Fazer greve é que está a dar
Em vésperas de Orçamento do Estado e com a economia a crescer, multiplicam-se os pré-avisos de greve e as manifestações. O Governo responde com negociação e abertura, mas as greves continuam.
Esta segunda, os funcionários da ASAE, a autoridade do Estado que trabalha para manter a segurança alimentar e fiscalizar as atividades económicas, estiveram em greve. Na quinta, é a vez dos sindicatos dos polícias, que vão para a rua em manifestação. Os médicos começam com uma greve dia 11, na região norte, sendo que as paralisações regionais continuam até uma nacional a 8 de novembro. Na sexta, os técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica param nos hospitais. Mais no fim do mês, os enfermeiros têm um pré-aviso para paralisação entre 23 e 27 de outubro, o mesmo dia em que Ana Avoila, a coordenadora da Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública, anunciou uma greve geral do setor. Mas muitos destes manifestantes já conseguiram concessões vindas dos ministérios que tutelam os seus setores. O que os mantém nas ruas?
O que se passa? É só o fim do verão, dinâmicas próprias de cada setor que por coincidência se juntam nesta época, ou as greves estão na moda porque há um elo comum entre esta maior mobilização, em especial no setor público mas também no privado, (sem esquecer o caso da Autoeuropa)?
O que há a ganhar com a mobilização?
Exemplos recentes ajudam a perceber a forma como os sindicatos podem usar a greve, ou mesmo apenas um pré-aviso, para facilitar negociações e ver satisfeitas as suas reivindicações. Olhemos por exemplo para a paralisação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que tinha sido agendada para 24 e 25 de agosto, mas que acabou desconvocada após negociações.
A ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, teve de intervir junto do SEF para negociar com os sindicatos a contratação de mais inspetores. O Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF exigia a contratação de mais 200 inspetores — acabou por se acordar que seriam contratados 100, um “acordo possível” para Acácio Pereira, dirigente sindical que falou ao Público. Greve cancelada, ficou prometido que seria discutida a contratação de ainda mais pessoal no próximo ano. “Tudo está bem quando acaba bem”, acrescentou Acácio Pereira. Nem tudo acabou em bem, com as demissões que se seguiram na liderança do SEF.
Noutros casos, uma paralisação pode ser desconvocada mesmo sem garantias para lá do diálogo. Foi o caso, por exemplo, da muito anunciada greve dos juízes, que estava marcada para 3 e 4 de outubro, logo após as eleições autárquicas. Conversas com os líderes parlamentares resultaram num cancelamento da greve. “Às vezes, é mais corajoso recuar do que persistir”, disse à agência Lusa a sindicalista Manuela Paupério.
Porquê desconvocar? Segundo os juízes, a Assembleia da República deu garantias de que discutiria não só o estatuto profissional dos juízes, como planeado, mas também questões salariais, que a ministra da Justiça pretendia deixar de fora por falta de orçamento.
Outro exemplo de um recuo foi a greve da Carris, agendada para 31 de agosto. O Sindicato Nacional dos Motoristas agendou o protesto para contestar os cortes no salário e o incumprimento dos contratos de trabalho. Mas a 18 desse mesmo mês a greve foi desconvocada, graças ao “entendimento conseguido” com a administração da Carris, que foi suficiente para desconvocar a paralisação, explicou a própria estrutura sindical. No mesmo sentido, os trabalhadores do Metro também suspenderam a greve que tinham agendada para 1 e 3 de agosto depois de o concelho de administração da empresa ter ido “ao encontro de algumas das pretensões já antigas”, assumindo o compromisso de “tudo fazer junto do Governo para a contratação dos novos trabalhadores que ainda faltam”.
Mas há mais. Os farmacêuticos tinham marcada uma greve para 18 e 19 de julho, e por tempo indeterminado a partir de 1 de agosto, para exigir a imediata publicação da carreira farmacêutica no Sistema Nacional de Saúde (SNS), já negociada com o Governo, e consequente criação de uma carreira para os profissionais em regime de contrato individual de trabalho. Essa pretensão, “com mais de 20 anos”, acabou por ser satisfeita com a medida aprovada em Conselho de Ministros.
Também há casos em que, apesar de já terem tido retorno das suas exigências, os sindicatos preferem manter os pré-avisos ou mesmo levar a cabo as greves na esperança de conseguirem mais. Por exemplo, parece ser o caso com os enfermeiros, onde o ministro Adalberto Campos Fernandes afirma que há disponibilidade para negociar um novo Acordo Coletivo de Trabalho, repor as 35 horas e rever as carreiras, mas os dias de greve lá continuam no calendário — à espera de mais certezas. O mesmo ministro negoceia ainda com os médicos, que estão em protesto para procurar menos horas de trabalho extraordinárias e turnos de urgência de 12 em vez de 18 horas, entre outras exigências, mas acredita que “havendo boa vontade, será possível o entendimento”.
Alguns analistas, politólogos e economistas consultados pelo ECO acreditam que há ainda outros três fatores principais subjacentes à maior concentração de greves nesta altura do ano: o primeiro, o anual e incontornável Orçamento do Estado, o segundo, um possível papel das eleições autárquicas, e por último, o período de melhoria económica e financeira que Portugal está a viver.
Orçamento de Estado: Agora ou só em 2019
O professor universitário Viriato Soromenho Marques foi o primeiro a identificar, ao ECO, estes três principais fatores que unem as greves recentemente convocadas. Com o Orçamento do Estado, cada sindicato tem agora o momento crucial “para ver as suas reivindicações respondidas” — entre a entrega, a 13 de outubro, da proposta do Governo, passando pelos momentos de negociação que se vão seguir até à aprovação final.
“O Orçamento do Estado é a principal decisão de uma democracia e dura um ano”, sublinhou, ao ECO, o investigador José Adelino Maltez. “Se tiver condições para fazer alguma pressão, faço-a agora”. Para o politólogo, não existe uma maior concentração de greves este ano do que nos anteriores. Considera tudo “tradicional”, sem “sequer uma exaltação”.
O investigador especialista em sindicatos, Elísio Estanque, discorda. “Já se percebeu que há uma maior predisposição agora”, e que em parte isso pode ter a ver com os parceiros do Governo no Parlamento que procuram maior margem negocial para alterar o Orçamento do Estado depois de ele ser proposto. “Não podem deixar de aproveitar a sua ligação ao mundo sindical para aproveitar algum descontentamento, de maneira a influenciar, de algum modo, a sua margem de manobra em termos de negociação”.
Se não houver internamente uma determinada predisposição e subjetividade e expectativas, se eles não tiverem realmente uma motivação concreta para conseguir mais, os trabalhadores não se deixam instrumentalizar.
No entanto, os sindicatos não são instrumentos. “Se não houver internamente uma determinada predisposição e subjetividade e expectativas, se eles não tiverem realmente uma motivação concreta para conseguir mais, os trabalhadores não se deixam instrumentalizar”, assinalou. “Por outro lado é evidente que a máquina organizativa tem poder”.
Jogo de xadrez pós-autárquicas?
As eleições autárquicas de 1 de outubro mudaram muitas das dinâmicas locais que se viviam até agora, e um dos grandes perdedores foi o PCP, incluindo na sua coligação com Os Verdes. Para Elísio Estanque, embora ainda haja uma “distância curta para se tirarem grandes ilações”, o PCP poderá tentar “questionar a ideia de complacência e atitude de colaboração que tem tido com o Governo PS”.
Viriato Soromenho Marques di-lo com bastante certeza. O PCP tem um grande poder sobre os sindicatos afetos à CGTP e poderia tentar mostrar que ainda é poderoso através das suas demonstrações, embora isto seja, admite, “algo para avaliar caso a caso”.
“A CGTP como força social é mais forte do que o PCP”, contrapõe José Adelino Maltez. “Não é agora que vai haver conflito. E a CGTP percebe, melhor do que ninguém, que é preciso moderar a sua força. Não há que fazer análise política às autárquicas”.
Falando pela CGTP, o secretário-geral da central sindical, Arménio Carlos, criticou aqueles “que dizem que a resposta da CGTP está associada às autárquicas” por estarem mal informados sobre o programa e o projeto dos sindicatos. “Se lessem o que nós escrevemos, esses comentadores não fariam essas análises”. Até porque, afirma, a maior mobilização nesta altura do ano “não é este ano, é em todos os anos”.
João Cardoso Rosas, politólogo, também não vê ligação. “Para mim, a questão é independente do resultado das autárquicas”, disse. “A lógica do movimento sindical é independente das movimentações políticas. Os sindicatos estão a cavalgar a onda para não ficar para trás e aproveitar a onda de recuperação económica. Mão do PCP? “É um pouco teoria conspirativa”, responde ao ECO.
Mais dinheiro devia ser para todos?
Uma motivação mencionada ao ECO por todos os peritos é a da crescente perceção de que a economia portuguesa vai melhor e, por isso, há mais folga. Ainda esta terça-feira o Fundo Monetário Internacional prevê que a economia nacional deverá crescer 2,5% este ano, depois de 1,4% no ano passado, o que coloca Portugal entre os cinco países da zona euro que registam uma maior aceleração do crescimento.
Para Viriato Soromenho Marques, essa perceção pode traduzir-se numa ideia de que os rendimentos do país “deveriam ser de alguma forma redistribuídos pelos trabalhadores”, o que leva a reivindicações mais veementes.
“O movimento sindical ao ver a recuperação económica, depois de muitos anos em que estiveram na defensiva e estiveram em perda”, explica João Cardoso Rosas, vê-se agora com mais margem para exigir. E Elísio Estanque concorda: “Pressente-se que há alguma margem de manobra, alguma recuperação do poder de compra, para poder repor o que tinha sido tirado aos trabalhadores.
As greves dos enfermeiros ou da Função Pública, a segunda convocada pela Frente Comum, são exemplos claros disso. Ana Avoila, sindicalista da Frente Comum, frisou ao convocar a greve: “Se o Governo não inverter a situação, não descongelar salários, não fizer propostas de aumentos salariais, não fizer o descongelamento de posição remuneratória para todos […], a Frente Comum avançará com uma grande greve nacional”. Também os enfermeiros pedem 35 horas de trabalho semanal para todos e mesmo um aumento salarial de 400 euros que foi considerado “incomportável pelo ministro”.
Para Elísio Estanque, é cedo para saber como vai terminar a fase mais intensa de greves do ano. “Não sei ao certo até que ponto é que isto vai redundar numa mobilização muito abrangente, de maneira a criar agitação no país. Uma leitura dessas seria precipitada. O que há é um agitar de bandeiras porque se está na véspera de uma negociação”.
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