Ventilar as empresas, sem esquecer os cuidados primários
Sem um regime de recuperação de empresas forte e de largo espectro, até poderemos salvar as empresas que precisam de cuidados intensivos; mas deixaremos morrer um número incontável de empresas.
A última reunião do Conselho de Ministros veio clarificar o alcance das medidas de apoio às empresas adotadas pelo governo. Isso não significa incompetência ou incúria no desenho inicial. Significa, apenas, que o governo não é imune ao quadro de incerteza que vivemos e, necessariamente, tem de fazer ajustes ao longo do caminho.
Em traços gerais, mantém três grandes prioridades: a manutenção de postos de trabalho, com o que se convencionou chamar “lay off” simplificado; a injeção de capital diretamente nas empresas, através de linhas de financiamento; e o congelamento de vários pagamentos, através da suspensão de obrigações fiscais, da moratória nos bancos ou das alterações ao arrendamento, ainda por concretizar.
No essencial, são medidas desenhadas para acudir empresas que, de uma forma ou de outra, sofreram um impacto direto com a crise pandémica. A noção de crise empresarial para acesso ao lay off aponta nesse sentido; a necessidade de certificar a ausência de dívidas ao Estado ou à banca, se superiores a 90 dias, no caso das moratórias, expressa idêntica filosofia. Compreende-se que assim seja – todas as atenções devem estar voltadas para os que, inesperadamente, foram atingidos por esta calamidade.
O que falta considerar neste modelo é que, antes de março, a situação das empresas em Portugal já não era famosa. Quem lida diariamente com empresários, bancos ou tribunais, já tinha uma noção clara das dificuldades que o tecido empresarial atravessava, com o aumento dos incumprimentos bancários e a persistência de uma endémica escassez de capitais próprios.
Esse cenário implica considerar que um número ainda incerto de empresas nacionais poderá ver agravada a sua situação financeira – ainda que não de forma abrupta -, sem que encontre, no atual modelo, soluções consistentes para superar a crise, que, mais mês, menos mês, também lhes tocará. Deverão estas empresas ter também acesso aos ventiladores ou ao suporte básico de vida, para usar a metáfora avançada pelo ministro da economia? Provavelmente não. Mas também não lhes pode ser vedado acesso aos cuidados de saúde primários.
Num cenário de crise – pelo menos, do tipo de crise que nos habituámos a conhecer – os cuidados de saúde primários são os processos de recuperação, onde se enquadram instrumentos de natureza judicial e extrajudicial. Atualmente, em Portugal, com dois à cabeça: o regime extrajudicial de recuperação de empresas (RERE) e o processo especial de revitalização (PER).
Ora, para já, as portas destes instrumentos estão, simplesmente, fechadas. Porque os prazos judiciais se suspenderam, mesmo nos processos urgentes; também porque os requisitos de acesso ao PER ou ao RERE (pensados para um cenário de crescimento económico!) estão claramente desajustados. Mas são estes instrumentos que, normalmente, permitem às empresas o chamado período de stand still (suspensão de pagamentos); a continuidade de laboração (com manutenção de postos de trabalho); e a negociação, num curto de prazo, de um plano ou acordo de recuperação.
Na Alemanha e em Espanha, aos primeiros sinais de alarme foram feitas alterações ao regime de insolvência, como a suspensão do dever de apresentação à insolvência (para defender os administradores da condenação em insolvência culposa); a introdução de limitações à execução de garantias por parte dos credores; e, também, um reforço de segurança e proteção aos que financiem as empresas em processo de recuperação.
Antes mesmo do excecional contexto que vivemos, já decorria em todos os Estados membros o processo de transposição da nova diretiva comunitária em matéria de reestruturação preventiva, com uma clara primazia à recuperação, que contrasta com o modelo de liquidação que vigora entre nós, pelo menos, desde o “fim da crise”.
Puxar por estes instrumentos permitirá combater o abuso das medidas excecionais aprovadas, por parte de quem, à falta de alternativa, recorra à fraude para se servir delas, prejudicando quem realmente precisa.
Por outro lado, sem um regime de recuperação de empresas forte e de largo espectro, até poderemos salvar as empresas que precisam de cuidados intensivos; mas deixaremos morrer, certamente, um número incontável de empresas com sintomas (ainda) ligeiros.
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