O Orçamento visto por um padre, uma bailarina, uma médica e um músico
Uma bailarina, um padre, um professor, um músico, uma médica e um ex-motorista de tuk-tuk. O que pensam da proposta de Orçamento do Estado para 2017?
Uma coisa são os números: aqui tem 7 essenciais para entender o Orçamento do Estado para 2017. Outra, bem diferente, são as pessoas. Entregue na passada sexta-feira, o Orçamento do Estado para o próximo ano tem muitos números e outras tantas pessoas. O ECO foi falar com não especialistas para perceber como é que a proposta é vista por um professor, uma bailarina, um ex-condutor de tuk-tuk, um músico e um padre.
É que, dos números à vida real… é tudo uma questão de perspetiva.
Felisberto Lima, professor, 57 anos
“Alguma volta tem de se dar a este Interior”, diz Felisberto Lima, de Moimenta da Beira, distrito de Viseu. “Tem de haver uma discriminação positiva de forma a incentivar o povoamento do Interior. Não sei como, não sou político, mas é uma preocupação muito grande de muita gente por cá”.
É neste contexto que o professor de História do Ensino Secundário louva as medidas da proposta do Orçamento de Estado para 2017 que constituem incentivos às empresas, com particular foco nos benefícios fiscais para aquelas que se instalem no interior do país. A medida, que se junta ao Programa Semente que vai dar descontos no IRS em troca de investimentos particulares em startups, contribui para uma viragem, “mas tem de ser junta com outras”, afirma ao ECO Felisberto Lima.
"Se houvesse um escalonamento [na distribuição de manuais] poderia haver um apoio maior aos miúdos que têm mais dificuldades.”
Enquanto professor, Felisberto vê ainda com bons olhos o alargamento da distribuição de manuais escolares gratuitos a todo o primeiro ciclo em 2017. “Tudo o que seja para aliviar as famílias eu acho que é bom”, resume. No entanto, sugere que se nem todos os alunos recebessem os manuais gratuitos, talvez se pudesse fazer chegar mais ajuda às famílias carenciadas. “Provavelmente vai haver famílias a quem isso não vai fazer uma grande diferença, enquanto que se houvesse um escalonamento poderia haver um apoio maior aos miúdos que têm mais dificuldades. Mas acho que é uma boa medida, em síntese”.
O professor de 57 anos sublinha ainda a sua preocupação com o emprego precário. “Estava a ouvir o ministro Vieira da Silva a dizer que se ia poupar em despesas com desempregados no próximo ano, cerca de 200 milhões de euros”, relembra. Mas a redução do desemprego não é, por si só, suficiente para criar estabilidade. O Governo deveria preocupar-se também, acrescenta, com “os jovens que são explorados, que ganham mal, que não têm contratos definitivos”.
André Pinto, músico e investigador, 27 anos
O Orçamento de Estado para 2017 traz quase mais 8 milhões de euros à Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e mais 26 milhões para o Ministério da Cultura comparativamente com 2016. Para André Pinto, investigador e músico, são financiamentos estatais cuja natureza “crucial” é comparável.
“As áreas de vanguarda na cultura não se podem reger, e não existe forma de se regerem, segundo parâmetros capitalistas de que uma coisa é boa porque dá dinheiro e porque vale ‘x’”, afirma André, de 27 anos, ao ECO. “É como a investigação científica nesse sentido. Não se vai financiar através de Kickstarters na Internet”. Assim, é importante que seja o Estado a investir no avanço da cultura e da ciência.
"Uma política anti-cultura será a política mais totalitária que pode existir.”
A arte “desde o tempo clássico que viveu sempre de mecenas, nunca foi à custa de quanto vale um quadro nem nos concertos que davam”, relembra o músico.
André Pinto, que faz parte do trio de avant-jazz Alförjs e que tem também um projeto a solo de música experimental, O Morto, sublinha que não é certamente na sua área, “um bocado de nicho”, que se fazem sentir aumentos nos cachês ou subsídios às fundações culturais. Mas a cultura, defende, é “das coisas mais importantes” nas quais o Governo pode apostar.
“A cultura é a identidade de um grupo de pessoas, é o que faz as pessoas terem afinidades”, explica. “Uma política anti-cultura será a política mais totalitária que pode existir”.
Carlos Guedes, ex-motorista de tuk-tuk, 27 anos
Enquanto se decidia entre trabalhar em Portugal ou na Polónia, Carlos Guedes, formado em Engenharia Aeroespacial, juntou uns trocos ao volante de um tuk-tuk pelas ruas lisboetas. Ao ECO, o jovem de 27 anos diz que o turismo “na sua maioria é muito positivo, porque é o que está a trazer algum dinheiro para o país e a salvar muitos empregos — nos restaurantes, nas empresas de turismo, nos hotéis”.
“Se não fosse o turismo não sei onde Portugal estava”, afirma Carlos. Não retirando a importância aos aspetos positivos do aumento do turismo, existe um ponto negativo que não deixa de apontar, apesar de nem viver em Lisboa mas sim na Costa da Caparica: “Se toda a gente põe a casa no Airbnb, quem é que vive em Lisboa? Querem ter uma cidade só com hotéis? É uma opção que tem de se tomar”.
"No fundo, este Governo também pratica a austeridade: fá-lo é para um lado em vez de fazer para o outro.”
Sobre o aumento dos impostos sobre os rendimentos decorrentes do alojamento local previsto no Orçamento de Estado para 2017, Carlos prefere chamar a atenção para o problema mesmo ao lado: “Mais do que aumentar os impostos, deviam era ver se andam todos a pagar os impostos, porque toda a gente conhece pessoas que têm alojamento local e que não se registaram, ou porque ainda não conseguiram ou porque não querem”.
A tentar equilibrar as exigências da Europa e a parceria com os partidos à esquerda, o PS acabou por criar um Orçamento “em que se tenta agradar a uns para depois agradar aos outros”, diz Carlos. “No fundo este Governo também pratica a austeridade: fá-lo é para um lado em vez de fazer para o outro”.
Carlos, cujos pais são funcionários públicos, louva o Governo de António Costa por continuar a devolver os rendimentos que tinham sido cortados a essa classe, mas vê alguns riscos a longo prazo. “Não vai resolver o problema de fundo. O Governo ou faz realmente a reestruturação da dívida, ou… se não houver investimento não há crescimento e eles não conseguem sustentar isto”, afirma.
Mónica Pombo, professora de dança, 40 anos
Um dos “aumentos” que traz o Orçamento do Estado para 2017 é o aumento da verba dos gastos do Ministério da Cultura: para o ano serão de 444,8 milhões de euros, mais 26,1 milhões de euros do que no ano passado. Que influência terá este aumento no panorama nacional da dança?
No Conservatório do Centro Cultural de Amarante Maria Amélia Laranjeira, onde Mónica Pombo é professora de dança desde que o ensino foi oficializado, em 2010, o novo Orçamento do Estado não tem sido motivo de alarido ou motor para grandes mudanças. Embora a instituição seja privada, é subsidiada pelo Ministério da Educação, e, por isso, dispõe dos mesmos fundos que qualquer escola pública, dentro do ensino artístico especializado, tem.
“Ao nível da dança já sentimos mais dificuldades do que as que estamos a sentir agora, sobretudo porque a dança, até há uns anos, era pouco apoiada, não se sabia o que era, a nível de desenvolvimento psicomotor das crianças havia alguns estudos mas não eram tomados em conta”, refere Mónica. Hoje é ao contrário, porque música e dança funcionam de diferentes maneira.
"A música é financiada aluno a aluno e na dança financia-se em turma, é muito mais fácil, e qualquer professor de dança está resguardado desde que haja turma, havendo muitos ou poucos alunos.”
Com o aumento da verba para o Ministério da Cultura, onde se integra a dança, Mónica considera que as diferenças serão notórias apenas ao nível das grandes companhias de dança. “Esse valor pode alterar a dinâmica da Companhia Nacional de Bailado, porque os espetáculos podem ser mais dinâmicos”, refere a professora. “Ao nível de escolas, penso que não vai haver grande alteração porque a forma como são direcionados esses fundos não vai alterar nada. Aquilo em que não somos patrocinados, não vamos agora passar a ser. O dinheiro que já temos é o que vamos continuar a ter.”
O que, sim, pode vir a influenciar o conservatório de Amarante, onde o ensino da dança é articulado com o ensino oficial, são as saídas profissionais. “Neste momento [as saídas profissionais dos alunos de dança] eram escassas. Basta ver quantas universidades há a nível nacional a permitir a continuação do estudos em dança, só a FMH e a Escola Superior de Dança”, acrescenta Mónica, que se licenciou na primeira faculdade assinalada.
“A vida de um bailarino é curta, ainda que as coisas ultimamente tenham mudado e existam mais bailarinos já com alguma idade ainda a dançar. Este aumento pode fazer com isso mude”, acrescenta.
Tiago Pires, sacerdote, 43 anos
Sobre a proposta de Orçamento do Estado, Tiago Pires, de Alpiarça (Santarém), é perentório: “O ponto mais negativo é o aumento de vários impostos ligados aos transportes”. Ao padre católico, o “aumento do imposto sobre produtos petrolíferos, sobre veículos e o de circulação” parecem-lhe “um exagero claro”. E porquê? Porque não existem “alternativas de transporte público de qualidade”, aponta.
Mas há muita coisa positiva na proposta do Governo. Por exemplo, “a manutenção da majoração do subsídio de desemprego nos casais com filhos, em que ambos estão desempregados”, ou mesmo “a permanência da ajuda aos desempregados de longa duração”, diz, alertando, porém, que “estas medidas têm de ser acompanhadas de um incentivo à procura de emprego”.
"Agrada-me que a sobretaxa no IRS seja eliminada primeiro aos escalões mais baixos, lamentando que não se cumpra a lei que determinava a sua eliminação no início do ano.”
Depois, no que toca ao polémico imposto sobre imóveis, Tiago Pires refere que lhe “parece uma boa alternativa à eliminação de taxas atuais”. Mais: “É positivo o aumento do salário mínimo, do Abono de família e da bonificação aos deficientes, do subsídio de refeição e das pensões”, acrescenta. Também lhe “parece bem a diminuição da despesa estatal com pareceres e consultadoria”, ao mesmo tempo que o “imposto a refrigerantes demasiado açucarados” lhe parece apenas uma medida pedagógica.
Há, porém, um pormenor deste Orçamento que agrada bastante ao padre Tiago Pires: “Gosto particularmente dos benefícios fiscais às empresas que se instalem no interior do país”, indica. E fica a faltar “a sobretaxa no IRS”: “Agrada-me que seja eliminada primeiro aos escalões mais baixos”, defende, “lamentando que não se cumpra a lei que determinava a sua eliminação no início do ano”, critica.
Margarida Neto, médica psiquiatra, 55 anos
As pensões mínimas, até 275 euros, vão ter direito à atualização prevista por lei, ao valor da inflação, mas não vão ser abrangidas pelo aumento extraordinário de 10 euros, que está previsto na proposta de Orçamento do Estado para 2017, porque já foram atualizadas pelo anterior Governo. Para Margarida Neto, “esse é o escândalo deste Orçamento”.
A médica psiquiatra, de 55 anos, reconhece que o aumento das pensões “é importante”, mas esta é “uma situação absolutamente injusta”. “Se há pensões que precisam de ser mexidas, são as mais baixas das mais baixas. Temos de perceber qual é a folga orçamental, mas distribuiria nem que fosse cinco euros a estas pensões”, sublinha.
Veredicto? “O ministro das Finanças diz que este é um Orçamento de esquerda, mas não sei onde“.
Na saúde, onde trabalha, e que em 2017 vai contar com mais 353 milhões de euros do que este ano, nem tudo é bom, nem tudo é mau.
Começando pelo bom: os médicos em serviço de urgência vão receber mais pelas horas extraordinárias. “Pagar bem aos médicos que fazem horas extraordinárias e noites é um fator decisivo”, defende.
Ao mesmo tempo, a taxa sobre os produtos açucarados vai aumentar e, na prática, vai levar, por exemplo, a que uma lata de refrigerante fique cinco cêntimos mais cara. Também o imposto sobre o álcool vai subir 3% em 2017. “Estou totalmente de acordo com aumentar o imposto sobre aquilo que faz mal à saúde, e cujas repercussões vamos pagar em serviços de saúde que são caros”, salienta a psiquiatra. Mas o aumento de impostos é eficaz para a saúde pública? “É dissuasor, claramente. Se não tiver a sua dose de eficácia, pelo menos, o Estado pontua a sua posição”.
Agora, o mau: “Não foram orçamentados os cuidados continuados em saúde mental. Têm sido completamente deixados de parte. As coisas podem anunciar-se, mas, não havendo Orçamento, é como se não existissem”.
Mas o que verdadeiramente preocupa Margarida Neto é o que vem depois deste Orçamento. “Há um empurrar com a barriga, as pessoas vão ficando sem a sobretaxa até ao final do ano, mas, para mim, a incógnita deste Orçamento do Estado é o que é que vai acontecer em 2018. O Orçamento de 2018 vai ser muito complicado”, acredita.
Por outro lado, em 277 páginas, o Orçamento do Estado nunca consegue apresentar ideias verdadeiramente novas. “Parece-me sempre que o Orçamento vai tentando tirar daqui, tirar dacolá, parece uma mercearia. Apenas decidem onde é que se vai buscar mais para se cumprir o défice”, critica, ressalvando que defende que “as orientações europeias são para se cumprir”. Contudo, gostava de ver um Orçamento do Estado “sair das contas e ter ideias novas, ousadas, diferentes, para melhorar a economia e pôr a economia a mexer”.
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