Vários estudos apontam para elevadas situações de risco de burnout e diagnóstico efetuado no setor da advocacia. Escritórios classificam os resultados como “preocupantes” e alertam para boas práticas.
A profissão de advogado pode estar sob pressão em termos de saúde mental, pelo menos segundo dados de um estudo do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados (OA). O estudo deste órgão apontou que cerca de 52,5% dos advogados estão em risco de burnout e 16,3% com diagnóstico efetuado.
Um resultado que os escritórios consideram “preocupante” e que reflete uma crise de bem-estar mental e uma maior conscientização sobre este problema. “A informação disponível atualmente sublinha a urgência na implementação de medidas de apoio psicológico eficazes, na promoção de um equilíbrio saudável entre vida profissional e pessoal, e na revisão das cargas de trabalho excessivas”, explica Teresa Rocha, diretora de Recursos Humanos da CCA Law Firm.
Teresa Rocha considera que fomentar uma cultura organizacional que valorize a saúde mental pode contribuir “significativamente” para mitigar este problema. “Estes dados devem servir como um catalisador para mudanças estruturais, garantindo que todas as pessoas possam exercer suas funções em um ambiente mais saudável e humano”, acrescenta.
À Advocatus, a CMS assumiu que já tiveram casos de burnout, mas que reconhecem a seriedade de situações deste âmbito e, por isso, estão “continuamente empenhados em desenvolver e implementar medidas para mitigar os seus efeitos”.
“As nossas estratégias preventivas incluem a consciencialização dos primeiros sinais de burnout e o trabalho contínuo na desmistificação da procura de ajuda. Quando identificamos casos de burnout, disponibilizamos apoio especializado, garantindo o devido acompanhamento profissional”, garante Susana Afonso, sócia da CMS.
A advogada explica que a firma promove ainda a reintegração adequada desses colaboradores, assegurando um ambiente de trabalho que apoie a recuperação e previne futuras recorrências. “O nosso compromisso é criar um ambiente saudável e solidário para todos”, assume.
“O desenvolvimento dos nossos projetos e iniciativas de bem-estar visam, não só, criar uma cultura favorável e promotora de bem-estar, mas também, quebrar os estigmas associados à saúde mental e à procura de apoio, ainda presentes na sociedade portuguesa e em organizações mais tradicionais”, assegura. Assim, Susana Afonso revela que, através da criação de um espaço de compreensão e confiança, os colaboradores são incentivados a trabalhar na promoção do “autocuidado” e na “literacia” relacionada com estas matérias.
Outro estudo da associação Direito Mental também foi ao encontro dos resultados apresentados pelo Conselho Regional de Lisboa da OA, revelando um quadro “preocupante” e evidenciando a importância “crucial” de implementar estratégias de apoio eficazes. Este estudo versou sobre a saúde mental e o impacto da profissão no bem-estar, sendo desenvolvido em colaboração com o ProChild CoLAB e o Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho.
Os resultados partilhados com a Advocatus indicam que 55% dos inquiridos reconheceu que as exigências e obrigações da sua profissão os privam de participar em atividades familiares e 35% dos advogados em Portugal não voltaria a escolher a profissão.
Já 34% admitiu já ter recebido diagnósticos de perturbações de saúde mental, como a depressão, a ansiedade e o síndrome de burnout e 15% dos participantes reportou ter pensamentos sobre suicídio nas duas semanas anteriores à resposta ao questionário numa frequência de pelo menos “em vários dias”.
Outras das conclusões do estudo foram que 39% dos participantes apresentou níveis de sintomas de depressão clinicamente significativos, 51% níveis de sintomas de ansiedade clinicamente significativos e 33% apresentou valores de burnout superiores ao valor médio obtido na população portuguesa.
Rita Rendeiro, presidente da Direito Mental, explica que os participantes do género feminino apresentaram níveis “significativamente mais elevados” de sintomas de depressão, ansiedade e burnout do que o género masculino. Também os participantes mais jovens são os que apresentaram níveis significativamente mais elevados de sintomas de depressão, ansiedade e burnout e níveis significativamente inferiores de satisfação com o trabalho.
“Mais preocupante para nós, para além dos participantes que revelaram ter pensamentos suicidas, foram mesmo as percentagens de participantes com níveis de sintomas clinicamente significativos de ansiedade e depressão. Verificámos também que os níveis de burnout dos advogados portugueses reportados foram superiores ao valor médio obtido na população portuguesa”, sublinha Rita Rendeiro.
A presidente da associação considera que os resultados revelam os desafios que a comunidade enfrenta, incluindo as suas condições psicológicas e de saúde crónicas e eventos negativos recentes, “colocando o holofote sobre a urgência de apoio à sua saúde mental”. “Estes resultados são um alerta claro para a necessidade de sensibilização e apoio à saúde mental nesta comunidade”, acrescenta.
As boas práticas dos escritórios
O setor da advocacia é um dos mais vulneráveis a problemas relacionados com a saúde mental. Diariamente os advogados lidam com pressões, quer por parte dos clientes ou dos escritórios, quer devido a prazos e exigências do trabalho e as empresas podem ter um papel essencial na prevenção como na solução do problema.
A sócia Rita Canas da Silva garante que na Sérvulo há uma relação direta entre o bem-estar físico e mental e os níveis de produtividade. “Sabemos que para dar o melhor, temos de estar no nosso melhor. Por isso, desde há muito tempo, a Sérvulo tem vindo a desenvolver estratégias com vista à promoção de um ambiente de trabalho saudável”, sublinha.
A firma liderada por Manuel Magalhães tem vindo a fomentar modelos flexíveis de trabalho, de forma a possibilitar uma maior eficácia na conciliação da vida pessoal com a profissional. “Mantemos um regime híbrido de trabalho, com dois dias de teletrabalho, prevalecendo um racional compromisso com o rigor profissional e a relação com o cliente”, explica. No escritório, os dias de aniversário, as manhãs dos primeiros dias de escola dos filhos e as tardes dos dias de aniversários dos filhos são datas em que “não é esperada a mesma disponibilidade”.
A sociedade estabeleceu ainda uma rede de protocolos com ginásios, clínicas de wellbeing e programas de nutrição, com condições especiais. “No âmbito da adesão da Sérvulo à Direito Mental, os advogados e outros profissionais podem recorrer a apoio psicológico e psiquiátrico especializado. Procuramos ainda fomentar uma relação de proximidade, de confiança e de acompanhamento, seja por via do acesso direto aos sócios, como através do pelouro de Recursos Humanos”, refere Rita Canas da Silva.
Também com o foco no bem-estar dos profissionais, a CCA tem implementado várias medidas, onde se destaca a oferta ilimitada de serviços de aconselhamento e apoio psicológico – chat ou consultas -, proporcionando apoio psicológico gratuito, de forma anónima e confidencial.
“Adotámos também políticas que permitem horários flexíveis ou trabalho remoto, como o home office (desde 2018), um programa nómada que permite trabalhar fora do escritório até quatro semanas consecutivas por ano, e a jornada contínua às sextas-feiras à tarde, a partir das 15h. Estas medidas proporcionam maior autonomia e facilitam o equilíbrio entre vida pessoal e profissional”, assegura Teresa Rocha.
A firma estabeleceu ainda uma parceria que responde a dois objetivos fundamentais no “alívio ao stress financeiro”: por um lado no aconselhamento/coaching financeiro e, por outro, na possibilidade de levantamento antecipado de parte da retribuição mensal, sem qualquer tipo de validação prévia e de exposição pessoal. “Temos desenvolvido também algumas campanhas de sensibilização, com organização de vários workshops”, acrescenta.
A diretora de Recursos Humanos sublinha que a CCA faz a monitorização e avaliação contínua do impacto das medidas implementadas, de forma a compreender o nível de valorização junto das nossas pessoas e apoiar a tomada de decisão sobre ajustamentos necessários e outras medidas a implementar.
Para além dos horários de trabalho flexíveis e de campanhas de sensibilização e educação, a CMS tem apostado em incentivos para atividades físicas e de relaxamento com atribuição de prémios simbólicos associados e questionários regulares de forma a aferir necessidades específicas dos colaboradores, bem como se as medidas desenvolvidas estão a ter impacto esperado ou devem ser revistas ou substituídas por outras.
“A criação de um ambiente de trabalho ergonómico e harmonioso é essencial para reduzir o stress físico e mental. O nosso edifício foi projetado com o intuito de potenciar e incentivar a utilização dos espaços de lazer e relaxamento, como a horta biológica, green lounge, sofás centrais, entre outros que temos disponíveis”, refere Susana Afonso.
O escritório adotou ainda iniciativas relacionadas com a sustentabilidade para criar um ambiente mais saudável e promotor de uma cultura de responsabilidade ambiental, que inclui a redução de resíduos, reciclagem e o uso de materiais sustentáveis.
“Em 2022, lançámos um programa mais robusto e estruturado denominado CMS Balance. Este programa contempla um conjunto de ações assentes nos seguintes eixos: promoção da saúde física e mental (sensibilização e literacia); prevenção dos riscos psicossociais e burnout (identificação de fatores de risco); e intervenção clínica especializada (definição de planos de intervenção e tratamento)”, explica a sócia.
No âmbito deste programa, a firma comparticipa e disponibiliza uma linha de apoio com uma equipa clínica composta por profissionais de psicologia e psiquiatria. “Disponibilizámos, também, um seguro de saúde bastante robusto ao nível da saúde mental. Em termos de desenvolvimento, são também proporcionados programas de coaching e mentoring”, acrescenta.
A associação Direito Mental
A Direito Mental, uma associação inteiramente dedicada à promoção da saúde mental junto da comunidade jurídica portuguesa, nasceu em 2022 e, dois anos depois, Rita Rendeiro faz um balanço “muito positivo”.
“Nascemos em 2022 com os objetivos de sensibilizar para quebrar o estigma relacionado com a saúde mental na comunidade jurídica portuguesa e recolher e divulgar dados que possam nortear as suas ações. Sabíamos que iria ser um caminho difícil já que superar o estigma que existe relativo a estes temas na nossa profissão é grande. No entanto, temos conseguido garantir a participação ativa da comunidade jurídica, manter informações atualizadas e comunicar eficazmente os dados recolhidos”, explica a presidente.
A associação tem promovido as boas práticas organizacionais no setor através de Fóruns de Boas Práticas entre os seus associados – o primeiro realizou-se em fevereiro e o próximo terá lugar dia 1 de outubro. A Direito Mental conta com advogados, magistrados, juristas, estudantes de Direito, equipas de apoio ao negócio e suas famílias.
“As nossas atividades têm sido muito bem acolhidas, quer dentro dos nossos associados, quer na comunidade enquanto um todo. Gostávamos de chegar a ainda mais pessoas e organizações de forma a partilhar a nossa missão, valores e atividades com a restante comunidade jurídica. Queremos fortalecer o ecossistema que temos vindo a construir em torno de um setor jurídico mais saudável e consciente”, nota.
Rita Rendeiro assegura ainda que os objetivos estão a ser cumpridos, tendo o primeiro vindo a ser conseguido, “passo a passo”, em cada ação de sensibilização que fazem junto dos associados e com os parceiros, como as faculdades de Direito ou a Ordem dos Advogados.
“O segundo objetivo foi atingido no ano passado com a realização do estudo [acima referido]. Com a obtenção de dados cientificamente comprovados, conseguimos pôr um espelho em frente à comunidade jurídica portuguesa e mais facilmente quebrar o silêncio em torno do bem-estar”, refere. Para além disso, a Direito Mental está agora a trabalhar com uma organização congénere do Reino Unido, a Mindful Business Charter, “o que tem ajudado a ampliar os esforços”.
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Burnout é “preocupante” na advocacia. Como melhorar a saúde mental no setor?
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