Ir às compras é uma experiência virtual na nova loja do Pingo Doce em Carcavelos. Não há caixas registadoras e paga-se com uma app. Mas centenas de câmaras recolhem dados para construir o futuro.
A nova loja do Pingo Doce em Carcavelos parece um minimercado comum. Tem diversos produtos nas prateleiras, arcas com comida pré-preparada e uma zona com vários tipos de fruta. Num dos lados até há uma padaria. Só um olhar mais atento revela que este estabelecimento está longe de ser normal. Onde estão as caixas registadoras?
Isso mesmo. No novo Pingo Doce, instalado no campus universitário da Nova SBE e inaugurado esta quinta-feira, caixas não as há. Trata-se de um conceito de loja inovador que chega agora a Portugal. Se visitar este minimercado, aberto a todo o público, o melhor é deixar os trocos em casa. Moedas e notas, aqui, até entram. Só que nunca ficam.
Pagar as compras, aqui, faz-se com uma app. Aliás, tem de a instalar no telemóvel se quiser entrar, ou dará de caras com uma cancela fechada. Para a abrir, basta mostrar o código QR da aplicação no leitor, à entrada. Se tudo estiver a funcionar, o canal abre e pode passar. A partir deste momento, já no interior da loja, pode começar a fazer as suas compras.
Ao ver um artigo que lhe interessa, tem duas hipóteses. Pode usar a câmara do telemóvel para ler o código de barras que está no produto ou na etiqueta da prateleira. Se tiver um telemóvel Android com a tecnologia NFC, basta ir encostando o smartphone a essas etiquetas eletrónicas dispostas nas estantes. À medida que vai repetindo o processo, a aplicação vai criando uma espécie de “cesto virtual”, com os produtos que tiver no cesto real.
Quando tiver escolhido tudo, há duas formas de pagar. E nenhuma inclui moedas ou notas. Se tiver um cartão de pagamentos associado à aplicação da loja — chamada Pingo Doce & Go Nova e disponível para iOS e Android –, basta fazer o check out na app e o valor é debitado da sua conta bancária. Caso não tenha indicado um meio de pagamento na app, pode usar uma das duas torres de pagamento self-service que existem num dos cantos da loja. Basta mostrar à máquina o código QR na aplicação, ou encostar o smartphone caso tenha NFC. Feito isto, o “cesto virtual” é apresentado no ecrã e pode finalizar a compra fazendo o pagamento num terminal Multibanco.
Só depois de feito o check out, com o devido pagamento, é que a aplicação lhe fornece o código QR que permite abrir a cancela para sair.
Sorria, está a ser filmado. E filmado. E filmado…
Se esta história lhe parece familiar, é porque é mesmo. O Pingo Doce & Go é uma aproximação distante do conceito das lojas físicas Amazon Go, lançado pela gigante norte-americana em alguns mercados no ano passado. É sabido que a Amazon é um concorrente temível no retalho. E a Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce, não quer ficar para trás.
Há uma diferença substancial entre o novo conceito do Pingo Doce e a Amazon Go. Nas lojas da Amazon, os clientes só têm de entrar no espaço, tirar os produtos das prateleiras e sair. O pagamento é processado automaticamente graças a uma complexa e extensa rede de câmaras inteligentes, que acompanham cada passo dado na loja. As câmaras detetam que produtos foram tirados das estantes, que produtos voltaram a ser postos na prateleira e quem o está a fazer. À saída, o débito é feito de forma automática.
O Pingo Doce não esconde a ambição de vir a ter uma loja tão tecnológica como a da Amazon. Na inauguração, os responsáveis da Jerónimo Martins até mencionaram várias vezes o nome da concorrente. É por isso que, no Pingo Doce & Go, não existem ângulos mortos: cada passo que dê nesta loja de 250 m2 é filmado, gravado, processado e interpretado por uma rede de “mais de 100 câmaras” inteligentes, explicou André Ribeiro de Faria, chief marketing and consumer office do grupo liderado por Pedro Soares dos Santos.
São estas câmaras que a empresa espera virem a possibilitar ao Pingo Doce ter uma loja mais próxima à da Amazon Go. Por isso, apesar de ainda não servirem totalmente o propósito, a rede encontra-se já hoje a sugar dados do comportamento dos clientes a cada segundo. O objetivo é “treinar” um algoritmo que, numa outra fase, deverá permitir uma experiência com ainda menos fricção. “Queremos, em conjunto com o nosso público, treinar os nossos sistemas”, justificou ao ECO o responsável da marca.
Fica o aviso: entrar no Pingo Doce & Go é também uma experiência orwelliana. Um autêntico big brother. Não são só as muitas câmaras visíveis e dispostas em calhas por cima das nossas cabeças. São também as muitas outras câmaras discretamente posicionadas nas abas das prateleiras e as dezenas de sinais que lembram aos mais distraídos: Smile, you are on camera (ou o cliché em português: “Sorri, estás a ser filmado”).
As câmaras também servem outra função. Com recurso a inteligência artificial, a empresa é capaz de detetar potenciais situações de furto ou fraude. Face às questões éticas que têm sido levantadas mundialmente perante os sistemas desta natureza, por poderem dar origem a situações de discriminação, André Ribeiro de Faria apressou-se a esclarecer que a sinalização de potenciais fraudes, por parte do sistema, não se baseia apenas em “elementos visuais”, mas também em comportamentos que o utilizador pode ter na própria aplicação. Mesmo assim, os critérios usados pela empresa não são claros.
Uma oferta a pensar nos mais jovens
A tecnologia tem acelerado cada vez mais as nossas vidas. E sobra pouco tempo para comprar a mercearia. Ou até para cozinhar. Por isso, e por estar num meio académico e tecnológico, a Jerónimo Martins não teve dúvidas de que a oferta de produtos nesta loja tinha de pensar nos mais jovens. Ponto final.
“A oferta foi feita a pensar nas necessidades do público específico e jovem. Quisemos criar uma experiência de compra muito diferente, que acrescentasse diferença à comunidade académica”, disse a diretora-geral do Pingo Doce, Isabel Ferreira Pinto, numa sessão de apresentação do conceito, na Nova SBE.
Por exemplo, no Pingo Doce & Go, a língua dominante nas prateleiras é o inglês. A fruta é vendida à unidade. Há um conjunto muito alargado de pizas. Tem grande variedade de refeições já cozinhadas, frias e quentes, em doses individuais. Também há produtos de higiene pessoal e uma bancada onde pode fazer a sua própria salada. Uma versatilidade maior para quem quer uma experiência mais rápida e flexível, ao invés de demorada e em maior volume de compras, como num estabelecimento tradicional. O que também deverá resultar em visitas mais frequentes à loja e numa quantidade maior de dados recolhidos para “treinar” o sistema.
Aqui também se vendem bebidas alcoólicas, mais concretamente cervejas e cidras (as bebidas brancas e de elevado teor alcoólico não são permitidas no campus da Nova SBE). No entanto, a empresa está confiante de que não vão existir vendas de bebidas a quem não tenha idade para as adquirir, uma vez que o processo de compras é controlado e há sempre uma equipa de seguranças atentos no local.
Pessoas na loja, há?
Sim, há. A loja tecnológica do Pingo Doce também tem uma vertente humana. A equipa total tem cerca de 20 trabalhadores, que não estão todos escalados em simultâneo. Apenas os suficientes para garantirem que tudo está a correr bem e que não faltam produtos nas prateleiras. Também há pessoal na padaria, para que haja sempre pão quente, a fumegar.
Com todos estes fatores, a Jerónimo Martins pretende passar a mensagem de que esta nova loja é muito diferente — e bem mais inovadora — do que as tecnologias de self-service da concorrência, como é o caso da aplicação do Continente (Sonae), que permite validar compras com scan dos códigos de barras, e dos validadores do Auchan (ex-Jumbo), que permitem um pagamento mais rápido e eficiente.
Só o tempo permitirá avaliar se esta experiência do Pingo Doce, que esteve “mais de ano e meio” em desenvolvimento, consegue cativar os estudantes. Ou se a tecnologia é suficientemente suave e discreta para não “assustar” quem não é grande fã de câmaras e filmagens. Para já, a empresa não tem planos para abrir novas “lojas laboratório” assentes neste conceito. Se pretende visitar, o estabelecimento está aberta de segunda a sábado, entre as 7h30 e as 21h00.
One last thing…
Nas apresentações da Apple de outrora, Steve Jobs guardava sempre uma surpresa para o fim, deixando os fãs da marca em histeria. É mais ou menos o que acontece aqui. À entrada da nova loja no campus de Carcavelos, os estudantes contam agora com uma máquina de vending inovadora, para aquelas ocasiões em que o minimercado se encontra fechado.
A “Go 24/7” é uma espécie de estante refrigerada fechada e também se usa a aplicação para a abrir. Um toque permite desbloquear as portas e retirar o que se quer, 24 horas por dia, todos os dias da semana. Ao fechar as portas da máquina, a compra é automaticamente processada e o débito é feito na sua conta bancária, algo possível devido ao manancial e sensores existentes no interior. Claro que, para a usar, é preciso ter um meio de pagamento associado à aplicação móvel.
Estas novidades da Jerónimo Martins resultam de um extenso trabalho feito em conjunto com a Forcom, a Reckon, a TrueWind e a OutSystems. Uma coligação de força para tentar desenvolver um conceito alternativo ao da Amazon… e ao da startup portuguesa Sensei, parcialmente detida pela Sonae, que está a desenvolver uma loja inteligente na mesma linha e que até já foi considerada pela Bloomberg como uma verdadeira ameaça à gigante fundada por Jeff Bezos.
Tudo isto são indícios de que o dinheiro físico começa a ser coisa do passado e de que a tecnologia se prepara para revolucionar o retalho português, algo que também deverá ter reflexo nos postos de trabalho neste setor. Alguns especialistas falam na destruição de alguns cargos e na criação de outros, totalmente diferentes. Mas é difícil prever ao certo como será o futuro. De qualquer das formas, o melhor é não ficar espantado: tudo indica que a próxima tendência vai ser entrar na loja… e sair “sem pagar”.
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Sem caixas mas com muitas câmaras. É assim o supermercado do futuro
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