Juros negativos travam emissão de obrigações do Tesouro para as famílias
Com os juros da dívida portuguesa abaixo de 0% até aos sete anos, maturidade das emissões de OTRV, IGCP poderá não avançar com a operação. Certificados vão tapar "buraco" de mil milhões de euros.
A emissão de Obrigações do Tesouro de Rendimento Variável (OTRV), o mais recente produto de poupança do Estado para as famílias, continua nos planos da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP), mas será muito difícil que veja a luz do dia este ano. Com os juros da dívida portuguesa abaixo de zero, Cristina Casalinho não tem como atrair pequenos investidores para estes títulos que, além do mais, obrigam ao pagamento de comissões.
“Uma nova OTRV está prevista no programa de financiamento de 2019”, diz o IGCP em resposta às questões colocadas pelo ECO. E, de facto, na apresentação aos investidores que regularmente é disponibilizada no site da agência responsável pela gestão da dívida nacional continua a aparecer esta emissão, no valor de mil milhões de euros, como “a executar”. Contudo, “neste momento não existe nenhuma data prevista para a sua concretização”, nota o IGCP.
Cristina Casalinho não deixa, com estas respostas, cair a operação, mas o ECO sabe que o IGCP está preparado para não avançar com a operação este ano tendo em conta os mínimos históricos que estão a ser atingidos pelos juros da dívida nacional nos mercados internacionais. A taxa a dez anos está em níveis nunca antes observados, em torno de 0,20%, mas toda a dívida até aos sete anos de maturidade está com sinal de menos. “Tem-se assistido a um crescente número de prazos a transacionar a taxas negativas”, diz o IGCP.
"Neste momento não existe nenhuma data prevista para a sua concretização.”
As OTRV foram criadas para oferecer aos pequenos investidores uma forma de investirem diretamente nas obrigações do Tesouro, com as vantagens e desvantagens que tal oferece. Se nos últimos anos permitiu ter acesso a taxas atrativas, à luz das alternativas do próprio Estado, com o contexto de taxas negativas o interesse destes investidores desaparece. Em julho de 2018 — altura em que se realizou a única emissão de OTRV do ano passado–, a taxa a sete anos estava em 1,3% no mercado, tendo o IGCP oferecido 1% aos aforradores nas OTRV. Agora, a yield dos títulos com a mesma maturidade está em -0,05%.
Quem investe nas OTRV conta com uma taxa mínima a que é adicionada a Euribor a seis meses, mas também esta está em “terreno” negativo, o que não ajuda à operação. E mesmo que as taxas de mercado estivessem ligeiramente acima de 0%, como acontece com a de 10 anos, seria, mesmo assim, difícil para os pequenos investidores obterem retorno com estas obrigações tendo em conta as comissões cobradas pelos bancos onde é feita a subscrição.
Verão “já foi”. E o Natal? No meio há o BCE
Este contexto de juros negativos compromete a realização da emissão, mas oficialmente ainda não está descartada. No entanto, Cristina Casalinho está a deixar passar as “janelas de oportunidade” para a realização de uma emissão de dívida num valor ainda assim avultado, tendo em conta que procura captar poupanças das famílias e não dinheiro de investidores institucionais. Não fez nenhuma emissão na Páscoa e o verão “já foi”.
Quando foram criadas, em 2016, o IGCP fez três operações logo nesse ano, repetindo a dose no ano seguinte, mas em 2018 já só lançou uma nova OTRV, estreando a maturidade de sete anos. Se nos dois primeiros anos lançou as OTRV em março/abril, seguida de outra em julho, no ano passado apontou apenas para o mês antes das férias da generalidade dos portugueses. A emissão aconteceu nas primeiras semanas de julho, aproveitando tanto os subsídios de férias das famílias como as poupanças dos emigrantes.
Esta “janela de oportunidade” já passou, ficando a sobrar apenas uma, mais para novembro, início de dezembro, período a que o IGCP recorreu tanto em 2016 como em 2017, procurando financiar a dívida pública com parte dos subsídios de Natal dos portugueses. No entanto, se o contexto atual já não é propício à emissão, quanto mais perto do final do ano pior será, uma vez que a tendência de queda dos juros da dívida está para durar, podendo ser reforçada em breve.
Mario Draghi, que tem patrocinado a queda dos juros da dívida soberana por toda a Zona Euro, não alterou nada à política monetária que tem seguido, mas abriu a porta a novos estímulos à economia do euro após o verão, incluindo uma nova descida dos juros que estão já em mínimos históricos. O novo tiro da bazuca do Banco Central Europeu (BCE) está já a fazer-se sentir nos mercados, sendo que quando for efetivamente disparado acabará por afundar ainda mais taxas já abaixo de 0%.
Certificados pagam “buraco” das OTRV. Já captaram 560 milhões
Caso o IGCP não avance mesmo com esta emissão de OTRV, será a primeira vez desde a sua criação que as deixará de fora do leque de instrumentos de financiamento. E criará um “buraco” de mil milhões de euros no financiamento nacional, mas que não será, de todo, problemático. Primeiro porque são mil milhões de euros, segundo porque nos restantes produtos de poupança do Estado os resultados estão a ser bem melhores do que o antecipado.
O Governo entrou em 2019 a assumir uma saída líquida de mil milhões de euros dos certificados em resultado do fim do prazo dos primeiros Certificados do Tesouro Poupança Mais (CTPM), que tinham um prazo de cinco anos. A perspetiva era de que todo o dinheiro que entrou nestes CTPM e que agora está a ser reembolsado acabasse por ser redirecionado para investimentos alternativos, ainda que parte fosse reinvestido em certificados de aforro ou CTPC.
Em vez de sair dinheiro, a realidade é que está a entrar. Até junho, meio do ano, os certificados tinham captado um total de 500 milhões de euros, mas no mês passado entrou ainda mais dinheiro. O ECO sabe que o saldo no ano acentuou-se em julho — podendo facilmente chegar aos mil milhões que se pretendiam com as OTRV. “O saldo de subscrições líquidas confirma o interesse das famílias portuguesas em produtos de poupança do Tesouro, manifestado no valor subscrito”, diz o IGCP, reconhecendo que a estimativa da taxa de reinvestimento “revelou-se conservadora”.
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