O direito ao (re)conhecimento da paternidade na jurisprudência constitucional
A lei civil portuguesa não adotou a regra da “imprescritibilidade” do direito de investigação de paternidade, continuando a insistir na necessidade de existência de limites temporais.
O artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil (na atual redação dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril e aplicável às ações de investigação de paternidade por força do disposto no artigo 1873.º do mesmo diploma) prevê um prazo de caducidade de dez anos para a propositura da ação de investigação da paternidade, contado da maioridade ou emancipação do investigante. Assim, à semelhança do que sucede em outros ordenamentos jurídicos, a lei civil portuguesa não adotou a regra da “imprescritibilidade” do direito de investigação de paternidade, continuando a insistir na necessidade de existência de limites temporais ao exercício desse direito.
Esta questão desde cedo veio levantar, na jurisprudência constitucional e nos tribunais comuns, alguns problemas, discutindo-se se o limite temporal estabelecido (inicialmente de 2 anos e, após a alteração legislativa de 2009, de 10 anos após a maioridade ou emancipação) seria, ou não, suficiente para garantir aos filhos a tutela dos seus direitos à identidade e à historicidade pessoal, bem como o direito de constituir família e de estabelecer os correspondentes vínculos de filiação.
Na verdade, este regime de estabelecimento de prazos foi, por diversas vezes, julgado inconstitucional pelos Tribunais da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça, por se considerar que a fixação de prazos de caducidade para propor uma ação de investigação da paternidade seria uma restrição desproporcionada e excessiva de direitos fundamentais, vedada pela Constituição.
Chamado a pronunciar-se sobre o problema, através do Acórdão n.º 401/2011 (proferido em Plenário), o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional o estabelecimento de um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, considerando, por um lado, que a Constituição da República Portuguesa não exige a imprescritibilidade destas ações, e, por outro, que o artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na dimensão normativa em causa, não se afigura desproporcional, não violando qualquer norma ou princípio constitucional (este entendimento viria a ser posteriormente aplicado, designadamente, pelos Acórdãos n.ºs 529/2014, 626/2014, 151/2017 e 813/2017).
Em sentido contrário e mais recentemente, através do Acórdão n.º 488/2018 (da 2.ª Secção), o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional a existência de um prazo de caducidade para propor uma ação de investigação da paternidade, por tal constituir uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a constituir família, à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como do direito a conhecer a ascendência biológica e a ver estabelecidos os correspondentes vínculos jurídicos de filiação. À luz do referido acórdão, da Constituição decorre que as ações de investigação da paternidade devem poder ser instauradas a todo o tempo, sendo constitucionalmente ilegítima qualquer limitação temporal para o exercício deste direito.
Existindo, assim, decisões que julgaram a mesma norma em sentidos divergentes, foi interposto recurso pelo Ministério Público para o Plenário, nos termos do n.º 1 do artigo 79.º-D da Lei do Tribunal Constitucional, com vista dirimir o conflito jurisprudencial sobre a constitucionalidade da norma em causa e esclarecer se a Constituição proíbe, ou não, o estabelecimento de um prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade, por tal representar sempre «uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a constituir família, à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade», seja qual for a sua duração, como sustentado no Acórdão n.º 488/2018, em desvio da jurisprudência do Acórdão n.º 401/2011.
Submetida novamente a questão ao Plenário, o Tribunal Constitucional decidiu agora que a previsão de um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, não viola a Constituição da República Portuguesa (Acórdão n.º 394/2019). Considerou aquele Tribunal, designadamente, que a opção legal de estabelecer um prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade não é manifestamente infundada ou arbitrária, atendendo ao interesse público prosseguido e aos direitos fundamentais envolvidos, conclusão que sai reforçada pelo facto de o efeito extintivo que lhe está associado apenas se produzir quando se esgotar não apenas o prazo aí previsto, mas todos os outros que o mesmo preceito legal prevê com grande amplitude, nos seus n.ºs 2 e 3. Considerou, ainda, que o facto de o legislador ter optado pela utilização de conceitos abertos e indeterminados na fixação do termo inicial de alguns dos prazos de caducidade acrescidos previstos no artigo 1817.º do Código Civil garante ao titular do direito afetado pelo prazo de caducidade a possibilidade de instaurar a ação quando, uma vez decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, surjam factos ou circunstâncias que tornem razoável o exercício tardio do direito de ação, permitindo ao aplicador do direito a formulação de juízos de ponderação suscetíveis de cobrir a especificidade de cada caso concreto.
O Tribunal Constitucional põe, assim, termo a um diferendo que se arrasta há vários anos e, embora se reporte apenas ao processo em causa, acabará por fazer “jurisprudência plena” sobre esta matéria.
*Ângela Vieira é advogada especializada em direito da família na sociedade JPAB – José Pedro Aguiar-Branco Advogados.
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