 2017 e 2021, tendo recuado ligeiramente em 2022 (menos 2,8 milhões de euros face a 2021, uma quebra de 1,1%).
Os saldos de capital da Santa Casa também foram negativos entre 2020 e 2022, tendo sido orçamentado para 2023 um valor positivo de 33,25 milhões de euros. Uma ambição sustentada numa estimativa de receitas de capital de 62,5 milhões, através da venda de imóveis. A última estimativa para o saldo de capital era, afinal, de um défice de 26,1 milhões.
O plano de Orçamento e Atividades para 2024, da atual administração, refere “uma preocupante situação económico-financeira” da SCML, tendo identificado “previsões excessivas nos orçamentos de receitas, como vendas de imóveis de valor elevado, que permitiam inscrever sucessivas dotações de despesas sem cobertura em disponibilidades reais“, o que “contribuiu para agravar défices de tesouraria”.
3. Garantias bancárias na ordem dos 30 milhões de euros
Foi também no final do primeiro ano de pandemia que a SCML adquiriu uma participação de 55% na sociedade que gere o Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa, o que pesou também nas contas. A SCML queria tornar-se acionista único do hospital agora liderado pelo ex-ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, e estava inclusivamente acordado, numa segunda fase, adquirir os restantes 45% do capital social à Parpública, mas o negócio não chegou a avançar.
Outra das preocupações da mesa da SCML fazia mira às garantias bancárias prestadas pela instituição, que no final de junho do ano passado ascendiam a 30,4 milhões de euros, dos quais “13,8 e 14,1 milhões de euros aos passivos bancários do Hospital Cruz Vermelha – Sociedade Gestora Hospitalar e da Santa Casa Global, respetivamente”, lê-se no Plano de Orçamento e Atividades 2024.
De acordo com o relatório de Gestão e Contas referente a 2022, o Hospital da Cruz Vermelha continuava com uma situação financeira precária, com um capital próprio de 1,9 milhões, ainda assim melhor do que no ano anterior, com um “buraco” de 7,1 milhões.
4. Jogos sociais representam 80% da Santa Casa. “Forte dependência” preocupa
A principal “fonte” de receitas da SCML diz respeito aos jogos sociais, que em 2022 representavam cerca de 81% do total da receita corrente, ascendendo a 195 milhões de euros. No entanto, apesar de esta rubrica ter aumentado cerca de 4,6% face aos 186,5 milhões registados no ano anterior, ficaram longe dos 208,5 milhões de euros estimados para esse ano e dos resultados alcançados no pré-pandemia (em 2019 chegaram aos 226,1 milhões).
E, apesar de ter o exclusivo da exploração dos jogos, a instituição apenas recebe 26,52% das receitas líquidas geradas, sendo o renascente dividido pelos restantes beneficiários, como é o caso do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (32,98%), o Ministério da Saúde (15,70%), o Ministério da Educação (10,29%) ou o Governos regionais da Madeira e dos Açores (2,47% e 2,38%), entre outras entidades públicas, e tal como definido no Decreto-Lei 56/2006.
Ora, esta “forte dependência das receitas dos jogos sociais”, numa altura em que esta rubrica tem caído na sequência da concorrência das apostas online, era outras das preocupações manifestadas pela mesa da SCML, no Plano de Orçamento e Atividades 2024.
5. Despesas com pessoal representam 63% das receitas totais
Em 2022, a Santa Casa contava com 6.080 funcionários, um ligeiro recuo face aos 6.204 de 2021. Só que durante o período em que Edmundo Martinho foi provedor, entraram na Santa Casa cerca de mais mil trabalhadores, já que em 2017 eram cerca de cinco mil. Para 2024, a atual administração projetava um total de 6.074 trabalhadores, ou seja, uma manutenção do quadro de pessoal.
Outra questão que tem sido levantada é o elevado número de chefias. A mesa da SCML estima que 488 desempenhem estes cargos, dos quais 279 cargos de dirigente; 107 cargos de diretor de estabelecimento; e 102 cargos de chefia direta.
Face a 2023, a única diferença neste âmbito diz respeito a cargos de dirigente: eram 281 (menos dois face a 2024), segundo consta no Plano de Orçamento 2024. Ainda assim, já foram bem mais os funcionários em cargos chefia. Em 2020 eram 556, dos quais 348 dirigentes.
O “peso das despesas com pessoal, que e em 2022 representa 63% das receitas totais, devido a uma estrutura de grande dimensão, excessivos níveis hierárquicos e inúmeros cargos de chefia“, é outras das preocupações apontada pela administração no plano de atividades, considerando que esta circunstância limita “fortemente os recursos a afetar à atividade” da instituição.
Os gastos com pessoal têm aumentado consideravelmente nos últimos anos, ainda que entre 2021 e 2022 se tenha verificado uma quebra ligeira. Entre 2017 e 2022, ocorreu um aumento de cerca de 16% para os 146,5 milhões de euros.
Parece não haver sinais de alívio. Os valores orçamentados para 2023 e 2024 são superiores aos valores reais de 2022: 166,7 milhões e 162,7 milhões, respetivamente.
6. Processo de internacionalização no “olho do furacão”
Outro tema que tem gerado polémica é a internacionalização dos jogos sociais através da Santa Casa Global, empresa criada para gerir as lotarias e jogos de apostas no mercado externo, e que foi alvo de uma auditoria por parte da BDO. Esta empresa, detida a 100% pela SCML, foi constituída em setembro de 2020, com o aval da então ministra Ana Mendes Godinho, tendo sido estabelecido um capital social de cerca de cinco milhões de euros.
Na altura, foi aprovado um investimento de cerca de 50 milhões de euros para o projeto de internacionalização, segundo consta no Plano de Atividade e Orçamento para 2020, com a promessa de que iria “permitir a obtenção de ganhos significativos no médio e longo prazo”.
Para avançar com o processo de internacionalização foram criadas, sob a gestão de Edmundo Martinho, várias subsidiárias da Santa Casa Global, entre as quais a Ainigma Holdings, a SCG Moçambique, a SCG Brasil e a DF HD, nas quais a Santa Casa Global tem uma participação de 26%, 85% e 100% (no caso das últimas duas), respetivamente.
O despacho da então ministra Ana Mendes Godinho determinava ainda que a sociedade a constituir deve ter sede na União Europeia e a atividade internacional deve iniciar-se pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). E, de acordo com o Público, esta é, aliás, uma das 80 “desconformidades” apontada pela auditoria externa, dado que a instituição terá começado a internacionalização com a aquisição de uma participação na Ainigma Holdings, empresa sediada no Reino Unido, e através da qual passou a deter 69,9% da Ainigma Holding Services, no Canadá, e 100% da Nextlot, no Peru.
De acordo com a auditoria (ainda provisória), as transferências financeiras da SCML para a Santa Casa Global, entre 2020 e julho de 2023, ascendiam a 31,44 milhões de euros, dos quais 2,44 milhões para a SCG Moçambique, 8,21 milhões de euros para o grupo Anigma e 15 milhões para a SCG Brasil, de acordo com um documento interno a que o ECO teve acesso.
A este total, devem ser somados 17,59 milhões de euros de garantias prestadas para empréstimos bancários e contas correntes caucionadas. Entretanto, esta semana a Santa Casa adiantou que já recebeu o relatório final da auditoria e que o vai enviar para o Tribunal de Contas, para o Governo e para o Ministério Público, noticiou o Observador.
O relatório de Gestão e Contas referente a 2022 notava ainda que em 2022 tinham sido investidos 9,5 milhões de euros para a Santa Casa Global. As suspeitas em volta ao processo de internacionalização levaram a provedora (agora exonerada) Ana Jorge a cancelar, em outubro do ano passado, a parceria para explorar os jogos no Brasil. Mas, agora, o organismo responsável pela gestão das lotarias no Rio de Janeiro exige que a Santa Casa pague mais de 6 milhões por não ter cumprido as obrigações. Para já, a Santa Casa reconheceu nas suas contas perdas de 52,790 milhões de euros, entre 2020 e 2023, segundo o relatório e contas do ano passado, citado pelo Observador, que já seguiu para o Tribunal de Contas e para o Governo, tal como o ECO avançou.
Esta era, aliás, outra das preocupações da mesa da SCML, segundo o Plano de Orçamento e Atividades 2024, que apontava que tinham sido feitos negócios “de grande complexidade” com “fortes riscos financeiros e de reputação, envolvendo diversos mercados, empresas, sócios e elevados valores transferidos e garantidos sem suficiente transparência e racionalidade económica”.
7. Participações na saúde “não estão sustentadas em avaliações racionais”
No que toca às despesas correntes, a saúde representa a segunda maior fatia (24,2% do montante total) nos gastos da SCML, e subiu de forma expressiva. Saltou 36,4% face a 2017, e 20% só em 2022, atingindo os 25,1 milhões.
Os prejuízos crónicos das unidades de saúde da Santa Casa, que antes da pandemia eram disfarçados pelas fortes receitas dos jogos sociais, vieram chamar a atenção para área, com a atual administração a alertar que “as participações na área da saúde não estão sustentadas em avaliações e estratégias racionais, claras e sustentáveis”.
Só este ano, o Governo anterior aprovou dois contratos, que totalizam cerca de 16 milhões de euros (sem IVA), no âmbito de acordos de cooperação com a SCML. Em causa está o pagamento adicional de 11,149 milhões de euros para o SNS usar os serviços do centro de reabilitação de Alcoitão e cinco milhões de euros para o Hospital Ortopédico de Sant’Ana, escreveu o Observador.
Perante a debilidade financeira da Santa Casa, a atual administração estabeleceu um conjunto de “orientações e decisões” para levar a cabo em 2023 e 2024, tendo em vista “assegurar a solvabilidade financeira imediata” da instituição e prometia ainda “iniciar um processo de reformas com a finalidade de alcançar a sustentabilidade a médio e longo prazos”, sem comprometer” a atividade assistencial “aos mais vulneráveis”, aponta ainda o Plano de Orçamento e Atividades 2024.
No entanto, estas medidas foram consideradas insuficientes pelo atual Executivo, que decidiu exonerar, na semana passada, toda a mesa da SCML, incluindo a provedora Ana Jorge, acusando a administração de ser “incapaz de enfrentar os graves problemas financeiros e operacionais da instituição” e de “atuações gravemente negligentes”, que poderão comprometer a “curto prazo” a “fundamental tarefa de ação social que lhe compete”. Ainda assim, a provedora vai-se manter em gestão corrente até ser nomeada nova equipa.
Posteriormente, numa carta enviada aos trabalhadores, Ana Jorge, que tinha assumido funções há cerca de um ano, denunciou a forma “rude e caluniosa” com que foi justificada a sua exoneração e garantiu que vai contar a sua verdade “em tempo e em sede própria”. A provedora, agora exonerada, herdou uma instituição com graves dificuldades financeiras, cuja debilidade financeira coincidiu com os anos de pandemia e de um processo de internacionalização dos jogos sociais, levado a cabo pela anterior administração liderada por Edmundo Martinho, que é ouvido já esta quarta-feira na comissão de Trabalho e Segurança Social, no Parlamento.
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