Poiares Maduro: “Era importante trazer lógica de solidariedade aos fundos competitivos”

Na proposta de orçamento, a Comissão reforçou a dotação dos programas centralizados e competitivos, mas cortou a dotação da Política de Coesão e da PAC. Poiares Maduro sugere solidariedade.

“É estranho que seja este o ponto de partida da Comissão“, diz Miguel Poiares Maduro em entrevista telefónica ao ECO. Para o antigo ministro do Desenvolvimento Regional, responsável pela negociação do quadro comunitário agora em vigor, não faz sentido que Bruxelas sacrifique a Política de Coesão em detrimento de novas prioridades. “Não sei o que falhou a este nível para a Comissão sair com uma proposta destas”, disse.

Para Poiares Maduro, uma das soluções “fora da caixa” seria introduzir uma lógica de solidariedade nas fundos centralizados e competitivos, como o Horizonte 2020 e o Plano Juncker, que recebem um reforço de dotação na proposta da Comissão Europeia. A ideia seria permitir que os países menos desenvolvidos — da Coesão — tivessem mais facilidade em aceder a fundos onde, naturalmente, os países ricos têm mais vantagens, explica.

As negociações vão ser difíceis, reconhece o professor do Instituto Universitário Europeu, em Florença, mas não é impossível evitar os cortes propostos. “É um desafio muito grande mas não significa que não possa ser conseguido”, diz numa nota de esperança e até deixa dicas ao presente Executivo para levar a cabo as negociações. Para o ministro de Pedro Passos Coelho, o ideal seria aumentar as receitas próprias da Comissão — um ponto no qual a proposta da Comissão “foi muito tímida” — e distribuir as recitas “numa lógica de solidariedade e não competitiva”.

Quanto a concluir as negociações antes das eleições europeias, de 26 de maio, Poiares Maduro disse que já achou a possibilidade “mais realista”.

Qual deve ser a estratégia que o Executivo deve seguir perante a proposta de Orçamento apresentada pela Comissão Europeia?

É difícil avaliar qual estratégia negocial a seguir, porque não sei as condições nem as variáveis. Quando negociei o quadro anterior a situação era particularmente difícil, com a entrada de novos Estados membros. Desta vez, temos a saída do Reino Unido e a necessidade de financiar novas políticas europeias. Na altura havia um número muito superior de países a concorrer pelo mesmo bolo e, mesmo assim, foi possível a Portugal manter as mesmas verbas. Em vez de concorrer com os outros países da coesão, Portugal fez uma política coligada e usou-se soft power; ter o presidente da Comissão Europeia a trazer sensibilidade relativamente à política de coesão também ajudou. É um desafio muito grande, mas não significa que não possa ser conseguido. Há que pensar em defender a política de coesão tal como existe, mas deve haver alternativas complementares.

Como por exemplo?

É muito importante tentar inovar, trazendo uma lógica de solidariedade para os outros fundos europeus centralizados e competitivos, como o Horizonte — que aumentou imenso — ou até o Fundo Europeu de Investimento (Plano Juncker). O problema (e o desafio) não é o Reino Unido já não ser contribuinte e haver novas políticas. Houve uma opção clara da Comissão em privilegiar outras políticas. O problema não é a política da Ciência e da Inovação, é o facto de estes programas serem regressivos. São competitivos. As universidades e as empresas dos países mais desenvolvidos atingem uma percentagem maior desses fundos. Está-se a fazer a fazer um orçamento mais regressivo. Podia-se compensar tentando que uma percentagem das verbas do programa para a Ciência e Inovação, apesar de geridos centralmente, fosse reservada a projetos em regiões menos desenvolvidas e/ou regiões de mais baixa densidade. Usando as verbas de ciência e inovação nessas regiões, por exemplo, Portugal estaria a corrigir essa lógica regressiva.

Isso era possível?

Era inovador, nada impede nas regras dos Tratados e era uma forma de pensar fora caixa. Os comissários não representam os países, mas são sensíveis a determinados temas, tal como Durão Barroso era sensível à Coesão e foi fundamental para proteger a Política de Coesão.

Nesta proposta de orçamento da Comissão há um peso excessivo dos programas centralizados?

Há uma mudança nesse sentido. Os programas mais descentralizados são os da política de coesão e da política agrícola comum (PAC) onde há uma diminuição mais significativa das verbas. Chegou-se mesmo a falar de que o Fundo Social Europeu seria gerido todo de forma centralizada, pela Comissão Europeia, mesmo que os Estados tivessem verbas definidas. Esta opção resulta de uma avaliação que a Comissão Europeia faz da gestão dos Estados membros. Seria impor uma centralização dentro do Estado membro: os programas regionais só poderiam ter Feder e Fundo de Coesão. O Fundo Social Europeu só estaria nos programas temáticos. Dia 29 vamos ver se algumas destas versões são verdade. É um erro da Comissão Europeia.

Em Portugal, por exemplo, há o risco de captura dos fundos pela Administração Central para despesa corrente. Um risco que é particularmente forte no Fundo Social Europeu e que aumentaria se fosse gerido a nível central. No Portugal 2020 pusemos o FSE nos programas regionais para diminuir esse risco.

Porquê?

Não porque os fundos estejam bem geridos, mas em Portugal, por exemplo, há o risco de captura dos fundos pela Administração Central para despesa corrente. Um risco que é particularmente forte no Fundo Social Europeu e que aumentaria se fosse gerido a nível central. No Portugal 2020 pusemos o FSE nos programas regionais para diminuir esse risco de captura e de desvio das verbas para despesa corrente. Se as novas regras o fizerem vão agravar essas circunstâncias. Isto tudo diz-me que a Comissão tem uma apreciação negativa da forma como os fundos são geridos pelos Estados membros, porque sabem dos riscos, capturas e instrumentalização e que mudam de Estado membro para Estado membro. Não é a resposta adequada para os problemas que existem. A Comissão Europeia deveria dar maior importância aos Acordos de Parceria, à investigação de como funcionam as regras, as instituições e as autoridades de gestão dos fundos, o papel destas e a sua capacitação. Os serviços da Comissão quase que desenvolvem obsessões em relação a determinados temas, em vez de garantir que não há intromissões políticas nas autoridades de gestão dos fundos. Não vejo preocupação suficiente a esse nível.

A dimensão do que se suspeita ser o corte do Fundo de Coesão é reversível?

Há quem diga que com o corte previsto no Fundo da Coesão — que era o fundo com o corte maior — para Portugal, o corte do envelope financeiro andaria por volta dos 12%. Acredito que este corte é reversível nas negociações. Mas não é fácil. É estranho que seja este o ponto de partido da Comissão, tendo em conta que Jean-Claude Juncker é defensor da Coesão. Não sei o que falhou a este nível, para a Comissão sair com uma proposta destas. Há vários Estados com interesse na Política de Coesão. Para nós estes fundos têm uma importância fundamental. Somos dos países mais dependente dos fundos para investir. Mais de 80% do investimento público vem dos fundos europeus.

Acredito que este corte é reversível nas negociações. Mas não é fácil. É estranho que seja este o ponto de partido da Comissão.

O Governo deveria ter negociado de forma mais próxima com os países da Coesão em vez de tentar formar alianças com Espanha, por exemplo?

Não quero criticar porque não sei se o fizeram ou não. Se não o fizeram foi um erro, seguramente. No quadro anterior foi fundamental ter feito uma coligação com os países da Coesão, em vez de concorrer com eles. Espero que a estratégia seja repetida agora. Estranho se não o foi. Todos sabem que a proposta da Comissão define um pouco a proposta final.

A solução será aumentar as contribuições?

Pode ser uma das possibilidades. Tentar não fazer os Estados membros aumentarem as contribuições, mas aumentar os recursos próprios é outra hipótese. Mas aqui a proposta da Comissão foi muito tímida. É curioso porque há estudos de opinião, nomeadamente do YouGov, que demonstram os resultados mais variados nos Estados membros. Se perguntarmos aos cidadãos europeus se a Comissão Europeia deve ter mais dinheiro e gastar mais, a resposta na maioria dos países do norte da Europa, exceto na Alemanha, é não. Já os países do sul são ligeiramente a favor. Isto demonstra a existência de reservas globais. Mas se perguntarmos aos cidadãos se são a favor da criação de impostos europeus sobre as grandes empresas da economia digital ou sobre as emissões de carbono, mais de 70% são a favor. Uma percentagem ligeiramente mais pequena (em torno dos 60%) é a favor da tributação das transações financeiras. As receitas devem ser distribuídas numa lógica de solidariedade e não competitiva.

Mas é possível encontrar uma base de tributação comum?

Porque não? Trata-se de corrigir um problema de justiça fiscal. Tecnicamente pode ser difícil definir quais as empresas que vão estar sujeitas, ou qual o grau de tecnologia a partir do qual as empresas passam a estar sujeitas ao imposto. Além disso, pode introduzir distorções, levando as empresas a tornarem-se menos tecnológicas para não serem tributadas. Mas se a medida for bem desenha era muito interessante.

Será possível concluir as negociações do orçamento comunitário antes das eleições europeias agendadas para 26 de maio de 2019?

Já achei que era mais realista. É pouco provável, mas haverá uma enorme pressão para que isso aconteça. Com uma nova Comissão complica e com um Parlamento Europeu mais fragmentando e mais eurocético, a Comissão vai jogar com isso. Pode haver acordo antes por temor dos Estados membros de que os riscos são grandes. A proposta da Comissão responde ao desafio político: um orçamento maior e com menos contribuintes líquidos, que solicita mais dinheiro aos Estados membros mais ricos, mas assegura também que vão ter um bolo maior. Daí o facto de retirar dinheiro das políticas retributivas.

A proposta da Comissão responde ao desafio político: um orçamento maior e com menos contribuintes líquidos, que solicita mais dinheiro aos Estados membros mais ricos, mas assegura também que vão ter um bolo maior. Daí o facto de retirar dinheiro das políticas retributivas.

É uma forma de castigar a Polónia?

É uma leitura possível. Mas se querem usar os fundos para os condicionar em matéria de Estado de Direito, então, quanto menos importantes forem os fundos menos importante será o chicote. E não se trata apenas da Polónia, mas também de Malta, Eslováquia, Hungria, por isso deveria dar mais importância aos fundos de coesão.

A Comissão explicou que os cortes não são um massacre e que também não poderia pedir demais caso contrário a proposta não seria considerada.

À Comissão não basta disser que tem de cortar na Política de Coesão porque não pode pedir mais contribuições aos Estados. O corte na Política de Coesão não é proporcional às contribuições dos Estados membros até porque eles aumentaram os fundos regressivos (como o Horizonte 2020).

O Governo estava mal preparado para esta negociação?

Não acredito que esteja. Não quero pressionar ou fazer jogo político. O Governo tem o apoio forte do PSD para obter as mesmas verbas, foi dito publicamente e na estratégia negocial tem de dizer que é o mínimo. A proposta da Comissão é bastante má e pode ser ainda pior por causa do mix e partição de verbas entre fundos. Do ponto de vista negocial, o Governo não pode começar por admitir um resultado abaixo do que tem, perder verbas.

Que dicas deixaria ao Executivo para esta negociação?

É muito importante manter uma ligação com os países da Coesão. A nossa diplomacia sabe jogar isso muito bem. Não optar por uma lógica de concorrência. É muito importante ter todos os mecanismos de soft power, canais de comunicação com outros líderes, e pensar não em termos de plano B, mas em soluções fora da caixa, soluções de solidariedade que nos beneficiem e introduzam critérios para que parte substancial dessas verbas revertam a favor dos países da Coesão. E aumentar o bolo não através das contribuições mas dos recursos próprios. O Governo deveria ainda criar uma narrativa a nível global: estas perspetivas financeiras não podem ser regressivas face ao passado. O grau de regressividade não pode ser superior ao do quadro anterior. É necessário conseguir fixar no debate esse ponto de partida.

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