O novo bastonário da OA avisa que no seu mandato quer resolver a questão da CPAS e das defesas oficiosas e não receia em chamar o Governo de deslumbrado na questão da delação premiada.
O novo bastonário da Ordem dos Advogados, que tomou posse em janeiro, avisa que no seu mandato quer resolver a questão da CPAS e das defesas oficiosas. Eleito à segunda volta, Menezes Leitão não receia em chamar o Governo de deslumbrado na questão da delação premiada, considera que criar tribunais especializados é tomar medidas que são, objetivamente, inconstitucionais e defende que têm de existir mais meios para lutar contra a corrupção.
Sem papas na língua, o novo líder dos 32 mil advogados defende ainda que a classe é esquecida pelo poder político, referindo-se aos aumentos salariais dos juízes e ao quase Pacto de Justiça. Mostra-se cansado desses pactos e diz que a Justiça precisa é de ver medidas executadas, concretizando com a necessária descida de custas judiciais.
Qual é a sua prioridade das prioridades?
Bom, a primeira questão que quero resolver, que está atrasada há dois anos, é a situação da não atualização das remunerações no âmbito do acesso ao direito. Há 15 anos que as defesas oficiosas não são atualizadas, mas, pelo menos há dois anos, nós temos uma lei que manda o Governo fazer/publicar uma portaria até 31 de dezembro de cada ano. A lei entrou em vigor em 2018, portanto devíamos ter tido a atualização em 31 de dezembro de 2018 e outra em 31 de dezembro de 2019. Como nada disto aconteceu, nós gostaríamos de ver isto resolvido.
Qual é que é a sua opinião da ministra da Justiça?
Considero que se trata de uma ministra muito competente e, portanto, tem dedicado um bom trabalho relativamente ao Ministério da Justiça. Infelizmente, tenho achado que tem claudicado um pouco a situação dos advogados durante o seu mandato anterior, mas espero que a situação seja resolvida neste mandato. E tenho esperança que isso possa ocorrer.
E para isso, então, agora vamos assistir a uma Ordem dos Advogados mais interventiva do que o mandato anterior?
Isso com certeza que sim. Ainda não tomei posse, mas penso que já dei os sinais necessários para isso. Parece-me que, efetivamente, nós não podemos ter uma Ordem completamente alheada dos problemas sérios da justiça e dos problemas que afligem os advogados. Os advogados têm a sua Ordem, que os representa precisamente para atuar conforme as suas competências, em defesa do estado de direito e em defesa da dignidade da advocacia, e é isso que nós pretendemos executar.
E acha que a Ordem tem que ter também o papel de “oposição política”?
Não, a Ordem não faz oposição política. E, portanto, a oposição política está a ser feita no Parlamento e cabe aos partidos que estão no Parlamento exercer essa oposição.
Eu pergunto-lhe isto porque, como sabe, já houve bastonários, nomeadamente Marinho Pinto que tiveram essa postura…
Eu não achei que tivesse sido feita oposição política ao Governo. E devo dizer que, neste caso, o meu paradigma neste âmbito é o bastonário António Pires de Lima que, de facto, teve sempre uma intervenção crítica sobre os problemas da justiça e sobre os problemas da Ordem dos Advogados. É isso que nos cabe fazer. Agora, nós não podemos assistir a medidas que afetam a advocacia, que afetam o sistema de justiça e que afetam os advogados, sem que a Ordem não diga absolutamente nada só para evitar ser acusada de se envolver em política.
Nós não podemos assistir a medidas que afetam a advocacia, que afetam o sistema de justiça e que afetam os advogados, sem que a Ordem não diga absolutamente nada só para evitar ser acusada de se envolver em política.
Portanto, nas suas palavras, Pires de Lima terá sido o melhor bastonário?
É uma pessoa que eu conhecia. Não faço avaliações relativamente a anteriores bastonários. Para mim, todos eles merecem o nosso respeito, todos eles dedicaram-se à situação da Ordem. Agora, tratava-se de uma pessoa que conhecia pessoalmente, com quem tive uma ocasião a trabalhar, inclusive, num processo judicial e precisamente por isso revi-me muito na sua atuação como bastonário.
No anterior bastonato a classe assistiu a duas manifestações devido aos aumentos das contribuições da Caixa de Previdência mas não houve uma posição formal da OA relativamente a essa questão. Qual é que é a sua posição em relação a isso, ou seja, acha que, de facto, as contribuições mensais devem diminuir?
Sim.
E em que sentido é que pretende fazer isso?
Para já, nós temos um problema complexo que é, no fundo, o que foi feito relativamente à Caixa de Previdência em 2015. E que devo dizer que foi uma situação que apareceu e que ninguém compreendeu essa reforma porque essa reforma baseia-se num estudo – apresentado pela Caixa – que tinha descoberto que os advogados tinham uma esperança de vida 11% superior à da restante população. O que se passou na altura quanto a esta intervenção em 2015 foi, de facto, que se fez uma reforma da caixa que sujeitou os advogados a um aumento… Para já, previu-se um aumento de contribuições em sete pontos percentuais, ainda com o aumento do salário mínimo, e isto resultou em que a maior parte dos advogados ficou sujeito a umas contribuições mínimas que a esmagadora maioria não tem condições para pagar.
Atualmente, são mais de 250 euros, não é?
Sim, agora passaram aos 251 euros mensais, no ano anterior foram 230. E, portanto, depois tentou fazer-se uma reforma, mas criou-se um sistema em que o Governo propôs um indexante ao qual abateu menos 14%, mas que a conservação desse desconto depende de uma proposta da Caixa, que pode propor um desconto maior ou menor e que o governo imediatamente aplica, como se viu agora relativamente a essa portaria. Eu achei que foi uma grande precipitação e disse isso na reunião que houve com o Conselho Geral da Caixa. Estava lá como simples advogado, mas disse que era um risco enorme estar a tomar uma medida desse género que iria causar imenso descontentamento. Como não se pode subir 9% as contribuições num ano em que não houve inflação e é isso o que se passou relativamente a esta questão. E, precisamente por isso, eu entendo que nós temos que ter um sistema de previdência que seja efetivamente justo e que não torne insustentável o exercício da advocacia.
Justo implica contribuição mais baixa em função do rendimento…?
Pelo menos não haver as contribuições mínimas para quem não tem rendimento. Portanto, haver possibilidade de controlo de quem não tem efetivamente rendimento e que não tem de descontar. Porque uma pessoa que não desconta já se está a prejudicar porque não tem inscrição das suas contribuições e pode ter uma pensão inferior em consequência dessa situação. E, por isso, agora nós também não podemos é estar a criar um sistema em que a pessoa não está a ter rendimento no seu trabalho, mas está a ter uma tributação. Isso, de facto, parece-me que é uma injustiça e nós tencionamos resolvê-la e tentar ver junto das pessoas que aprovaram este regime, até porque me parece que isto baseia-se em pressupostos que não estão sustentados. Porque eu não acredito que os advogados tenham uma esperança de vida 11% superior à restante população. Gostava de ver esse estudo, nunca o vi, nunca ninguém o viu. A Caixa tinha-o, parece que está no Governo que fez esta alteração, mas a verdade é que isto tornou a situação da previdência dos advogados em condições muito difíceis. Como eu defendo a previdência, que continuemos a ter um sistema autónomo de previdência, mas quero que o sistema seja justo e daí que vou tentar, junto com a Ministra da Justiça, Segurança Social e com o Sr. Presidente da Direção da Caixa, tentarmos de facto ver se conseguimos estabelecer algo diferente.
Já teve alguma conversa com o novo presidente da Caixa, de forma a perceber qual é que é a postura dele?
Não, a única vez que o encontrei nos últimos tempos foi precisamente nessa reunião de Conselho Geral, onde foi aprovado o aumento e, nessa altura, quem interveio foi o atual presidente a defender essa solução e, como eu disse, na altura eu estive em desacordo com esse aumento e, por isso, compreendi a manifestação que houve neste âmbito, em protesto contra esta situação porque, de facto, penso que nós temos de ter bom senso e a questão do bom senso tem que saber que há uma certa fadiga fiscal, que não se trata de um imposto, mas de um tributo e, portanto, neste âmbito de aumento de 9% quando os advogados já estão a passar por uma situação muito difícil, pareceu-me uma atitude muito pouco ponderada. Eu apelei para que não fosse tomada essa decisão, não fui ouvido. A direção propôs, todos os conselhos regionais, exceto um que se absteve, aprovaram, e o Conselho Geral anterior também. Mas, de facto, o problema que temos é este. É que estamos num sistema que eu acho muito incorreto e quero ver se consegue ser resolvido. Porque, se rejeitamos o desconto que a Caixa propõe, o resultado é não haver desconto nenhum e, portanto, a situação dos advogados ainda fica pior. Portanto, estamos numa situação que eu acho que o próprio Conselho Geral da Caixa perde a liberdade para decidir o que pode ou não fazer porque se nós não concordamos com o desconto e achamos que o desconto deve ser superior, apesar disso, estamos de certa forma, manietados porque se rejeitamos o desconto, o resultado é não haver desconto nenhum.
A solução poderá passar por os advogados ficarem sujeitos ao regime geral da segurança social? Houve uma petição, como deve saber…
Sim, eu soube disso e vi também que houve um partido que apresentou, pediu ao governo que estudasse o assunto, enfim, também não me parece que seja correto no parlamento, que tem poder legislativo, aparecerem propostas para o governo estudar assuntos, mas eu não defendo essa situação porque nós, em primeiro lugar, não sabemos qual é o património que a Caixa tem e não sabemos também o que é que a Segurança Social pode, eficazmente, fazer. Portanto, embora veja muitos colegas que estão muito entusiasmados com essa hipótese, verdade seja dita, o resultado é que nós para este ano integrarmos a Segurança Social, tínhamos de entregar o património que a Caixa tem, e o património que a Caixa tem é muito elevado neste momento. E, verdade seja dita, até agora tem conseguido assegurar um sistema de reformas.
Pois, lá está, a questão é que pelo menos nessas questões da saúde (baixas médicas, licenças de maternidade) esses problemas seriam resolvidos…
Sim, em certa medida sim, mas também, para já, temos de saber se a Segurança Social aceita ou não, que é logo a primeira questão. Segundo, saber se isso é positivo ou não é positivo… Por exemplo, em França, recentemente, houve um grande protesto de advogados contra a integração do sistema de previdência na Segurança Social porque o facto de nós termos um sistema de previdência que podemos gerir, e que foi resultado do contributo de muitas gerações de advogados, é algo positivo, desde que seja gerida e seja justa e sustentável.
Mas, pelo menos, enquanto bastonário, não pretende trazer isso à discussão?
Sempre disse no meu programa que não era favorável, pelo menos enquanto não tivermos a certeza do que está em causa, a integração da CPAS no regime geral da Segurança Social.
Mas, pelo menos, sugerir isso de forma a que se perceba tudo isso que me acabou de dizer?
O que foi proposto por nós é fazermos uma auditoria à Caixa para ver a sua capacidade de pagamento das reformas e, portanto, articular nesta situação. Porque nós estarmos com uma integração precipitada na Segurança Social acho que não se justifica. Eu sei que há uma petição que pede isso, eu sei que teve oito mil assinaturas, mas também não sei se são todas de advogados e solicitadores.
E, apesar de tudo, oito mil é um universo muito curto para os 32 mil, mais ou menos, que existem.
Exatamente. De advogados e ainda mais os solicitadores porque a Caixa também não são só advogados, são advogados e solicitadores. E, portanto, é algo que nós temos sempre de equacionar mas este tipo de decisões não pode ser tomada de forma precipitada porque nós não podemos esquecer que a Caixa está a pagar as reformas de muitos colegas e eu espero que continue a pagar eficazmente nesta reformulação. O que eu quero dizer é o seguinte: nós não excluímos nenhuma solução para o problema, mas não vou, à partida, aderir a uma solução que não estou convencido ainda, até agora, que seja a melhor. Precisamente pelo que se vê no estrangeiro, a reação que houve foi muito negativa a esse tipo de iniciativas porque, de facto, a Segurança Social também é muito instável. Hoje dá benefícios, amanhã não os dá. O que se passou na ADSE, por exemplo, as pessoas todas reclamavam a ADSE e depois começamos a subir nos últimos anos…desde desconto de 1%, desconto de 2%, e agora um desconto de 3,5% sobre rendimentos brutos portanto, ou seja, neste caso, nós estamos a assistir a um arrebatamento de um sistema. Não temos ideia nenhuma do que se vai passar no futuro quanto a isto.
No final do seu mandato espera que as defesas oficiosas e a questão da CPAS fique resolvida?
Espero que sim, pelo menos seria uma grande desilusão da minha parte se não conseguisse resolver esses assuntos.
E agora, está preparado para esta nova fase da sua vida? Já não foi a primeira vez que se candidatou, portanto, calculo que já estivesse mentalizado para o que aí vinha.
Eu sempre soube o que era exercer cargos executivos na Ordem. Fui vice-presidente do Conselho Regional de Lisboa.
Mas, apesar de tudo, agora é um bocadinho diferente.
Agora com certeza que isto exige muito mais responsabilidade. De facto, ocorreu esta situação, mas olhe, tenho-me vindo a preparar.
E a sua função de professor catedrático na faculdade, vai-se manter exatamente como está?
Sim. Pelo menos, conto fazer isso. Neste momento ainda não equacionei se vou suspender ou não, depende também do que me esteja a ser exigido, mas isso é algo que eu avaliarei.
E vai manter a sua posição de não querer ser remunerado pelo cargo de bastonário?
Sim, porque eu tenciono continuar a trabalhar. Tenho o meu escritório. Portanto, a situação é esta, eu não pretende deixar os meus clientes. Tenho processos que eles me confiaram e que seria absolutamente inaceitável que deixasse os meus clientes durante três anos e simplesmente desaparecesse. Só quem seja advogado de uma grande sociedade e não pretenda continuar a exercer advocacia e encara a Ordem como o fim da sua carreira, de encerrar o escritório, é que, de facto, pretende ter a sua exclusividade. Portanto, a meu ver, apesar de ter sido muito criticado por isso na campanha, mas os colegas escolheram assumir o modelo que eu propus desde o início e, portanto, é esta a situação. Já pensava isso em 2007. Quando o bastonário Marinho Pinto propôs essa situação que eu achei que não fazia sentido e, precisamente por isso, até me recordo que, no nosso escritório, nós tivemos um processo em que tínhamos do outro lado o bastonário Castro Caldas, que estava a representar um processo como qualquer outro advogado e ele próprio dizia que achava que os advogados gostavam de ir ao tribunal encontrar o Sr. Bastonário e tratar de processos com ele. E aproveito para prestar a minha homenagem ao Dr. Castro Caldas, de quem nos despedimos, infelizmente, recentemente. E, por isso, é este o que eu entendo ser o modelo. Não critico ninguém que adote outro tipo de solução, mas não é a minha.
Há cada vez mais licenciados em Direito. O que pretende fazer para proteger, digamos assim, a entrada no mercado de trabalho dos jovens advogados?
Bom, nós pretendemos, em primeiro lugar, transformar o estágio, como eu disse no programa, numa escola superior de advocacia porque tem havido, infelizmente, um mito que, de certa forma, tem sido difundido e que eu, por vezes, encaro pessoas a pensarem isso, que um licenciado em Direito consegue ser advogado. É que não consegue, ou seja, eu tenho essa experiência como professor de direito e como advogado e sei perfeitamente que o que nós ensinamos na universidade não é suficiente. Mas o modelo é completamente distinto. Porque na universidade nós damos aos alunos a perspetiva que habitualmente o juiz tem na análise de casos concretos, não os ensinamos para a retórica, para a defesa de causas, e não é essa a função de um curso de direito num sistema humanístico como o nosso. E, portanto, o sentido de um curso de direito é permitir uma abertura a toda uma série de profissões. A advocacia é uma delas, mas precisa de ser instituída por um estágio de uma profissão, e as profissões aprendem-se fazendo, mas também se aprendem recebendo a formação adequada para esse efeito. E precisamente por isso é que nós queremos criar na Ordem uma ‘Escola Superior de Advocacia’ que permita preparar todos os candidatos para serem advogados.
Nós queremos criar na Ordem uma ‘Escola Superior de Advocacia’ que permita preparar todos os candidatos para serem advogados.
Mas mais prático, portanto.
Claramente. Para que entendam que, de facto, a situação que existe neste âmbito é que, quando tiram o curso de direito, não estão aptos para ser advogados. Tem que ter essa formação para esse efeito.
E a duração desse estágio?
Neste momento, acho que já foi reduzido o tempo. Portanto, não estou a pensar fazer qualquer tipo de alteração ao tempo de estágio.
Porém, há uma taxa de reprovação na Ordem dos Advogados que, apesar de tudo, não é insignificante, digamos assim. Porque é que acha que isso acontece?
Eu acho que seria muito mau se nós fizéssemos exames e toda a gente passasse. Portanto, isso significaria que não estaríamos a avaliar corretamente. Há sempre, com certeza, algumas pessoas que não estão em condições, outros porque não conseguiram, outros porque tiveram um mau momento neste âmbito, mas a verdade é que o exame pretende exatamente isso, para testar se a pessoa está ou não está em condições para exercer a advocacia.
Mas acha que há faculdades que também não são suficientemente capazes de prepará-los?
Não tenho essa posição.
Mas como professor numa das melhores universidades do país, não acha que um curso na sua universidade, ou na Católica, ou o que seja, não seja melhor do que outras que há uns anos não existiam sequer.
Não me cabe a mim fazer uma avaliação das diversas universidades, nem entendo que seja essa a função da Ordem dos Advogados. Há uma agência de regulação e da qualidade do ensino superior que exerce o seu trabalho e cabe ela avaliar quais são as condições. Não conheço todas as faculdades, por isso não me vou pronunciar sobre o ensino de cada uma. Não vou tomar uma posição a esse respeito.
Acha que a exigência mudou desde que houve o processo de Bolonha?
A exigência desceu muito, por isso é que eu sempre tive uma posição que foi totalmente contrária. Acho que o processo de Bolonha foi uma gigantesca fraude que se fez aos estudantes em Portugal. Aliás, em toda a Europa. Porque nós conseguimos convencer pessoas/alunos que eles teriam a mesma qualidade de formação com menos anos de formação, e isso verificou-se que foi uma falsidade gigantesca e notou-se, claramente, com o problema dos cursos de Direito de cinco anos que passaram a ter de concorrer também com os cursos de quatro anos. E, nesse aspeto, eu nunca fui a favor da redução dos cursos de Direito. Mas, neste momento, isso foi decidido e foi pena porque, inclusivamente, a primeira proposta que surgiu no governo foi não colocar a declaração de Bolonha ao curso de Direito. Eu acho que teria sido a melhor solução.
O processo de Bolonha foi uma gigantesca fraude que se fez aos estudantes em Portugal.
E, por isso, acha que a Ordem, ao nível da formação, tem de ter um papel mais exigente?
Não nos cabe suprir a redução que houve no curso de Direito, mas cabe-nos formar os advogados e a Ordem tem de dar a formação como advogados, mas é essa a única formação que compete fazer. Todo o resto, o curso de Direito, compete às universidades.
Acha que há demasiados advogados para o país que temos?
Eu não vou fazer essa comparação relativamente à relação entre os advogados e a população do país. A minha posição é que todos os que são advogados merecem o máximo respeito e não vou dizer se temos advogados a mais ou a menos ou se devíamos ter menos advogados. A nossa profissão é de acesso livre, ou seja, todas as pessoas que estão em condições podem-se inscrever como advogados. Nós não queremos é que seja uma profissão de acesso fácil. Portanto, temos que exigir uma formação adequada porque está em causa a garantia que nós temos que dar aos cidadãos que a pessoa que está a tratar dos seus casos e que eles colocam, muitas vezes, a sua própria liberdade e o seu património nas mãos do advogado, o advogado tenha que estar qualificado para poder defender os seus processos e, nesse âmbito, precisamente por isso, espero que continue a ser a função da Ordem levar esta qualificação… Eu encarei com alguma preocupação ter visto referências do Governo a propostas da OCDE e da autoridade da concorrência, que pretenderiam liberalizar as profissões e que até diziam que ganhavam dinheiro dessa forma, nós não podemos ter uma visão mercantilista neste aspeto.
Relativamente a essa questão, qual é a sua posição relativamente a essa proposta do Governo?
A minha posição é totalmente contrária. Eu não sei o que é que está em causa porque já temos referência nas grandes opções do plano a essa iniciativa, mas uma das propostas que se conhecem da OCDE e que a autoridade da concorrência acolheu imediatamente, o que me parece uma situação relativamente estranha, é uma liberalização total e, precisamente, admitindo a mistura entre os advogados, abolir os atos próprios e colocando todo este tipo de intervenção com outros profissionais. Isso parece-me uma situação muito prejudicial…
Pode abrir um precedente que é perigoso? Teremos sociedades de advogados com contabilistas e auditores…
Sim, exatamente. Mas a questão das sociedades dos advogados preocupa-me bastante porque, de facto, é um fator que leva a que se coloque essa mistura, mas preocupa-me, também, que não esteja a ser definido o que é o ato próprio de um advogado e que profissionais sem qualificações e, mais grave que isso, sem uma ética e deontologia própria, estejam misturados com advogados. O que saiu foi uma situação absolutamente ridícula que era, no fundo, uma pessoa dizer “Não, nós em vez de termos advogados, temos profissionais que não estão qualificados, mas têm um código de conduta qualquer”. Nada disto me parece que possa fazer sentido e vejo com grande preocupação que surja essa proposta com um certo liberalismo feroz, que me parece, neste caso, altamente prejudicial.
E isso também vai ser uma questão que vai pôr na agenda quando tiver uma reunião com a ministra da Justiça?
O que eu espero é que essa não surja na agenda porque, de facto, do que eu tenho visto, aparece aí que vamos usar medidas das propostas, mas enfim, estando nas grandes opções do plano, eu espero que haja alguma ponderação porque eu devo dizer, por exemplo, nesta questão da delação premiada e dos tribunais especializados, apareceu com indícios concretos com o trabalho que ia apresentar propostas até abril, e os discursos que ouvimos na abertura do ano judicial foram bastante mais tranquilizadores do que as medidas que surgiram…
De uma certa forma está a recuar?
De facto, assumiu uma certa precipitação que não corresponde com o que foi dito na altura porque, de facto, se bem se recorda, quando a notícia surgiu foi corroborada, quer pela Ministra da Justiça, quer pelo próprio Primeiro-ministro, que apareceu a dizer que isto era uma vantagem devido ao processo Madoff. Mas os discursos que ouvimos depois já foram em sentido distinto e, portanto, eu congratulo-me que tenha havido alguma ponderação e espero que, neste caso, eu também venha a ver porque penso que este tipo de iniciativas têm de ser muito bem ponderadas porque, de facto, pode colocar em risco a situação dos cidadãos que, quando se dirigem a um advogado, tem de ter alguém que esteja não só com a qualificação adequada, mas também com uma ética e uma deontologia própria que a própria Ordem tem que controlar.
O que a ministra explicou é que a delação ou colaboração premiada, como ela gosta de chamar este mecanismo, já existe na lei.
Que existe na lei é uma situação distinta, que é permitir, neste caso, existir alguma ponderação no âmbito da pena relativamente ao arguido que se arrependa. Embora se tenha definido um prazo curto para esta situação. Isso é uma situação distinta porque é feito pelo próprio juiz e o juiz pondera na situação o arrependimento, mas isso já existe há muito tempo. Mas o que foi anunciado seriam intervenções no âmbito de negociações, no âmbito do próprio Ministério Público, que garantiriam uma redução da pena no caso de haver esse tal acordo. Isso parece-me uma situação gravíssima porque nos países que têm adotado este sistema, quer nos Estados Unidos, quer no Brasil, muitas vezes nós vemos que não temos a certeza se, de facto, apanhamos o maior criminoso ou se apanhamos simplesmente os peixes miúdos que foram oferecidos como bode expiatório por alguém que decidiu começar. E muitas críticas têm sido feitas a esse sistema. Claro que pode aparecer a dizer: “não, mas nós temos uma taxa de condenações enorme com isto”, mas a verdade é que não sabemos se apanhamos aquele que era ‘o mais culpado’. Porque, no fundo, acaba por escapar aquele que é o primeiro a confessar e a denunciar os outros, o que também não é uma situação muito correta. Eu não gostaria que a nossa investigação criminal fosse constituída por uma recolha de confissões de arrependidos.
Não gostaria que a nossa investigação criminal fosse constituída por uma recolha de confissões de arrependidos.
De qualquer forma, o foco do discurso do governo, quer do Primeiro-ministro, quer da Ministra da Justiça, é o combate à corrupção, nomeadamente, como sabe melhor do que eu, e como disse ainda agora, as condenações nesses crimes são praticamente irrisórias. Como é que se podem combater essas cifras negras da corrupção?
A corrupção é sempre um crime difícil de mudar porque é feito, normalmente, entre duas pessoas e, portanto, coloca-se apenas neste âmbito, mas hoje em dia há grandes capacidades de registo, portanto, a prova que hoje se pode fazer é muito mais fácil do que antigamente. Porque antigamente não tínhamos possibilidade de acesso às contas bancárias, a possibilidade de acesso às transferências que existem e, portanto, hoje em dia, é muito mais fácil.
Sim, mas a verdade é que os números refletem o mesmo há 10 ou 20 anos…
Mas o problema também é que nós temos de estabelecer recursos para isso. Porque nós não podemos ter uma investigação criminal que está subfinanciada e depois dizer: não, não vamos continuar a investir aqui, mas vamos adotar sistemas de colaboração premiada em todo o resto…
Portanto, a sua posição é idêntica à da senhora PGR no sentido de que sem meios não se consegue?
Exatamente. Como diz o povo, “não se podem fazer omeletes sem ovos”. Se, de facto, não há meios para se fazer a investigação criminal, com polícias e técnicos que são precisos nestas situações, nós não conseguimos fazer a investigação. Mas precisamente por isso é que me preocupa. Porque uma coisa é termos uma investigação criminal que, a meu ver, deve ser eficaz e adequada, outra coisa é que perseguição da corrupção deve ser um desígnio nacional.
Os discursos políticos têm sido todos nesse sentido, que agora estamos perante o flagelo da corrupção. Não acha que também há um certo exagero?
A corrupção é sempre um problema que é daqueles crimes que tem as cifras negras, portanto, nós nunca conseguimos saber estatisticamente o tipo de situação. Porque há muita situação encoberta relativamente ao fenómeno da corrupção. O que eu acho que nós temos de salientar para resolver é, antes de tudo, criar uma cultura de uma restrição efetiva da pequena corrupção. Porque, no fundo, as corrupções começam logo com os pequenos passos, depois é que vão chegando aos grandes neste âmbito. E, precisamente por isso, a intervenção deve fazer-se logo mostrando, quer através de cultura, quer relativamente ao próprio funcionário. Porque o Estado é algo que está ao serviço de todos, não está ao serviço particular. E, precisamente por isso, a criação dessa cultura é algo fundamental. E, depois, tem que haver uma punição penal efetiva para este aspeto, mas o facto de alguém ser acusado não quer dizer que seja culpado e nós temos visto muitas vezes que, às vezes, aparecem mediaticamente acusações e depois não se sustentam em tribunal. E a verdade é que a regra é que toda a prova tem de ser feita em tribunal.
O processo penal precisa de ser alterado no sentido em que, por exemplo, a prova não tem de ser toda feita em julgamento? Ou acha que é porque os juízes são demasiado brandos?
Não, não acho.
E há alguma precipitação do Ministério Público ou das polícias?
Não sei se houve ou não. O Ministério Público promove a ação penal, mas depois também tem que as sustentar num julgamento com prova. Agora, muitas vezes, cria-se na comunicação social e na opinião pública, em consequência disso, alguma visão que não corresponde à realidade. Eu costumo dar esta imagem com bastante frequência, que é como falarmos num jogo de futebol em que as claques dizem uma coisa mas depois o que vai sair do jogo é o que se passa nas quatro linhas. E, portanto, recordo, por exemplo, quando foi o campeonato do mundo no Brasil, o Brasil quando jogou com a Alemanha, tinha no estádio toda a gente a apoiar o Brasil e perdeu 7-1 com a Alemanha. Ora, isto também é uma situação que acontece nos tribunais.
Sendo as claques, neste caso, a comunicação social?
Não digo que seja a comunicação social, mas cria-se uma imagem…
Nós não inventamos propriamente as acusações…
Ninguém diz que inventam uma acusação, mas diz pura e simplesmente que se cria uma imagem cá fora que, por vezes, dentro do julgamento não corresponde à verdade. E a verdade é que, em certas provas defendidas em julgamento, nós muitas vezes vemos que o processo não corresponde ao que se passou. Por isso é que eu tenho sempre a máxima prudência em não comentar casos e até desaconselho que os colegas o façam, porque às vezes os colegas dizem: “Ai não, mas esta estratégia da defesa é isto e é aquilo”, e eu acho que nunca o devem fazer porque a pessoa não conhece o processo, não sabe o que se está a passar, não sabe a prova que existe quanto a esta situação. E precisamente por isso podemos criar na opinião pública uma imagem relativamente à culpabilidade de alguém que, depois, não se concretiza dentro do julgamento. E é o julgamento que decide.
De qualquer forma, se eu fizer a pergunta de qual é que é para si, enquanto advogado, o principal problema que a justiça atravessa, é a falta de meios?
A falta de meios acaba por desembocar neste âmbito. Mas eu devo dizer que o maior problema que eu tenho visto como sério problema e vejo que muito pouco se fala disso é na nossa justiça administrativa e fiscal, em que, infelizmente, o que estamos a verificar é que, às vezes, temos processos que demoram décadas a chegar a julgamento.
Sim, a justiça penal é a mais rápida de todas.
Achei importante que o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça tenha salientado isso: “Atenção que não só falo pelos tribunais judiciais, não pelos tribunais administrativos e fiscais”.
Os tribunais administrativos e fiscais estão numa situação de extrema gravidade, e é algo que, a meu ver, esperemos que o Governo consiga resolver a situação porque eu acho que não é sustentável. Os tribunais administrativos e fiscais são os que defendem os cidadãos contra os arguidos do Estado e muitos arguidos têm recorrido. E não há outra forma de defender os arguidos do Estado se não tivermos os tribunais administrativos e fiscais. E se tivermos uma situação deste género, em que nós levamos anos e anos a ter um processo decidido, pura e simplesmente os cidadãos ficam indefesos.
Os tribunais administrativos e fiscais estão numa situação de extrema gravidade, e é algo que, a meu ver, esperemos que o Governo consiga resolver a situação porque eu acho que não é sustentável.
Mas não acha que ao poder político também convém que essa justiça, precisamente porque, no fundo, são os cidadãos contra o Estado, também convém que essa justiça seja menos célere?
Penso que não. Não faço essa análise.
E, apesar de tudo, é uma justiça menos mediática…
E, talvez por isso, é que não esteja a prestar tanta atenção. Digo muitas vezes que há um certo manto de silêncio sobre a demora que se está a passar nos tribunais administrativos e isso também é tarefa dos jornalistas chamar a atenção para esse aspeto porque, de facto, a meu ver, é o problema que me parece mais grave na Justiça.
Nunca parece ser uma prioridade do poder político…
Exatamente.
Eu recordo-me vagamente que a ministra há uns anos, logo no início do primeiro mandato, anunciou um grupo de trabalho ou fez uma espécie de conclusões sobre o estado da justiça administrativa e fiscal…
Mas, repare, neste caso, nós temos que ser mais práticos. No fundo, tentar recuperar os processos, tentar colocar mais magistrados, não sei se os grupos de trabalho conseguiam resolver o problema.
Agora peço-lhe para analisar o discurso do Presidente da República no ano judicial. Uma das questões que ele realçou foi a defesa que ele fez publicamente do aumento salarial dos juízes. Concorda com isso?
Eu concordo integralmente que todos os que trabalham na Justiça devem ter uma remuneração digna. O que eu acho é que o Senhor Presidente da República só falou relativamente aos magistrados e que os políticos e os oficiais das forças armadas não deviam ter os mesmos aumentos que os magistrados tinham. Eu não contesto os aumentos e acho que é correto que existam, até acho que os nossos magistrados devem estar bem pagos, mas o que me parece preocupante é que também não estejam a ser bem pagos os advogados.
Nomeadamente ao nível das defesas oficiosas, que é, digamos assim, o que o Estado paga.
Exatamente, que o Estado está a pagar com o preço de há 15 anos e nem sequer atualiza…
Portanto, na sua ótica, concorda, porém, acha que, mais uma vez, os advogados, estão a ser esquecidos.
Exatamente. Estão a ser esquecidos, por isso é que me parece que, muitas vezes, o que se passa é que os nossos governantes na esfera da Justiça, normalmente, pensam apenas nos magistrados.
Ainda por cima estamos a falar de uma ministra que é magistrada, não é?
Isso aí, não discuto. Mas esta ministra não é diferente de anteriores, nomeadamente da ministra Paula Teixeira da Cruz, que também tinha sempre a mesma preocupação e, portanto, nós andamos nisto desde há 15 anos para cá, não é apenas uma questão da ministra.
E ela era advogada, a ministra Paula Teixeira da Cruz.
Exatamente, não é uma questão relativamente apenas ao ministro que está no cargo. Mas é uma atitude geral do Ministério da Justiça a maior preocupação com a situação dos magistrados, mas também eu acho que nós não podemos esquecer a situação dos advogados e, precisamente por isso, eu apelaria a que, esta questão da atualização das remunerações fosse rapidamente resolvida.
Quanto ao resto, a sua pergunta relativamente à questão do discurso do Senhor Presidente da República, eu devo dizer que eu, quando o Senhor Presidente, há cerca de três anos, fez a apresentação daquela proposta por parte da Justiça, eu estava lá a assistir na qualidade de Presidente do Conselho Superior da Ordem, mas o que apareceu nessa proposta pareceu-me logo uma situação que não achei que fosse adequada. Porque o Senhor Presidente propôs que os agentes da Justiça deviam-se entender, apresentar uma proposta de convergência neste âmbito, comum, ao poder político. E o poder político e só ele, foi essa a sua expressão, então decidiria o que é que recolheria dessa proposta de convergência.
E é essa do “só ele” que o incomoda?
O que eu digo é o seguinte: eu, como advogado, não aconselharia ninguém a celebrar um contrato assim. Porque nós, quando celebramos um contrato, é precisamente para que tudo o que lá está seja aplicado. E não apenas para que algumas das partes que podem interessar a outros se revoltem e as restantes não. Desta vez, também, como se disse, a minha previsão foi logo que esse pacto iria falhar. Nós chegamos a ter posições que, no fundo, aquilo fica apenas por mera vacuidade e que, por exemplo, uma questão que aflige muito os cidadãos, que é o elevado valor das custas judiciais estava no pacto da Justiça mas dizem apenas o princípio (“acolhemos o princípio da redução dos custos judiciais, mas não nos comprometemos com nenhuma medida concreta”).
Isso é a mesma coisa que nada.
Exatamente. Isto não é forma de trabalhar, estar a assinar pactos ou plataformas ou seja o que for. Eu quero ver medidas concretas e propostas neste âmbito. Porque se operacionarmos uma plataforma só com base em princípios gerais, eu acho que não precisamos de plataforma nenhuma. Com princípios gerais que quase todos estamos de acordo. Nas questões concretas, saber se a reforma deve ser assim ou assado, se vai haver uma redução das custas e em que montante, aí sim, é que a questão se coloca.
Portanto, a sua opinião é que devia ser um pacto feito por vocês, pelos agentes de Justiça, mas que fosse validado?
A questão que se coloca é esta: se nós temos as reformas da Justiça e tínhamos medidas de acordo sobre elas, é para seguir em frente e é para ser executado. E de todo o pacto da Justiça, o que resultou, foi o aumento da remuneração dos magistrados. Isso, de facto, foi conseguido. Mas quanto aos advogados nada foi conseguido, aliás, praticamente nada constava de útil relativamente aos advogados naquele pacto. E por isso é que eu gostaria que, mais do que propriamente pactos, houvesse de facto uma preocupação, medidas concretas para resolver esta situação.
O mapa judiciário também foi uma das questões que foi abordada por si no seu discurso. Acha, então, que deveria desfazer-se a reforma da Paula Teixeira Cruz?
O que se passou com o mapa judiciário foi uma situação gravíssima porque nós temos uma organização judiciária que existia desde o tempo de D. Maria II. Mas pata o interior do país é muito importante ter um tribunal.
É, mais uma vez, o esquecimento do “Portugal profundo”, passo a expressão.
E as pessoas não tem ideia de que isso afetou imensos advogados. Conheci imensos colegas, por exemplo, que trabalhavam numa cidade-província e deixaram de poder trabalhar nos seus tribunais, tiveram de se deslocar para um centro urbano. Ora, esta situação, é uma questão que se coloca em termos absurdos. Nada justificava este tipo de gestão. Nunca houve um problema de um tribunal de uma cidade menor ter menos condições para julgar que outro tribunal de uma cidade maior. Por exemplo, eu recordo-me que, no tribunal de Barcelos, decidiu-se, e muito bem, aquele caso dos dois namorados que ganharam o Euromilhões. E foi impecavelmente resolvido sem nenhuma ação superior a 50 mil euros. Hoje em dia, por exemplo, se um cidadão for atropelado na Figueira da Foz e tiver danos superiores, tem que ir a Coimbra. Ninguém percebe porquê. Portanto, porque é que os tribunais hão de estar colocados apenas nos grandes centros urbanos e não hão de estar junto das populações, onde devem estar?
Mais um prego no caixão no caminho da lentidão da justiça?
Sim, isso também é algo que não me parece que tenha qualquer vantagem neste âmbito e parece-me muito pouco adequado. Nós estamos a assistir a situações em que, por exemplo, aparece um programa do Governo, onde nós temos os julgados de paz e os meios alternativos de resolução de litígios e até para decidir a regulação do poder paternal. Isto é, de facto, algo que me deixe absolutamente perplexo porque os julgados de paz não são tribunais judiciais.
Sim, mas compreende-se que sejam em pequenas questões, talvez a regulação do poder paternal não…
Não só do poder paternal mas a maior parte das questões, que muitas vezes envolvem questões de menores. E, neste âmbito, eu acho que o que devia voltar a ocorrer é que o que nós já tivemos. Há tantas reformas relativamente ao tempo da Troika que foram anuladas e ninguém se preocupou com a reforma judiciária.
Portanto, na sua opinião devia ser mesmo revertido, voltar ao que estava.
Deveria ser totalmente revertido.
Mas isso parece-me totalmente esquecido por este Governo.
Aliás, na altura, quando apareceu esta proposta, lembro-me que o atual Primeiro-ministro que, na altura, era comentador, apoiou o encerramento dos tribunais. Mas, como disse, privilegiar o interior, não passa, precisamente, pela regionalização, passa, de facto, por devolver às populações os serviços públicos de que foram privados. E os tribunais são serviços públicos e, a meu ver, é um desperdício dos recursos do Estado que não se pode imaginar. Nós temos tribunais lindíssimos. Estou-me a recordar o tribunal da São João da Pesqueira que é um edifício magnífico e que está hoje completamente encerrado e ao abandono quando devia estar a funcionar para ser justiça em benefício para as populações. Eu acho que isto é um desperdício dos recursos do Estado porque nós não estamos a dizer que vamos construir um novo aeroporto ou que vamos gastar milhões e milhões. Não, nós temos um parque judicial que já existe, que está em perfeitas condições e que está a ser deixado degradar porque, pura e simplesmente, se inventou esta organização judiciária.
Ainda se está para saber qual é que foi o encaixe financeiro positivo nesta proposta.
Em que é que a degradação de edifícios e, ainda por cima, bastante importantes como os tribunais, privilegia o Estado? Eu acho que não.
Porque é que não concorda com os tribunais especializados?
A minha primeira justificação é a Constituição. A Constituição diz, expressamente, no artigo 219º, nº 4, que não podem haver tribunais com competências exclusivas para julgar apenas um tipo de crimes porque, precisamente, nós tivemos a experiência dos tribunais plenários.
Mas toda a gente faz essa interpretação da Constituição?
Eu faço. Eu já tenho visto tentativas de tornear a Constituição, mas eu acho que há regras, que as leis podem ser interpretadas, mas não podem ser ignoradas. E, de facto, quando se proíbe um tribunal especial, proíbe-se um tribunal especial. Não se pode dizer “Não, não vamos chamar de tribunal, vamos chamar juízos”, ou seja, neste caso é a mesma coisa. Teríamos um juiz com competências exclusivas no julgamento de certos tipos de crimes. E isso é, a meu ver, preocupante, porque pode não dar uma garantia adequada de imparcialidade relativamente a um juiz porque um juiz que esteja exclusivamente a julgar certo tipo de crime, pode não ter a mesma abertura que os outros juízes e os exemplos que existem noutros países com tribunais especiais são, a meu ver, negativos.
Mas acha que, por outro lado, o facto de o magistrado estar a julgar sempre o mesmo tipo de crime e, no fundo, especializar-se em determinada área, não pode ser uma mais valia para a decisão judicial?
Não, antes pelo contrário, é uma menos valia porque o que se sucede, neste caso, é que o magistrado deve ser absolutamente imparcial e ali está a ser orientado para tratar apenas de um certo tipo de crime relativamente a esta situação. Por isso é que eu acho positivo que os magistrados que estão a julgar um certo processo criminal tratem de todo o tipo de crime que se coloquem neste âmbito. Por outro lado, essa especialização não garante maiores condenações, ao contrário do que se julga, ou seja, não é por criarmos um tribunal especial para a corrupção que vamos ter mais investigações de corrupção ou mais questões de corrupções, não. O que vai acontecer é que vamos ter é um juiz que só está a despachar casos de corrupção, sejam muitos ou poucos que lhe apareçam quanto a este âmbito. Nada disto vai trazer qualquer vantagem.
Mas, por exemplo, temos uma Operação Marquês, um caso complexo, mesmo a nível de volume. Algumas críticas no próprio seio do Ministério Público é que não existem magistrados especializados em questões muito técnicas…
Mas isso nunca pode existir. A regra que existe no Direito é sempre que o juiz é o perito dos peritos, portanto, são feitas provas e o juiz depois decide com base nessas indicações. Nós não podemos ter os juízes pura e simplesmente orientados para uma vertente que, a meu ver, pode funcionar como prejuízo na sua independência.
Portanto, acha que, no fundo, isso acaba por facilitar mais condenações? E que, dessa forma, pode não se fazer a justiça?
Exatamente, porque, repare, condenações nos tribunais plenários nós temos imensas… Eu não sou nada favorável a esse tipo de sistema, portanto, ou seja, eu acho que nós temos que ter um juiz para poder julgar na área penal. Ele já se especializa em processo criminal, mas o processo criminal não é apenas um tipo de crime, é também todas as situações que existem e, precisamente por esse motivo é que me parece que proibindo a Constituição, não vejo como é que isso se pode fazer sem alterações à Constituição. Eu não as defendo, mas também me parece que, a meu ver, ignorarmos a Constituição, acho que é um passo muito arriscado. E digo mais que isso, se nós corremos um sério risco se enveredamos medidas dessas, que acabemos por ter um efeito contraproducente. Imagine-se, por exemplo, que criamos um tribunal especial para a corrupção, e tínhamos, a seguir, uma série de condenações por corrupção e, depois, por acaso, alguém achava num recurso que aquelas condenações eram inconstitucionais porque um tribunal especializado é proibido na constituição, o resultado daquilo é que, depois, as condenações caíam em consequência da incompetência do próprio tribunal. Eu acho que, no fundo, se se quer, de facto, avançar contra a corrupção, nós não podemos avançar com medidas inconstitucionais. Porque corremos o risco de ter um efeito ainda mais contraproducente.
Se se quer, de facto, avançar contra a corrupção, nós não podemos avançar com medidas inconstitucionais. Porque corremos o risco de ter um efeito ainda mais contraproducente.
Em relação às eleições, o voto eletrónico, acha que funcionou bem?
Houve uma pequena situação desagradável, relativamente ao Conselho de Deontologia do Porto que, de facto, não devia ter acontecido. Agora, eu devo dizer que, fora esse episódio, pareceu-me que funcionou de forma adequada. E a maior parte dos advogados ficou satisfeita com o voto eletrónico. Eu, devo dizer, pessoalmente estive contra o voto eletrónico na assembleia inicial porque me pareceu que estávamos a dar um passo bastante rápido, eu teria preferido que ele tivesse iniciado, a princípio, num dos Conselhos Regionais, como teste, para depois se avançar então para o sistema geral. Agora devo dizer que a opinião geral considera que foi um enorme sucesso.
Portanto, é para manter?
Sim, eu não tenho neste momento intenção nenhuma de fazer alteração disso, até porque muitas outras Ordens estão, neste momento, a protestar por não terem voto eletrónico. Já temos visto várias reações a dizer que na Ordem dos Advogados que, de facto, correu bem. Antigamente para votar, nós tínhamos de ter inúmeros envelopes, tínhamos de fechar os envelopes todos, colocá-los num registo que tinha de ser feito no reconhecimento das assinaturas para a própria situação, depois eram abertos os envelopes lá. Hoje em dia, apenas com o computador, consegue-se fazer na mesma.
Como é que avalia esta campanha eleitoral? Esperava ganhar esta eleição?
Sim, acho que quando toda a gente se candidata esperam ganhar. E, a partir do momento em que passei à segunda ronda, fiquei convencido que ia ganhar. Porque, de facto, havia a sensação que havia um grande desagrado com o atual bastonário. Os advogados queriam uma mudança.
O que é que acha que o diferencia, pergunto-lhe objetivamente, em relação a Guilherme Figueiredo, não por ser o anterior, mas porque foi o seu opositor na segunda volta.
Nós tínhamos uma posição bastante diferente relativamente quer à situação da Ordem, quer à própria intervenção que ele tinha. O Dr. Guilherme Figueiredo optou em fazer o mandato sem grande intervenção externa, focado pura e simplesmente nas questões internas da Ordem e com esse aspeto acabou por, a meu ver, não ser positivo.
Foi um bastonário muito ausente do palco mediático, comparando com os anteriores…
Sim, isso notou-se um pouco. E os advogados estranharam.
Embora o papel do bastonário não seja feito em frente às câmaras.
Não, obviamente que um bastonário tem de ter uma intervenção pública, uma vez que representa os advogados e, se não tiver essa intervenção pública, não está a representar a posição dos advogados. Muitas questões ocorreram nestes 3 anos e não se ouviu a Ordem e teria sido importante que tivesse sido ouvida.
Um bastonário tem de ter uma intervenção pública, uma vez que representa os advogados e, se não tiver essa intervenção pública, não está a representar a posição dos advogados.
Nomeadamente a Caixa de Previdência…
E não apenas: outras questões, das custas e tudo o resto. A Ordem ouvia-se pouco e depois diziam que estavam em negociações com o Governo, mas depois também não se via muito o resultado dessas negociações. Este foi um fator que, a meu ver, pesou. Portanto, ou seja, no fundo, como disse, a Ordem tem de ter, de facto, uma certa visibilidade. E, aliás, isso todas as Ordens têm.
Acha que de José Miguel Júdice, sendo ele fundador do maior escritório português, era visto um pouco como o representante dos advogados das grandes sociedades? Depois tivemos Marinho Pinto, um registo totalmente oposto, a Elina Fraga idem aspas aspas, acha que Menezes Leitão vai ser o bastonário dos grandes escritórios, da prática individual, ou simplesmente de todos os advogados?
Não, inclusivamente, nós temos advogados de sociedades no nosso Conselho Geral, pretendemos também trabalhar com as grandes sociedades de advogados, que representam hoje uma importante parte da advocacia.
Mas, apesar de tudo, é uma parte mais irrisória do que a outra, não é?
Não, não é irrisória. Já tem uma dimensão bastante importante. Pretendemos também contactar com advogados de empresa, que também é uma realidade que tem sido bastante esquecida neste âmbito e, pretendemos contactar, também, com advogados que estão em prática individual.
Também são os que têm mais dificuldades, não é?
São os que têm mais dificuldades, efetivamente. E, por isso, a Ordem estará especialmente atenta a todos esses casos. Por isso, não vamos discriminar ninguém, pretendo ser o bastonário de todos os advogados.
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