Pagar para ganhar um jogo é crime?

Pagar a um jogador ou a um clube para perder é considerado crime de corrupção, seja passiva ou ativa. Mas e pagar para ganhar? Será crime? O ECO foi saber se o chamado "jogo da mala" já é punível.

No desporto, pagar a um jogador ou a um clube para perder é crime de corrupção, seja passiva ou ativa. Mas e pagar para ganhar? Será crime? Ao ECO, dois advogados explicam que sim. O chamado “jogo da mala” — caso em que um determinado agente desportivo aceita uma contrapartida para ganhar um jogo — já é punível por lei, mas só recentemente. Até há pouco tempo, os incentivos para um clube vencer determinada partida não eram considerados crimes uma vez que o objetivo último de qualquer competição já é ganhar.

Questão que importa agora para o desfecho da Operação ‘Mala Ciao’, que investiga o Benfica por suspeitas de corrupção desportiva, ativa e passiva, tráfico de influência e oferta ou recebimento indevido de vantagem.

A operação arrancou depois de a SAD do Benfica, no Estádio da Luz, e das instalações do Vitória de Setúbal, Desportivo das Aves e Paços de Ferreira terem sido alvos de buscas pela Polícia Judiciária (PJ) do Porto, no passado dia 25 de junho, depois de ter sido feita uma denúncia anónima. Uma das suspeitas em causa estará relacionada com eventuais incentivos por parte do Benfica a atletas de outros clubes, para que vencessem o FC Porto.

Mala Ciao: uma denúncia anónima, 24 buscas

Ao todo foram levadas a cabo cerca de 24 buscas — catorze das quais domiciliárias e dez não domiciliárias — em Viana do Castelo, Braga, Bragança, Porto, Lisboa e Setúbal.

Em comunicado, o Benfica confirmou as buscas e mostrou-se disponível para colaborar na investigação, “no sentido de um profundo e cabal esclarecimento deste processo”. “Foi recolhida informação junto da SAD do clube por parte de uma equipa da Policia Judiciária” por causa de um processo que teve “com base numa denúncia anónima efetuada no Porto“.

Jogo da mala na Madeira? “Se for para ganhar, nem que seja um ovo estrelado”

Também Jorge Jesus já se tinha manifestado sobre o dito jogo da mala, quando questionado, numa conferência de imprensa, sobre se estaria preocupado que os jogadores do Marítimo recebessem para vencer o Sporting. O antigo treinador do clube verde e branco disse que caso houvesse incentivos para ganhar, não haveria problema:

“Não temo nada. Segundo me parece isso não é permitido, mas se tiverem é para ganhar. E se for para ganhar, nem que seja um ovo estrelado, sabe bem. Mas devíamos acabar com essa conversa. Devíamos era estar atentos com que se tem passado com jogos combinados para não se ganhar. Isso é que tem de ser punido, seja a quem for. Agora para ganhar, faz parte do jogo“.

Anteriormente era difícil enquadrar esse comportamento no crime de corrupção desportiva, uma vez que o mesmo exige que haja intenção de falsear ou alterar o resultado de uma competição desportiva, o que não seria o caso, segundo os artigos 8º e 9º da Lei 50/2007, de 31 de agosto, do Regulamento de Responsabilidade Penal por Comportamentos Antidesportivos.

Luís Menezes Leitão

Advogado

De facto, é nesse ponto que assenta a dúvida: se um clube tem sempre a intenção de ganhar um jogo, como é que ao ser incentivado para esse fim pode ser crime? “Anteriormente era difícil enquadrar esse comportamento no crime de corrupção desportiva, uma vez que o mesmo exige que haja intenção de falsear ou alterar o resultado de uma competição desportiva, o que não seria o caso, segundo os artigos 8º e 9º da Lei 50/2007, de 31 de agosto, do Regulamento de Responsabilidade Penal por Comportamentos Antidesportivos“, explica Luís Menezes Leitão, advogado e membro da Ordem dos Advogados, ao ECO.

“Atualmente e após a revisão dessa lei pela Lei 13/2017, foi aditado o artigo 10º-A, que pune como crime a oferta ou recebimento indevido por parte do agente desportivo de vantagem patrimonial ou não patrimonial que não lhe seja devida, por parte de alguém que possa ter uma pretensão dependente das suas funções”, adianta o advogado. Entre as principais alterações desta lei de 2017, está também o agravamento das molduras penais a aplicar aos crimes de corrupção no desporto.

Também a interpretação de João Lima Cluny, associado principal da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva e Associados, em declarações ao ECO, aponta no mesmo sentido: “Até esta alteração legislativa de maio de 2017, que introduziu o artigo 10.º-A na lei 50/2007, entendo que o pagamento de contrapartidas aos jogadores ou às equipas com o objetivo de vencerem as suas partidas não consubstanciava a prática de qualquer crime”.

Com efeito, até a alteração legislativa de maio de 2017 à Lei n.º 50/2007, o legislador apenas previa ilícitos que visavam evitar que o resultado de uma competição desportiva fosse alterado ou falseado. Ou seja, o bem jurídico protegido não estava em risco quando se incentivava alguém a jogar para ganhar, fim último de qualquer competição.

João Lima Cluny

Associado principal da MLGTS

Antes desta alteração, estavam apenas previstos ilícitos que visavam evitar que o resultado de uma competição desportiva fosse alterado ou falseado. “Ou seja, o bem jurídico protegido não estava em risco quando se incentivava alguém a jogar para ganhar, fim último de qualquer competição“, esclarece o advogado da MLGTS.

Sendo o “jogo da mala” punível criminalmente, pode então ser considerado corrupção? As opiniões dos advogados voltam a convergir: pagar para ganhar não se considera corrupção, mas sim oferta ou recebimento indevido de vantagem, “embora a pena seja próxima da do crime de corrupção ativa“, diz Luís Menezes Leitão. “Não se enquadra nos tipos de criminais de corrupção, tal como previstos nos artigos 8º e 9º” — que dizem respeito a corrupção ativa e passiva –, acrescenta João Lima Cluny.

Assim, o crime de oferta ou recebimento indevido de vantagem é punido, quando praticado pelo agente que solicita ou aceita a vantagem, ou a sua promessa, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias. Quando é praticado por aquele que oferece ou promete a vantagem, a pena de prisão pode ir até três anos ou com pena de multa até 360 dias.

“Estas penas podem ser agravadas em determinadas circunstâncias, como seja a sua prática por pessoa coletiva desportiva. De notar, ainda, que o crime de oferta ou recebimento indevido de vantagem previsto nesta Lei apenas se aplica a factos praticados após a sua entrada em vigor, ou seja, maio de 2017“, salienta ainda o advogado da MLGTS.

Infração às regras desportivas

Para além do jogo da mala ser criminalmente sancionado, é cometida ainda uma infração às regras desportivas, uma vez que se está a tentar influenciar a prestação por parte dos agentes desportivos através de um comportamento contrário à ética desportiva. “Por parte do praticante desportivo que aceite receber essas vantagens, tal representa igualmente violação dos seus deveres laborais para com a sua entidade empregadora, nos termos do art. 13º e) da Lei 54/2017, de 14 de julho, uma vez que é igualmente dever laboral do trabalhador desportivo o respeito das regras da ética desportiva”, conclui Luís Menezes Leitão.

No futebol, este comportamento é ainda punido disciplinarmente. Segundo realça João Cluny, “é considerado infração grave tanto no que respeita a competições profissionais, pelo Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP), tanto no que respeita a competições não profissionais, através do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (FPF)”. Por isso, antes de esta lei entrar em vigor em 2017, o jogo da mala só era punido com sanções desportivas.

O artigo 84.º do Regulamento Disciplinar da LPFP, referente a incentivos ilícitos a clubes, dá conta de que “o clube que, por si ou por interposta pessoa, oferecer, prometer ou entregar dinheiro ou qualquer outra vantagem patrimonial ou não patrimonial a um terceiro clube, sem que lhe seja devido, com vista à obtenção de um resultado positivo por parte deste num jogo oficial, assim como este terceiro clube, serão punidos com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 125 Unidade de Conta (UC) e o máximo de 250 UC”, sendo que cada UC, tabelas definidas pelos tribunais, vale 102 euros. Feitas as contas, o máximo de multa aplicada pode atingir 25.500 euros.

Sobre estímulos de terceiros, “os dirigentes que cometerem as faltas previstas no artigo 84.º são punidos com sanção de suspensão de a fixar entre o mínimo de três meses e o máximo de um ano e, acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 150 UC”, pode ler-se no artigo 134º.

Os jogadores que derem, prometerem ou aceitarem recompensa ou promessa de recompensa de terceiros com vista à obtenção de um resultado positivo são punidos com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 125 UC“, prevê ainda o artigo 156º.

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