Prova dos 9: “Ninguém nos obriga a este défice”, como diz Manuela Ferreira Leite?

Manuela Ferreira Leite diz que ninguém obriga Portugal a ter o défice que tem e que não são necessários excedentes orçamentais. Mas será mesmo assim?

Manuela Ferreira Leite, antiga líder do PSD e ministra das Finanças do Governo liderado por Durão Barroso entre 2002 e 2004, atacou no programa “Pares da República”, da TSF, a política orçamental seguida pelo atual Governo e por Mário Centeno, dizendo que ninguém “obriga” Portugal a ter o défice que tem, e que o país não precisa de estar à procura de excedentes.

A antiga ministra das Finanças disse que o défice tem um preço, a carga fiscal existente e a degradação dos serviços públicos, e que não é possível baixar impostos, melhorar os serviços e o défice ficar na mesma.

Mas será que ninguém obriga Portugal a este nível de défice?

A afirmação

“Este défice é absolutamente suicida em relação ao país, não tenho nenhuma dúvida em afirmar isto. Ninguém nos obriga a este défice, e ele tem um preço: este nível de carga fiscal e esta degradação dos serviços. Não é possível, evidentemente, é baixar os impostos, melhorar os serviços e o défice ficar na mesma. A política devia ser deixar crescer o défice, não para os 3%, mas também não para estarmos à procura de superávites. Isso é a verdadeira loucura”.

Os factos

O défice orçamental em 2018 ficou abaixo de 0,5%, mais um recorde na história da democracia portuguesa (um de vários do atual Governo neste matéria). Tal como aconteceu em anos anteriores, o défice no final do ano ficou muito aquém daquilo que estava previsto no Orçamento do Estado entregue na Assembleia da República, um resultado que o ministro das Finanças explica com um misto de mais receitas fiscais e contributivas que resultam do crescimento da economia e uma redução dos juros sobre a dívida pública portuguesa.

Só em 2018, o défice ficou abaixo do previsto inicialmente em mais de mil milhões de euros. No total, entre 2016 e 2018, o défice caiu quase mais 3.000 milhões de euros do que estava inicialmente previsto, com o Governo a dar as mesmas justificações. Relativamente aos resultados de 2018, Mário Centeno disse mesmo que a despesa prevista foi toda executada.

Como Mário Centeno sentiu na pele logo em 2016 quando fez o seu primeiro Orçamento, Portugal está sujeito a várias regras orçamentais. Uma delas é que o défice tem de ficar abaixo dos 3% do PIB. Outra, que coloca mais restrições é que Portugal tem de reduzir o seu défice estrutural (excluindo medidas temporárias e o efeito do ciclo económico) até atingir o Objetivo de Médio Prazo, que já foi de um excedente estrutural e a partir de 2020 passa a ser o equilíbrio.

Anualmente, até atingir esse Objetivo de Médio Prazo, o Conselho da União Europeia estabelece um valor mínimo de redução do défice estrutural que o Orçamento tem de ter anualmente, caso contrário pode ser chumbado em Bruxelas e exigidas correções ao Governo, que teria então de submeter uma nova versão.

Além destas duas regras, há outras que o Orçamento português tem de cumprir. Outra, que será mais pronunciada a partir do próximo ano, é a da redução da dívida pública. Quando um país tem uma dívida pública superior a 60% do PIB tem de reduzir esse excedente a um mínimo de um vigésimo por ano até atingir os 60% inscritos no Pacto de Estabilidade e Crescimento. Há também uma regra que limita o crescimento da despesa, mais complexa e que Portugal tem violado sucessivamente, mas que por si só dificilmente leva a Comissão Europeia a fazer mais do que um alerta.

Há várias regras, mais desde que os tratados foram reformulados para responder à crise financeira, mas a aplicação de sanções ou a obrigação de tomar mais medidas depende de vários fatores. Por exemplo, quando o Conselho da União Europeia diz que Portugal tem de reduzir o seu défice estrutural em pelo menos 0,6% do PIB, a margem de interpretação em Bruxelas é que o Orçamento só pode ser chumbado se a distância entre a redução prevista e a meta for superior a 0,5%. E mesmo aí, há uma negociação com as autoridades europeias e uma margem de interpretação política dos comissários para decidir se faz sentido avançar com mais ações.

Em 2016, a Comissão Europeia exigiu mais medidas para que o défice inscrito no Orçamento fosse mais baixo — e o Governo cedeu, criando entre outros o adicional ao imposto sobre os combustíveis –, e mais tarde, por altura do Carnaval, o Eurogrupo exigiu mais medidas e um plano B, que acabou por ser o não descongelamento de verbas que estavam cativadas num valor que ficou perto de mil milhões de euros.

Desde então, com maior confiança da Comissão Europeia, mesmo sem as metas de redução do saldo estrutural serem iguais ao estipulado pelo Conselho da UE, a Comissão fez avisos a Portugal, mas não puniu Portugal e deu a Mário Centeno maior margem de manobra.

Mas mesmo que o défice nominal esteja abaixo dos 3% do PIB estabelecidos no PEC, e exista margem de manobra no saldo estrutural, Portugal continua a ter de reduzir o nível de dívida pública em função do PIB, algo que exige crescimento económico e controlo orçamental.

Prova dos 9

Há várias regras europeias que obrigam Portugal a ter um controlo apertado sobre o défice orçamental, especialmente a regra da dívida pública — que a Comissão Europeia usou pela primeira vez esta quinta-feira para abrir um Procedimento dos Défices Excessivos contra Itália.

Se Manuela Ferreira Leite fala especificamente do valor do défice atingido em 2018, pode ter alguma razão no sentido em que haveria margem de manobra, no Parlamento e em Bruxelas, para que o défice fosse mais elevado sem ser alvo de sanções, mas não muito.

Quanto a Portugal não precisar de excedentes orçamentais, muito depende do crescimento da economia. Em termos estruturais, o défice não pode agravar-se sob risco de haver motivo para Bruxelas chumbar o Orçamento ou exigir mais medidas. Se Portugal quiser investir ou fazer reformas estruturais, também pode invocar as cláusulas de flexibilidade junto da Comissão Europeia que lhe permitem agravar o défice estrutural, mas a margem de manobra é pequena.

No final, Portugal vai ter sempre de reduzir a dívida pública em relação ao PIB ao ritmo de um vigésimo por ano. Regras há e são várias, e são obrigações que Portugal tem de cumprir — até porque estes estão inscritos na lei portuguesa –, mas há margem de manobra (que depende de muitos fatores).

 

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