Quando o Estado promove a desconfiança
Se o Estado pretende constituir-se proactivamente como um elemento gerador de confiança, a sua actuação terá de ser pautada por regras que sejam aplicadas de forma consistente e de forma transparente.
Foi ontem notícia que funcionários públicos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, da Autoridade Tributária e da Segurança Social foram detidos no âmbito de uma megaoperação da Polícia Judiciária contra a exploração e tráfico de pessoas imigrantes. Também ontem foi notícia que centenas (e potencialmente milhares) de enfermeiros terão sido intimados pelos hospitais públicos a que estão vinculados para devolverem salários que lhes foram pagos a mais no último ano. Uma e outra notícia mostram-nos o Estado como um elemento gerador de desconfiança. E, portanto, se o exemplo é este, questionar-se-á o cidadão, que coesão social será de esperar neste país?
A relação de confiança entre os cidadãos e o Estado é, desde há muito, tema de estudo no mundo académico. A confiança no Estado deriva essencialmente da conduta dos agentes do Estado e de como o comportamento destes é percepcionado pelos cidadãos. A confiança poderá resultar de uma mera expectativa cidadã de que os referidos agentes comportar-se-ão de acordo com o que deles é genericamente esperado. Ou, podendo representar algo mais forte, uma exigência quase moral de que os funcionários públicos terão de conformar-se perante um determinado padrão de comportamento compatível com a posição que ocupam. É nesta relação de confiança que, em larga medida, assenta depois a legitimidade do próprio Estado.
Quando falamos do Estado, falamos de uma entidade abstracta e colectiva. O Estado não é um sujeito moral. Por isso, quando nos referimos à confiança no Estado, referimo-nos a uma relação do tipo principal-agente, na qual o principal é o cidadão e o agente é o “servidor público”. Utilizo a expressão “servidor público” (ao jeito da expressão anglo-saxónica “public servant”), que curiosamente não encontra no português uma tradução precisa e correspondente, porque numa democracia liberal é precisamente esse o papel desempenhado por quem actua em representação do Estado. Quem o faz não está no topo de uma cadeia hierárquica. O verdadeiro soberano é o cidadão, a quem cabe, através dos seus representantes eleitos, assegurar que existem incentivos conducentes a uma boa conduta dos funcionários públicos.
Perante notícias como as de cima, é importante não confundir a árvore com a floresta ou a ovelha negra com o rebanho. A generalidade das pessoas está empenhada no seu trabalho e maus exemplos existem em todas as organizações. A questão está em criar mecanismos que incentivem os bons comportamentos e expurguem os maus. A prazo, toda a organização beneficiará. Ora, a corrupção certamente qualifica entre os maus comportamentos. Quanto aos bons exemplos, a sua definição dependerá da função a desempenhar, mas em geral, na administração pública, estarão quase sempre relacionados com critérios de celeridade, eficiência e qualidade processual. Na verdade, os critérios são muito próximos dos que regem o sector privado.
Está estudado que a avaliação feita pelos cidadãos aos serviços públicos é em larga medida determinada pelas suas próprias experiências junto dos mesmos, mas também pela existência ou não de tratamento recíproco por parte dos funcionários públicos. Por outras palavras, se os funcionários de um determinado serviço público teimarem em tratar o cidadão de forma não recíproca, por exemplo, tratando o cidadão como se ele fosse uma maçada ou um aldrabão, então, o cidadão tenderá a desprezar o serviço em causa, aumentando a probabilidade de não-cooperação no futuro. Naturalmente, a reciprocidade, constituindo o princípio ético de partida dos agentes do Estado face aos cidadãos, deve ser acompanhada de instrumentos de penalização do incumprimento.
Ao ler notícias como as de cima, o cidadão não deixará de sentir-se revoltado da próxima vez que for mal atendido em qualquer um dos referidos serviços públicos. De igual modo, o cidadão não deixará também de questionar sobre qual o grau de controlo interno que os serviços públicos têm em prática, designadamente, na hora de calcular as folhas salariais dos seus funcionários. Sobre o caso concreto dos enfermeiros, é caso para questionar, quem são os gestores que pagam a mais e depois retrocedem sobre os seus próprios funcionários? É justo, ou sequer legal, fazerem-no? A negligência não foi certamente dos funcionários. Mas, sublinhe-se, também não foi dos contribuintes. Haverá consequências para quem verdadeiramente cometeu o erro?
A economia comportamental, hoje em dia muito em voga, diz-nos que os seres humanos são muito sensíveis aos comportamentos que veem em seu redor. É da nossa natureza enquanto seres sociais. Quanto piores os exemplos, maior será o risco de desagregação social. Assim, se o Estado, na figura dos seus agentes – os funcionários de todas as hierarquias que constituem os seus serviços e entidades administrativas –, pretende constituir-se proactivamente como um elemento gerador de confiança, a sua actuação terá de ser pautada por regras que sejam aplicadas de forma consistente e de forma transparente. Dito de outro modo, os incentivos e os indicadores de qualidade a que obedecem os seus funcionários terão de ser claros, conhecidos de todos e conhecidos a priori – coisa que hoje não sucede.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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