• Reportagem por:
  • Marta Santos Silva

A discriminação pesa (e muito) no PIB. Como se parte o teto de vidro?

Modelos económicos comprovam que discriminar as mulheres é amputar o crescimento. Mas como se sai deste impasse? As quotas servem para alguma coisa? Como se parte, afinal, o teto de vidro?

Nem sempre é bem recebido falar da discriminação contra as mulheres — não só das diferenças salariais que ainda separam mulheres e homens igualmente qualificados e no mesmo cargo, mas também da discriminação sistémica que mantém a maioria dos cargos de poder na esfera pública e privada ocupados por homens.

Mas e se se pudesse comprovar cientificamente que a discriminação das mulheres tem um peso significativo no crescimento económico dos países? Num estudo publicado este ano, um investigador português já o fez. Agora o desafio é aumentar a igualdade. Vale a pena desmistificar o uso das quotas para aumentar a representação das mulheres, mas mais ainda enfrentar os problemas mais difíceis no caminho: as representações e valores desiguais que se conjugam para criar “o famoso teto de vidro”.

Descodificar a relação entre a discriminação e o PIB

Primeiro, vamos à ciência. Diz-se que os números não mentem, e o estudo co-assinado pelo economista português José Tavares, da Nova School of Business, com Tiago Cavalcanti da Universidade de Cambridge, traz alguns muito interessantes.

Entre as conclusões do estudo publicado este ano lê-se que em muitos países, por exemplo a Arábia Saudita e a Irlanda, a discriminação contra as mulheres sob a forma de desigualdade salarial é responsável pela totalidade da diferença em PIB per capita para com os Estados Unidos. Ou seja, os irlandeses e os sauditas podiam ser em média tão ricos quanto os norte-americanos se eliminassem a desigualdade entre homens e mulheres. No caso do Egito, por exemplo, a discriminação contra as mulheres explica 65% da diferença entre o PIB per capita egípcio e o dos EUA.

A nossa análise sugere que eliminar a desigualdade de género, por muito difícil que seja, teria um efeito positivo significativo no PIB, que seria difícil de igualar através de outra opção política.

Tiago Cavalcanti e José Tavares

The Output Cost of Gender Discrimination

No estudo publicado na revista científica The Economic Journal, Tavares e Cavalcanti explicam que a discriminação entre géneros através da desigualdade salarial entre candidatos igualmente qualificados a fazer o mesmo trabalho reduz o PIB per capita através de dois mecanismos, de importância semelhante, com o primeiro a ser um pouco mais significativo:

  1. Desencoraja a participação das mulheres no mercado de trabalho, o que reduz a produção de riqueza;
  2. Aumenta a fertilidade e, assim, a população, o que reduz o PIB per capita (que se calcula dividindo a riqueza total pelo número de habitantes).

Conclusão? Muitos países podem melhorar substancialmente o seu crescimento económico e utilizar melhor a sua força de trabalho desencorajando as barreiras de género no mercado de trabalho.

E não são os únicos a chegar a esta conclusão. Um estudo encomendado pelo estado francês que terminou este ano concluiu que a discriminação contra as mulheres e contra os descendentes de imigrantes causa grandes prejuízos à economia francesa. Reduzir essa discriminação — diminuindo os desfasamentos na taxa de emprego e no acesso aos postos de trabalho mais bem remunerados — permitiria que o PIB aumentasse em 6,9% ao longo de 20 anos, numa estimativa conservadora, com as mulheres a jogarem o maior papel nesse aumento.

Onde está Portugal na tabela da igualdade?

Para saber quanto temos a ganhar ao acabar com a discriminação, importa olhar para mais alguns números. Se a desigualdade entre homens e mulheres em Portugal fosse das mais pequenas do mundo, talvez não houvesse tanto incentivo económico para a combater. No entanto, embora seja considerado pela ONG Save The Children o oitavo melhor país para se crescer rapariga, Portugal ainda tem muito caminho para percorrer no campo da igualdade salarial.

Segundo o relatório do Fórum Económico Mundial sobre as desigualdades salariais entre homens e mulheres, Portugal está em 107.º lugar em 145 países, atrás da maior parte dos países europeus.

O Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho e Solidariedade Social divulgou que o salário médio das mulheres é inferior em 16,7% ao dos homens como se a 1 de novembro as mulheres deixassem de ser remuneradas pelo seu trabalho enquanto os homens receberiam até ao final do ano.

Acabar com a discriminação aumenta o PIB. E mais?

Diminuir ou eliminar as desigualdades entre homens e mulheres teriam impactos para lá do aumento do crescimento económico que José Tavares ajudou a demonstrar no seu estudo. Os benefícios de acabar com a discriminação das mulheres são múltiplos.

“Uma vez que os talentos, habilidades e capacidades se distribuem identicamente por homens e mulheres, limitar a participação das mulheres no trabalho, na produção e nas decisões políticas e económicas significa desperdiçar capacidade, imaginação, criatividade e competência“, explicou ao ECO Lina Coelho, investigadora da Universidade de Coimbra que pertence à Associação Portuguesa de Estudos sobre Mulheres. O impacto na economia torna-se claro: “menor produtividade, menor inventividade e inovação, e portanto menor crescimento económico e bem-estar”.

Helena Rodrigues, CEO do Allby Group e chair da Women’s President’s Organization em Portugal, acredita que além das vantagens para o crescimento económico e para o equilíbrio social, o empoderamento das mulheres também pode ser vantajoso para as empresas.

Helena Rodrigues, CEO do Allby Group.
Helena Rodrigues, CEO do Allby Group.DR

“Considero que em alguns casos a liderança das mulheres se destaca e diferencia substancialmente da dos homens”, afirma. “Só depois de verificarmos o resultado de uma gestão no feminino é que poderemos tirar conclusões. Mas, por norma, as mulheres são mais criativas, flexíveis, organizadas, com maior inteligência emocional e essas são características necessárias à gestão das novas empresas de futuro.”

Lina Coelho concorda, e acrescenta: “A insuficiente participação das mulheres nas decisões implica que a sua experiência específica enquanto mulheres, mães e trabalhadoras não está presente”, afirma, referindo-se não só à política mas também às empresas, onde a falta de mulheres em posições de liderança “limita um conhecimento adequado dos mercados e do contexto sociocultural em que elas operam”.

Mas ainda há grandes obstáculos no caminho para acabar com a discriminação — é preciso não só resolver a desigualdade salarial, mas também encontrar estratégias para contornar (ou partir) aquilo a que se chama o teto de vidro, a que mesmo Hillary Clinton se referiu no discurso em que assumiu a derrota na contenda de se tornar a primeira presidente mulher dos Estados Unidos.

O que impede as mulheres de subir ao topo da escada?

Porque é que há menos mulheres em lugares de liderança na política, no mundo empresarial ou na academia? Ainda se ouve por vezes o argumento de que simplesmente há menos mulheres altamente qualificadas para ocuparem esses postos. Mas a razão é outra — muito mais complicada de resolver.

“Há mais de 30 anos que as mulheres têm sistematicamente conseguido melhores resultados académicos do que os homens, nomeadamente no Ensino Superior”, explicita Lina Coelho, acrescentando que Portugal é também um dos países com mais elevadas taxas de emprego feminino.

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José Tavares, coautor do estudo sobre o impacto da discriminação no PIB, defende o mesmo. “Se há algum movimento neste momento, é estarmos a avançar para uma sociedade em que as mulheres são mais qualificadas que os homens”. A razão para o desfasamento é outra. “As distribuição de posições políticas e empresariais tem a ver com qualificações mas também com distorções da concorrência e interesses de grupo, explícitos ou implícitos. E é nestas duas últimas dimensões, a promoção da concorrência e da igualdade de oportunidade, que as sociedades precisam de avançar mais”.

A sociedade portuguesa combina um conjunto de valores, práticas e representações sociais que explicam a forte sub-representação das mulheres nos lugares de liderança de topo nos mais variados domínios da vida económica e social. É o famoso “teto de vidro”.

Lina Coelho

Universidade de Coimbra

Lina Coelho destaca a importância das “representações sociais sobre os papéis de género”, que colocam a mulher no papel de cuidadora dos filhos e dos dependentes. “Para muitas mulheres, impõe-se escolher entre fazer uma carreira progressiva, nomeadamente conducente a lugares de liderança, e ter filhos”, afirma.

Há mais fatores que a investigadora escolhe destacar: as redes de sociabilidade masculina (“no clube desportivo, na associação recreativa, nas ‘patuscadas’ e jantaradas”) que acabam por marginalizar as mulheres por não disporem de espaços de cumplicidade semelhantes nem do mesmo tempo livre — trabalham mais horas por participarem muito mais nas tarefas familiares.

“A sociedade portuguesa combina um conjunto de valores, práticas e representações sociais que explicam a forte sub-representação das mulheres nos lugares de liderança de topo nos mais variados domínios da vida económica e social”, conclui. “É o famoso ‘teto de vidro’“.

As quotas podem ajudar a pôr lá os melhores

Um mecanismo muito criticado por ajudar as mulheres a obter certos cargos “apenas por serem mulheres”, na verdade as quotas políticas podem ajudar a aumentar a qualidade geral dos eleitos. Foi a conclusão de um outro estudo realizado por José Tavares da Nova Business School, desta feita com Paulo Júlio do Banco de Portugal.

O estudo publicado em 2010 na revista do Center for Economic Policy Research demonstrou que, dependendo de como são aplicadas e do contexto político que as rodeia, as quotas podem ter um impacto negativo, neutro ou positivo na qualidade do corpo de deputados eleito por um sistema. O mais importante é que, na criação da quota, se encoraje a participação dos membros mais qualificados do grupo menos representado (neste caso, as mulheres) sem se desencorajar a dos homens mais qualificados. Se essas condições existirem, a introdução de quotas leva a um corpo político mais qualificado do que sem elas.

Não gosto particularmente de quotas ou da definição de percentagens de mulheres na ocupação de cargos de decisão. Mas temos de começar por algum lado.

Helena Rodrigues

CEO do Allby Group

O que é preciso fazer então para o efeito se verificar? José Tavares explicou ao ECO que construir um sistema político mais justo e mais transparente vai ajudar a escolher os mais qualificados — homens e mulheres. “Uma maior transparência e responsabilização dos políticos e da atividade política levará a que os mais competentes e mais representativos ganhem posição, independentemente do género ou da etnia”, disse o investigador.

Lina Coelho sublinha a eficácia das quotas como um mecanismo de ponto de partida “para acelerar o processo de mudança” — afinal, diz, “veja-se como a composição do atual Parlamento conseguiu finalmente assegurar os 33% de mulheres previsto na Lei desde 2006!”

Nas empresas, Helena Rodrigues também coloca a hipótese das quotas, embora não lhe agradem muito. “Não gosto particularmente de quotas ou da definição de percentagens de mulheres na ocupação de cargos de decisão. Mas temos de começar por algum lado”, diz. Mas nas empresas, a história é um pouco diferente. A lei anunciada pelo ministro Adjunto Eduardo Cabrita para a paridade das entidades públicas, através do Facebook, não parece a Helena Rodrigues fazer muito sentido.

“No tecido empresarial português, o tema das quotas não se coloca”, afirma Helena Rodrigues. “São poucas as empresas cotadas em bolsa”.

Como partimos então o teto de vidro?

As quotas são um início, mas não chegam nem funcionam isoladamente. “A superação da discriminação de género na liderança (e no mundo do trabalho, em geral) passa por um conjunto integrado de medidas nos mais variados domínios da vida social e laboral”, afirma Lina Coelho.

No campo empresarial, Helena Rodrigues vê a possibilidade da introdução de políticas públicas, com a ressalva de que “por maior que seja a intervenção estatal, são as sociedades que se reestruturam”. Para incentivar a participação das mulheres em posições de liderança nas empresas é preciso, por exemplo, “promover condições especiais de financiamento”, visto que “uma empresa gerida por mulheres tem menos acesso ao crédito do que outras geridas por homens, pelo menos até há pouco tempo”.

mulheres feminismo empresas igualdade de género

Mas nada mudará profundamente enquanto não se enfrentarem profundos problemas estruturais com estratégias minimizadoras, algumas das quais Lina Coelho enumerou ao ECO:

  • Garantir educação para a cidadania e igualdade
  • Assegurar serviços de apoio à família (creches, lares de terceira idade, etc.) com qualidade e a preços acessíveis e com horários adequados e flexíveis
  • Assegurar redes de transportes integradas e flexíveis que reduzam o tempo de deslocações casa-trabalho-escola das famílias

“Em suma, é necessário que as políticas públicas assegurem aquilo a que se chama ‘mainstreaming de género’, ou seja, que em todas as medidas de política sejam avaliadas as implicações da medida em termos da (des)igualdade de género (onde a conciliação entre trabalho e vida familiar é um aspeto muito relevante) e sejam redesenhadas as medidas que se revelem fomentadoras ou sustentadoras de desigualdade”, resume a investigadora.

Há poucas semanas, o Fórum Económico Mundial anunciou que, se não forem tomadas medidas em contrário, só haverá igualdade de géneros em 2186. As mulheres não podem esperar tanto tempo, e à economia portuguesa também dava jeito o empurrão.

  • Marta Santos Silva
  • Redatora

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