Será a greve dos juízes constitucional?

Depois de os juízes arrancarem hoje para uma greve de 21 dias, até 2019, depois de 13 anos sem protestos, o debate surge novamente: será que os juízes têm, realmente, o direito à greve?

Depois de os juízes arrancarem hoje com uma greve que se prolonga por 21 dias, distribuídos até outubro de 2019, ressurge o debate habitual em torno desta questão: terão, afinal, os juízes direito à greve ou não? Será constitucional ou inconstitucional, atendendo ao facto de os magistrados serem titulares de órgãos de soberania?

Na última greve dos magistrados judiciais, há mais de dez anos, em outubro de 2005, o Conselho Superior de Magistratura (CSM) — o órgão que tutela a classe — considerou o protesto lícito, apesar de lamentar o “ambiente de crispação” no sistema judicial, argumentando que os magistrados judiciais têm uma “dupla condição de titulares de órgãos de soberania e de profissionais de carreira que não dispõem de competência para definir as condições em que exercem as suas funções”.

O CSM ainda não se manifestou quanto à atual paralisação, tendo reunião marcada para o próximo dia 4 de dezembro. Contudo, ao ECO, o vice-presidente Mário Belo Morgado defendeu que “a greve é um direito legal e constitucionalmente consagrado, que tem que ser respeitado numa sociedade democrática. Quero crer que todas as partes envolvidas nesta questão estarão à altura das suas responsabilidades institucionais e que será encontrada uma solução equilibrada e razoável”, defendeu.

A resposta à pergunta, porém, não é unânime porque a doutrina diverge. Entre os constitucionalistas, há os que se posicionam contra a licitude do direito à greve por parte da classe, sendo que o argumento principal assenta no facto de os juízes não serem funcionários do Estado e por pertencerem aos tribunais — um órgão de soberania.

Nesta linha de pensamento encontramos Jorge Miranda, professor catedrático de Direito na Universidade de Lisboa e na Universidade Católica Portuguesa, que é um dos mais conhecidos constitucionalistas que defende que a classe não tem direito a esta forma de protesto. Num artigo de opinião publicado no jornal Público, a 9 de junho de 2017, o constitucionalista alerta que a ameaça de greve dos juízes seria ir contra a Constituição da República Portuguesa.

“Os juízes não são empregados do Estado”, argumenta Jorge Miranda, referindo que “são — como o Presidente da República, os deputados e os ministros — o Estado a agir”. Citando artigos da Constituição para aferir o estatuto dos magistrados, Jorge Miranda considera que “um estatuto como este implica, em contrapartida, quer deveres quer restrições de alguns direitos”.

“Muito em especial, um direito à greve dos juízes, fosse qual fosse o motivo invocado para o exercer, contenderia com a ligação estrutural incindível dos magistrados aos tribunais e ao Estado”, escreve Jorge Miranda, dizendo que “seria um conflito entre poderes do Estado”. Como causa última, uma greve dos juízes iria “deslegitimar os juízes perante a comunidade”, defende.

Escusado deveria ser lembrar que os juízes não são trabalhadores subordinados. Não se acham em qualquer situação aproximável da dos trabalhadores das empresas privadas ou da Administração Pública. Investidos na titularidade de órgãos de soberania, encontram-se perante o Estado numa relação de identificação. Não são empregados do Estado. Eles são — como o Presidente da República, os deputados e os ministros — o Estado a agir.

Jorge Miranda

Constitucionalista. Professor catedrático de Direito

Jorge Miranda recorre aos casos dos militares e agentes das forças de segurança “a quem foi recusado, de forma terminante, o direito à greve”. “Ainda que os juízes pudessem ser configurados também como trabalhadores do Estado, nem daí fluiria, como corolário forçoso, que pudessem pretender ter o direito à greve; nem se compreenderia que os agentes das forças de segurança, que executam as decisões dos juízes, não gozassem de direito à greve e dele gozassem os juízes”, argumenta.

Também Pedro Bacelar de Vasconcelos, presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e deputado do PS, se mostra contra a greve dos juízes numa opinião publicada no Jornal de Notícias, manifestada a oito de novembro deste ano, logo depois de a greve ter sido anunciada pela Associação Sindical de Juízes Portugueses.

“O estatuto remuneratório dos magistrados judiciais está sujeito a um limite lógico que impõe como teto salarial a remuneração legalmente prevista para o cargo de primeiro-ministro”, começa por dizer.

No seu entender, é “perfeitamente normal” um sindicato anunciar um protesto, mas “ao convocar uma greve que se prolonga para além das eleições europeias, até à data previsível da realização das eleições legislativas, a associação sindical não se limita à tentativa, em si mesma legítima, de pressionar o legislador com o fito de obter benefícios remuneratórios”.

Ainda que não seja uma opinião consensual, muitos constitucionalistas consideram – e quanto a mim, muito bem! – que não faz sentido que os magistrados judiciais tenham direito à greve justamente pela mesma razão e com fundamentos análogos aos que rejeitam o direito à greve do primeiro-ministro e de todos os membros do Governo, bem como do presidente da República e dos deputados.

Pedro Bacelar de Vasconcelos

Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Deputado do PS

“Este efeito perverso não fica dependente sequer do êxito ou do fracasso das reivindicações que prossegue”, defende.

O jurista argumenta que qualquer que seja o resultado deste protesto, esta greve “ficará inscrita como uma perturbação deliberada do normal funcionamento das instituições democráticas e um desafio ao princípio constitucional da separação dos poderes. E, lamentavelmente, ninguém espera que contribua para o prestígio dos tribunais cuja autoridade e independência, hoje mais do que nunca, importa defender e reforçar”, conclui.

Por outro lado, existem magistrados como o procurador-geral-adjunto António Cluny, representante de Portugal na Eurojust – Unidade Europeia de Cooperação Judiciária e ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que defende que embora os juízes não tenham direito à greve, “na Alemanha, França, Itália e Espanha, os juízes sempre encontraram formas – que em tudo se assemelham a greves – de interromper, como protesto, as atividades dos tribunais”.

[Na Alemanha] onde juízes e procuradores podem até estar filiados em partidos e sindicatos (mesmo nacionais e verticais, como o dos serviços) e exercer publicamente neles a sua militância, os magistrados, convocando plenários nacionais e regionais ou manifestando-se na rua, no horário de funcionamento dos tribunais, concretizaram já, também, formas de protesto que implicaram a suspensão de atividades judiciais e que, mesmo sem formalmente o serem, constituíram, na prática, formas de greve.

António Cluny

Procurador-geral-adjunto

Numa opinião no jornal i, António Cluny acaba a questionar qual a melhor maneira de prever estes protestos num Estado de direito. “Reconhecendo aos juízes o direito à greve, enquanto profissionais integrados numa carreira pública; ou levá-los a que, no âmbito da sua função de titulares de órgão de soberania e de acordo com a autonomia que lhes é inerente, criem crises institucionais”, conclui.

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