Tem uma empresa em crise? Estado já pode pagar advogado, defende o Constitucional
O país das startups tem cada vez mais empresas em crise: muitas já falidas, outras em insolvência. Todas elas impedidas de pedir apoio judiciário, mas só até maio passado.
A recusa de proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos e em dificuldades foi, recentemente, considerada inconstitucional. Mas porquê e o que significa isto na prática? Feito um acórdão judicial e polémicas geradas à parte, a Advocatus foi saber o que dizem os advogados dos grandes escritórios.
Só em 2018, e até agora, para 22.038 novas empresas constituídas em Portugal, 19.826 foram dissolvidas e 4.637 estão em processo de insolvência. Números que assustam empreendedores e alarmam a massa do tecido empresarial no que toca ao acesso à justiça em situações de crise. Isto porque, uma vez em tribunal, estas empresas não tinham direito a apoio judiciário. Ou seja, não lhes era permitido pedir a dispensa do pagamento de taxa de justiça ou pedir um advogado pago pelo Estado.
Mas recentemente, a 8 de maio, o cenário mudou quando o Tribunal Constitucional (TC) decretou que a lei que recusava proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos era, afinal, inconstitucional. Em causa estavam alterações à Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais (LADT), na altura do governo de José Sócrates, que violavam a Constituição, na qual está estipulado que “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
O que muda?
Com o acórdão n.º 242/2018 fica então assente que as pessoas coletivas com fins lucrativos terão direito a advogado pago pelo Estado no acesso à justiça. Uma decisão que deixou de parte os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada.
“É muito bem-vindo este acórdão”, diz Alexandra Valpaços à Advocatus. “Com esta declaração de inconstitucionalidade, as pessoas coletivas com fins lucrativos deixaram de ficar totalmente impedidas de recorrer à justiça por razões económicas, permitindo-se, e bem, a avaliação casuística da necessidade de apoio judiciário”, realça a advogada do departamento de contencioso e arbitragem da Sérvulo.
De notar que na redação originária do número 3 do artigo 7.º da LADT as pessoas coletivas, com ou sem fins lucrativos, tinham efetivamente direito a apoio judiciário, se demonstrassem estar em situação de insuficiência económica. “Essa norma foi, contudo, substituída pela atual”, explica a advogada, “que vedava, de forma cega e absoluta, o acesso de pessoas coletivas com fins lucrativos aos tribunais, quando não tivessem condições para suportar os custos de um processo, e que violava, frontalmente, o direito e a garantia fundamentais de acesso aos tribunais, que a Constituição atribui e assegura a todos”.
As pessoas coletivas também têm o direito de fazer valer em juízo os seus direitos e interesses legítimos. Muitas são as situações em que uma empresa pode ter de recorrer aos tribunais para efetivar os seus direitos ou para deduzir a sua defesa.
Saliente-se ainda que as empresas, à semelhança das pessoas singulares, só têm agora direito à nomeação e pagamento da compensação de advogado pelo Estado, se demonstrarem estar em situação de insuficiência económica. “É, portanto, a falta de condições objetivas para suportar os custos de um processo que justifica a concessão de apoio judiciário”.
Segundo a Constituição, a falta de condições económicas não pode ser motivo para denegação de justiça. “Se retirássemos às empresas a possibilidade de acederem à justiça por razões económicas”, como fazia a norma declarada inconstitucional – introduzida no governo de Sócrates — “estaríamos, na verdade, a esvaziar o seu direito de acederem aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, apenas por não terem meios para pagar as despesas inerentes a uma ação judicial”.
Para Alexandra Valpaços “faz todo o sentido” existir a intervenção do Estado de modo a evitar esse esvaziamento, precedida de uma análise do caso concreto.
Já sobre se será justo equiparar o mesmo tipo de apoio judiciário a pessoas coletivas sem fins lucrativos como a pessoas individuais — uma das causas que à altura do acórdão levantou questões — a advogada diz que “as pessoas coletivas também têm o direito de fazer valer em juízo os seus direitos e interesses legítimos”.
“Muitas são as situações em que uma empresa pode ter de recorrer aos tribunais para efetivar os seus direitos ou para deduzir a sua defesa (por exemplo, para cobrar créditos sobre clientes ou para se defender da aplicação de uma multa). Quer uma sucessão de clientes maus pagadores, quer a necessidade de pagamento de uma multa avultada, podem colocar uma empresa numa situação económica que não lhe permita suportar os custos de um litígio em tribunal. Seria justo negar-lhe o acesso à justiça? Entendo que não seria”, conclui.
Quanto ao universo abrangido por esta lei, David Sequeira Dinis, sócio da Uría Menéndez-Proença de Carvalho, realça ainda que “no caso das pessoas coletivas, maioritariamente as sociedades comerciais – há que frisar que dentro do seu universo encontra-se uma amálgama heterogénea de entidades e de círculos de interesses. Veja-se que tanto se inclui nesse universo uma empresa cotada no PSI 20, como a sociedade por quotas unipessoal do café do bairro”.
Em relação a futuros casos de crise, o advogado diz que esta é uma evolução, mas que a vir sozinha não basta. “A declaração de inconstitucionalidade parece apenas abrir uma porta, sem definir o caminho. Isto é, da mesma forma que a diversidade do espetro de pessoas coletivas com fins lucrativos impõe que não se limite, à partida, o apoio do Estado no acesso à justiça, também se verifica que será necessária regulamentação adicional e específica para essas entidades”.
Veja-se que tanto se inclui no universo das pessoas coletivas com fins lucrativos uma empresa cotada no PSI 20, como a sociedade por quotas unipessoal do café do bairro.
Mas como? “Tal regulamentação poderá não ser feita através da extensão do regime de proteção jurídica aplicável às pessoas físicas, mas antes mediante a criação de mecanismo legal próprio”, defende o sócio, “o qual poderá deferir competência a entidade diversa da Segurança Social para as decisões de atribuição de proteção a pessoas coletivas”.
Em qualquer caso, defende, este regime deverá evitar quaisquer práticas ilícitas fraudulentas ou de má gestão empresarial, “para que a tónica seja colocada na proteção das pessoas físicas, ainda que enquadradas nos círculos de interesses de pessoas coletivas com fins lucrativos”, remata.
Como é feita a escolha do advogado pago pelo Estado?
Relativamente ao novo acórdão, o processo de seleção de advogado pago pelo Estado para as pessoas coletivas com fins lucrativos ainda não foi analisado. Porém, se o procedimento de seleção for semelhante ao já existente para pessoas singulares, os advogados serão nomeados pela Ordem a partir de uma lista de profissionais inscritos no Sistema de Acesso ao Direito.
A estes advogados nomeados para cada caso o Estado paga um valor por processo, mais as despesas com as deslocações e os atos praticados no processo, como por exemplo, recursos, e outras diligências.
Desde janeiro de 2012 que os honorários pelos serviços prestados pelos advogados só são válidos após a confirmação efetuada pela secretaria do tribunal ou serviço junto do qual correu o processo. Essa mesma confirmação está sujeita a um prazo, sendo que nos termos legais tem de ser feita quinzenalmente.
Antes disso bastava ao próprio advogado inserir a defesa oficiosa no sistema informático do acesso ao direito e o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça procedia ao pagamento. Atualmente, este organismo do Ministério da Justiça tem de esperar pela confirmação.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Tem uma empresa em crise? Estado já pode pagar advogado, defende o Constitucional
{{ noCommentsLabel }}