Mercado ibérico da eletricidade faz 20 anos, mais robusto mas mais extremado
O mercado ibérico da eletricidade é tido como um projeto de sucesso. Porém, anos recentes têm revelado novos desafios e maior instabilidade nos preços, incitando a reflexões sobre o futuro.
Esta terça-feira é marcada pelos 20 anos do Mercado Ibérico da Energia Eléctrica – Mibel, o mercado no qual os produtores vendem a sua energia aos comercializadores (ou até a grandes consumidores, diretamente). O balanço é positivo, de acordo com os especialistas consultados pelo Eco/Capital Verde. No entanto, 20 anos depois, o contexto é radicalmente diferente, o que coloca novos desafios a este mercado. O armazenamento é uma das soluções mais unânimes para lidar com a recente instabilidade de preços.
Foi em outubro de 2004 que os governos português e espanhol assinaram, em Santiago de Compostela, o acordo que fazia nascer este mercado, com o objetivo de promover a integração dos sistemas elétricos dos dois países. A aproximação entre os dois polos energéticos iniciou-se em 1998 mas, depois da assinatura do acordo, passaram-se ainda três anos antes de o mercado estar ativo de ambos os lados da fronteira.
Foi em 2007 que os mercados português e espanhol negociaram pela primeira vez de mãos dadas, no âmbito do Mibel. A ligação foi-se estreitando, com os valores lusos e castelhanos a ficarem cada vez mais próximos, até mal se distinguirem. Na ótica dos especialistas do setor contactados pelo ECO/Capital Verde, a história do Mibel é unanimemente uma “história de sucesso”. Está hoje “mais adulto e robusto”, classifica João Nuno Serra, presidente da ACEMEL — Associação dos Comercializadores de Energia no Mercado Liberalizado.
"Os dois países tiveram grandes benefícios com o Mibel.”
“Os dois países tiveram grandes benefícios com o Mibel”, defende contudo o ex-CEO da EDP Inovação, António Vidigal. Alguns dos maiores beneficiados são os consumidores: “se tivéssemos um mercado exclusivamente nacional, não teríamos acesso aos preços da energia que temos hoje. Os consumidores de uma forma geral beneficiaram e muito“, sublinha João Serra, presidente da ACEMEL — Associação dos Comercializadores de Energia no Mercado Liberalizado.
Acresce a este ponto forte, na opinião de João Serra, a cada vez maior penetração de renováveis no mix energético, que acredita ter sido impulsionada pelo modelo de mercado. A união entre Portugal e Espanha estimula o investimento nestas novas tecnologias. Um reforço da interligação com França daria “mais força” a esta dinâmica, realça ainda.
Houve também um benefício em termos de segurança de aprovisionamento para ambos os sistemas, “alavancada pela forte interligação elétrica entre os dois países”, assinala António Vidigal. Se, por um lado, Portugal tem podido beneficiar dos excedentes de produção de Espanha, Espanha tem podido exportar para Portugal excedentes que de outra forma seriam desperdiçados, uma vez que a capacidade de interligação de Espanha com França e com Marrocos é “substancialmente menor do que a interligação com Portugal”, afirma.
Os objetivos originais do mercado também foram bem sucedidos noutras frentes como a criação de concorrência, através da multiplicação no número de operadores, e a convergência de preços, aponta Nuno Ribeiro da Silva, ex-CEO da Endesa em Portugal e atual consultor na área da energia. A convergência regulatória, por outro lado, “pode ser o tema que não evoluiu com tanto sucesso”, avalia, apelando a que lhe seja dada particular atenção no futuro. Este desencontro, entende, foi particularmente visível durante a crise energética, quando foi criado
Modelo está para ficar. Talvez com “ajustes”
Desde a inauguração que o preço médio anual mais comum se situa em torno do intervalo dos 40 a 50 euros por megawatt-hora. No entanto, nos últimos cinco anos, viveram-se oscilações mais extremas nos preços — as quais fizeram, até, levantar questões ao nível do modelo que sustenta este mercado desde os seus primórdios.
Durante a mais recente crise energética, que se iniciou em 2022 e prolongou ainda em 2023, atingiram-se máximos históricos no Mibel: em agosto de 2022 chegou a registar-se um pico de 544,98 euros por megawatt-hora (euro/MWh). Na altura, os preços energéticos pressionavam os consumidores domésticos e industriais de tal forma que chegou mesmo a aplicar-se um “remendo” a nível ibérico: foi criado o mecanismo ibérico que colocava um tecto nos preços da eletricidade originada com base em gás natural.
Mais recentemente, os ânimos exaltaram-se pelo motivo oposto: em março registaram-se mínimos de 10 anos e abril abriu com algumas horas a marcar valores negativos no mercado ibérico. O setor alertou para potenciais “problemas” dos preços baixos, em particular na viabilização de projetos renováveis, e apontou a necessidade de reequilibrar o mercado.
A questão de manter ou não o modelo marginalista, que determina de momento a formação dos preços da eletricidade no mercado grossista, foi fechada nos recentes trabalhos em Bruxelas, que emitiu regulação quanto ao mercado europeu da eletricidade, relembra Nuno Ribeiro da Silva. A Comissão Europeia optou por, na altura, não mexer no modelo. No entanto, concede o especialista, “os países podem, dentro do chapéu definido por Bruxelas, e sabendo que a regra do mercado marginalista é a regra-mãe, encontrar formas de amortecer e mitigar esses efeitos” de oscilações pronunciadas.
Para António Vidigal, “faz todo o sentido repensar o modelo“, já que “o preço do mercado grossista é quase sempre determinado pelo preço do gás natural, embora ele só satisfaça uma percentagem baixa do consumo, quando comparado com as energias renováveis”. Numa situação em que o mercado passe a funcionar predominantemente com base em contratos a prazo (como Contratos de Aquisição de Energia –PPA ou Contratos por Diferenças –CfD), o OMIP poderia “aumentar a sua relevância”.
"Os países podem, dentro do chapéu definido por Bruxelas, e sabendo que a regra do mercado marginalista é a regra-mãe, encontrar formas de amortecer e mitigar esses efeitos [das oscilações de preço].”
João Serra, por outro lado, acredita que o modelo atual é o que confere maiores garantias e maior transparência, o que “não quer dizer que não se evolua”, ressalva. Para o presidente da ACEMEL, o fim das tarifas subsidiadas vai ajudar a um melhor funcionamento deste mercado.
As maiores oscilações, a seu ver, “só revelam a falta de flexibilidade do mercado. Só temos centrais dispostas a pagar para injetar a rede porque não têm capacidade para armazenar”, indica, referindo-se mais diretamente aos preços perto de zero e negativos. Apesar de estes extremos não serem benéficos, entende que o sistema os deve permitir, como o faz atualmente, a bem de refletir o mais fielmente possível o equilíbrio entre oferta e procura.
Futuro passa pelo armazenamento
O futuro, no que diz respeito aos preços, augura subidas: se de janeiro a setembro o preço médio está nos 52,71 euros, a 27 de setembro, a previsão de preço para o próximo trimestre apontava para uma média de 76,97 euros por megawatt-hora. E, no ano que vem, o valor é semelhante: 70,73 euros/MWh.
Olhando ao histórico, estes são preços relativamente altos, mas longe daqueles praticados em momentos de crise. Nuno Ribeiro da Silva aponta algumas razões para esta evolução no curto prazo. Por um lado, a aproximação do inverno, que pressiona do lado da procura ao mesmo tempo que a produção solar diminui; por outro, reflete também os crescentes investimentos na geração e em redes, indica.
“Acho que o futuro é muito promissor porque neste momento os Portugal e Espanha estão a trabalhar mais na flexibilidade“, afirma João Serra, apesar de avaliar que Portugal está aquém do desejável nas metas, e que compara mal com Espanha. Para já, Portugal só prevê um gigawatt de capacidade de armazenamento no plano estratégico até 2030, enquanto o país vizinho aponta para os 26 gigawatts (GW). No entanto, a secretária de Estado da Energia já veio anunciar que a versão final deverá ser mais ambiciosa, tal como o Eco/Capital Verde avançou.
António Vidigal concorda que o sistema ibérico precisa de mais flexibilidade. Defende que na Península Ibérica fosse desenvolvido um mercado único de serviços de sistema, que compensam em tempo real os desvios nas previsões de consumo e geração. “É o que os países nórdicos estão a fazer”, realça. Em paralelo, considera importante que sejam avançados mecanismos de capacidade, que definam uma remuneração adequada para as centrais a gás natural e para as baterias. “Espanha tem avançado e deverá lançar o primeiro leilão no início do próximo ano. Portugal teria vantagem em adotar um mecanismo semelhante”, afirma, balançando que seria mais benéfico ter estes produtos também a nível ibérico.
"Acho que o futuro é muito promissor porque neste momento os Portugal e Espanha estão a trabalhar mais na flexibilidade.”
Certo, é que “a realidade de hoje é substancialmente diferente da que vivíamos quando o mercado de eletricidade foi criado em 2004”, remata Nuno Ribeiro da Silva. “Vamos ver até que ponto é que a máquina que até agora foi montada, das instituições do Mibel, está preparada para afinar e cumprir não só os objetivos originais como os desafios que emergem da evolução em termos de metas e tecnologias”, conclui, frisando que “o momento para sentar e repensar todas estas questões é agora”.
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