Junta quer anular alojamentos locais em Alfama, Castelo e Mouraria registados depois da nova lei
Santa Maria Maior, freguesia de Lisboa que concentra os bairros de Alfama, Castelo e Mouraria, entende que os registos de alojamento local feitos após a publicação da nova lei poderão ser anulados.
A aprovação da nova lei do alojamento local no Parlamento, em julho, foi o mote para a corrida às licenças. No espaço de um mês e meio, já foram registados mais de 800 novos alojamentos só no centro histórico de Lisboa, o dobro do que há um ano. É este número que a freguesia de Santa Maria Maior, onde se concentram os bairros lisboetas mais pressionados pelo alojamento local, quer travar. A nova lei permite suspender a concessão de novas licenças até que seja aprovado um regulamento que defina as chamadas “áreas de contenção”, mas o executivo desta junta entende que os registos já feitos desde que a lei foi aprovada poderão mesmo ser anulados.
As alterações à lei do alojamento local foram publicadas em Diário da República em agosto e entrarão em vigor no prazo de 60 dias, ou seja, no dia 21 de outubro. A nova lei prevê que as câmaras municipais possam aprovar um regulamento onde fiquem definidas as chamadas “áreas de contenção”, ou seja, zonas onde poderão ser impostos limites relativos ao número de estabelecimentos de alojamento local. Tendo em conta o tempo que a aprovação desse regulamento poderá demorar, e para evitar que as circunstâncias de cada zona se alterem durante esse período, os municípios podem suspender, por um prazo máximo de um ano, a autorização de novos registos de alojamentos locais em áreas delimitadas, até que este regulamento entre em vigor.
Logo após a aprovação da lei, a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior propôs à Câmara de Lisboa, que aceitou a proposta, que se avançasse com a suspensão imediata de novos registos em Alfama, Castelo e Mouraria, os três bairros que a junta considera serem os mais afetados.
Contudo, a suspensão de novos registos só poderá ser posta em prática depois de a lei entrar em vigor, a 21 de outubro. Até lá, uma consulta ao Registo Nacional de Alojamento Local basta para perceber que o ritmo de novos registos não deverá abrandar. Entre 17 de julho, data em que a lei foi aprovada na Assembleia da República, e 31 de agosto, foram registados cerca de 1.300 alojamentos locais no município de Lisboa, a grande maioria dos quais nas freguesias do centro histórico da cidade: 349 em Santa Maria Maior, 216 na Misericórdia (que abrange a zona do Chiado e Cais do Sodré), 149 em Santo António (a zona da Avenida da Liberdade, Marquês de Pombal e Rato) e outros 98 em São Vicente (onde fica a Graça). Mesmo contando apenas a partir de 22 de agosto, data em que a nova lei foi publicada em Diário da República, já foram registados 37 novos alojamentos em Santa Maria Maior, 52 na Misericórdia, 21 em Santo António e 28 em São Vicente.
Assim, o executivo de Santa Maria Maior é claro: “Achamos um erro que se tenha dado dois meses como prazo para a entrada em vigor da lei”, diz o presidente desta junta, Miguel Coelho, em declarações ao ECO. “No entendimento desta Junta de Freguesia, os novos registos poderão ser anulados”.
No entendimento desta Junta de Freguesia, os novos registos poderão ser anulados.
Opinião diferente têm os especialistas contactados pelo ECO. “A lei não prevê nenhum mecanismo que permita às câmaras municipais cancelarem ou anularem estabelecimentos de alojamento local devidamente registados entre a data da publicação da lei e a data da sua entrada em vigor. A possibilidade de suspensão (de novos registos e não dos atuais) só vigorará a partir da entrada em vigor da lei”, explica Salvador Pires Marques, advogado do departamento de imobiliário da CMS Rui Pena & Arnaut. “O cancelamento dos registos atuais apenas pode ter por base o incumprimento dos requisitos legais aplicáveis”, ressalva.
Margarida Osório de Amorim, sócia da PLMJ para as áreas de imobiliário e construção, e Vasco Franco, associado coordenador de imobiliário e construção da mesma sociedade de advogados, detalham que o artigo referente às “disposições transitórias” da nova lei “acautela e protege os registos de alojamento local no Registo Nacional de Alojamento Local realizados até à entrada em vigor desta lei (ou seja, até dia 21 de outubro) na medida em que expressamente prevê e refere que estes registos se mantêm válidos, ou seja, não são afetados pela entrada em vigor do novo regime do alojamento local“.
[A lei] expressamente prevê e refere que estes registos se mantêm válidos, ou seja, não são afetados pela entrada em vigor do novo regime do alojamento local.
Um advogado especializado em direito público, que prefere não ser citado, resume também que “o entendimento da freguesia não tem fundamento”, uma vez que “as regras transitórias são claras em manter válidos os registos feitos até à entrada em vigor da lei (21 de outubro)”.
O ECO tentou, por diversas vezes, contactar fonte oficial da Câmara Municipal de Lisboa, para conhecer qual a interpretação que a autarquia faz em relação a este aspeto, mas não obteve qualquer resposta. A Câmara Municipal do Porto, outra das zonas do país onde existem freguesias com elevada pressão turística, também foi contactada, mas não respondeu até à hora de publicação deste artigo.
Uma lei “preferível” a “lei nenhuma”
Miguel Coelho, que está à frente de uma das freguesias mais afetadas pelo fenómeno do alojamento local, tem sido um dos maiores defensores das alterações à lei. Agora que chegaram, vê aspetos positivos, mas esperava mais. “As alterações são positivas”, admite, mas ressalva: “Parece-nos evidente que seria preferível que os prazos fossem mais curtos“.
Ainda assim, considerando que a perspetiva inicial, quando as alterações à lei começaram a ser discutidas, era de que “seria impossível alcançar uma legislação reguladora do alojamento local, por falta de sensibilidade das entidades reguladoras e agentes económicos”, o presidente da Junta reconhece que “é preferível a lei que temos do que lei nenhuma”.
O autarca admite também que o alojamento local tem “algum peso” na economia da freguesia, mas está disposto a perder algumas unidades para compensar outros fatores. “O balanço negativo que representa a perda de residentes, o encerramento de estabelecimentos históricos e de comércio tradicional e a consequente saída dos trabalhadores desses estabelecimentos para conversão dos edifícios em alojamento local… Tudo isto é muito superior aos benefícios concretos que o alojamento local tem trazido“.
Assim, diz, esta atividade só faz sentido se for “devidamente regulada”. Aliás, os bairros de Alfama, Mouraria e Castelo “só teriam a ganhar em termos de coesão social e de recuperação da sua autenticidade se o alojamento local nessas zonas regredisse”.
Alfama, Mouraria e Castelo só teriam a ganhar em termos de coesão social e de recuperação da sua autenticidade se o alojamento local nessas zonas regredisse.
Atualmente, Santa Maria Maior é a freguesia lisboeta com maior número de alojamentos locais, com 3.695, o que representa mais de 25% do total de unidades registadas no município de Lisboa. Um estudo feito no final de 2016 apontava para que 22% das casas existentes nesta freguesia estivessem registadas no Airbnb, o que significa que mais de um quinto das casas disponíveis nesta zona serviam para alojar turistas. Nessa altura, Santa Maria Maior contava com menos de metade dos alojamentos locais que tem hoje.
Segundo os dados da Junta, entre setembro de 2013 e abril deste ano, a freguesia de Santa Maria Maior perdeu 2.095 eleitores, o que representa perto de 17% da população total. “É muito preocupante. É ainda mais preocupante se pensarmos que, desde abril até ao presente, a perda de moradores não foi estagnada”, aponta Miguel Coelho. “Espero que, pelo menos, as alterações à lei do alojamento local contribuam para estancar a sangria de moradores”, conclui.
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