Estado tem de ter boa fé no reequilíbrio das concessionárias
Desde que foi decretado o estado de emergência, o tráfego nas autoestradas nacionais caiu cerca de 75%. Advogados explicam ao ECO o que está aqui em causa e que Estado tem de estar de 'boa fé'.
Uma das consequências do surto do novo coronavírus — que já provocou a morte a 629 portugueses — está a ser sentidas nas autoestradas nacionais. Nas últimas semanas tem havido uma quebra acentuada no tráfego das autoestradas. O que, para as concessionárias, significa uma acentuada perda de receita. Contudo, há uma cláusula na generalidade dos contratos que prevê uma compensação por parte do Estado, garantindo a reposição do equilíbrio financeiro dos contratos por causa dessa quebra. Mas que não é linear. Mais ainda quando o Presidente da República já fez saber que poderá haver uma limitação do direito à reposição desse equilíbrio financeiro de concessões “em virtude de uma quebra na respetiva utilização decorrente das medidas adotadas no quadro do estado de emergência”. Mas que terá sempre de ser aprovada pelo Governo. No novo decreto conhecido na quinta-feira, Marcelo já fez saber que essa limitação pode ser também em relação a prestação de serviços.
Perante este cenário, as concessionárias e subconcessionárias das autoestradas já estão a notificar o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) e a Infraestruturas de Portugal (IP), para que não seja alegado incumprimento por verem dificultada ou impedida a resposta a algumas das suas obrigações.
“Essa permissão não opera por si só: é necessário que, querendo, o Governo a concretize, regulando os termos em que essa limitação ocorre. Até ao momento o Governo não regulamentou esta limitação, pelo que ela por agora não existe no nosso ordenamento”, segundo explicou a advogada Débora Melo Fernandes, advogada de Direito Público na Gama Glória.
Mas então, o Estado é ou não é responsável pelas repercussões económicas das suas decisões neste contexto? “É difícil responder porque cada contrato é um contrato e terá que se analisar detalhadamente o clausulado de cada um, até porque estamos a lidar com algumas das questões mais complexas do direito administrativo. Em todo o caso, diria que muito dificilmente o Estado deixará de responder pelas repercussões das suas decisões. Note-se que não estará em causa a legalidade ou ilegalidade da atuação do Estado, mas sim o facto de estas decisões se repercutirem diretamente e muito negativamente em vários contratos de concessão, os quais deverão ser respeitados”, explica o sócio da PLMJ Diogo Duarte Campos.
Se o Governo quiser regulamentar essa limitação, pode fazê-lo de várias formas, impondo nomeadamente que o reequilíbrio financeiro de todas as concessões se faça “por via de uma prorrogação do prazo contratual, que seria a forma que menos oneraria o erário público, ou através de uma revisão das tarifas cobradas pelo concessionário“, explica a advogada da Gama Glória. Este foi aliás o modelo seguido em Espanha relativamente ao reequilíbrio financeiro dos contratos de concessão.
A advogada alerta ainda que esta limitação do direito não poderá significar “a eliminação do mesmo (ainda que temporária) e terá necessariamente de respeitar os princípios constitucionais da proporcionalidade e da boa-fé, sob pena de estarmos perante uma medida ou lei inconstitucional, semelhante a uma expropriação, expondo o Estado português a uma forte reação judicial. A eventual regulamentação do Decreto do Presidente da República neste ponto terá de ser bastante cautelosa e equilibrada, de modo a compatibilizar da forma mais harmoniosa possível os vários interesses (necessariamente opostos) em presença”.
O sócio de direito público esclarece ainda que a existência de um evento de força maior é “inequívoco”. Acrescentando ainda que “não se pode legislar no sentido de dizer que apesar de haver uma clara alteração de circunstâncias a mesma não tem repercussões. Admito perfeitamente que se pretenda suspender durante este período as negociações, mas não que se limite um direito contratual e legal. Havendo uma alteração de circunstâncias, as consequências têm necessariamente que ser as que constam da lei e dos contratos previamente aprovados. O que é totalmente ilegítimo é, após haver uma alteração das circunstâncias, mudar-se a lei sobre as respetivas consequências”.
“A figura do “caso de força maior” é invocável durante toda a vigência do contrato, mas sujeito, naturalmente, às disposições legais e contratuais aplicáveis”, sublinha André Miranda, advogado e sócio da Pinto Ribeiro Advogados. Que, porém, acrescenta: “o direito ao reequilíbrio financeiro pode ser exigido pelos concessionários em caso de verificação de uma causa de força maior, mas isso não quer dizer que o mesmo seja reconhecível automaticamente. Refira-se, aliás, que o regime das PPP prevê que o risco de insustentabilidade financeira por causa de uma situação de força maior deve ser, tanto quanto possível, transferido para o parceiro privado. Daqui resulta que a situação de força maior pode legitimar o incumprimentos das obrigações contratuais pelo concessionário, mas que, tendencialmente, o seu impacto financeiro deverá ser assumido por este. Mas tudo isto está sujeito a negociação entre as partes”.
Desde que foi decretado estado de emergência, o tráfego nas autoestradas nacionais caiu cerca de 75%. O que levou à já referida notificação à IP e IMT. Notificação essa que, como preveem os diferentes contratos, tem de acontecer neste primeiro momento, para que não seja alegado incumprimento por verem dificultada ou impedida a resposta a algumas das suas obrigações. E, mais tarde, para reclamarem do Estado a reposição do equilíbrio financeiro dos contratos devido à queda do tráfego, e consequentemente das receitas, provocada pelo surto pandémico e pelas medidas de emergência determinadas pelo Governo.
O universo dos contratos de concessão é bastante vasto. Qualquer contrato de concessão poderá ser afetado. E se é verdade que esta questão tem sido mediaticamente associada às concessões rodoviárias, é bom lembrar que estas não esgotam o universo dos contratos de concessão.
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