Frugais contra endividados. Acordo na Europa contra a crise não é para já

Os "frugais" voltam a entrar em colisão com os países mais endividados, tanto que Costa já antecipa que não haverá acordo. A batata quente do plano de recuperação passa para a Comissão Europeia.

Os líderes da União Europeia reúnem-se esta quinta-feira para a quarta videoconferência onde vão discutir a pandemia. A reunião servirá também para coordenar a resposta epidemiológica, nomeadamente a estratégia de normalização, mas o foco está na vertente económica. O Conselho Europeu deverá dar luz verde ao que foi aprovado no Eurogrupo para o imediato, mas as divergências sobre o plano económico de recuperação podem impedir um acordo.

Isso mesmo foi previsto por António Costa no debate preparatório do Conselho Europeu esta quarta-feira no Parlamento, em linha com o que está na carta enviada por Charles Michel aos líderes europeus: “Eu diria que amanhã não haverá uma decisão final, a não ser mandatar a Comissão Europeia para trabalhar com sentido de urgência num plano de reconstrução”, antecipou o primeiro-ministro, referindo que também será dada luz verde ao que foi acordado no Eurogrupo.

Os 27 Estados-membros até podem concordar que é preciso um Fundo Europeu de Recuperação, que deve estar ligado ao orçamento europeu, através de endividamento da Comissão Europeia com base em garantias dos Estados, e que deva ter como prioridade as bandeiras europeias. Contudo, as divergências são marcadas quando se fala no método de redistribuição, nomeadamente serão empréstimos ou subvenções. “Ao nível do Conselho Europeu, temos andado mal. O consenso tem sido difícil de se fazer”, admitiu António Costa.

Em suma: de um lado, os “frugais”, de onde se destaca a Holanda; do outro lado, os países mais endividados, como Itália, Portugal e Espanha. Numa posição intermédia está Alemanha, que tende a inclinar-se para os frugais mas com uma atitude construtiva, e França, que tende a estar ao lado dos países mais endividados. Há propostas de todos os tipos e para todos os gostos, mas o consenso parece estar a formar-se à volta de uma resposta centrada na Comissão Europeia.

Afastadas “coronabonds” que incendiaram o debate cheio de estereótipos entre Norte e Sul da Europa, neste momento tanto as declarações de Costa como a carta de Michel sinalizam que já há consenso sobre como financiar o fundo — através do artigo 122 do tratado, o que já aconteceu no passado em doses mais pequenas e é apoiado por Angela Merkel –, sobre qual deverá ser a sua dimensão — já se fala de 1 ou 1,5 biliões de euros (doze zeros, como disse Centeno) –, até as suas prioridades (digital e ambiente) e ainda que estará integrado no próximo Quadro Financeiro Plurianual (QFP 2021-2027) por ser o instrumento mais célere e por não obrigar a mudanças nos tratados europeus que teriam de ser ratificadas a nível nacional.

Porém, os Governos divergem sobre a forma como o dinheiro “novo” chegará aos países. Será através de empréstimos (ou seja, dívida para os Estados) ou subvenções (como já acontece em algumas partes do orçamento comunitário)? “Esta é a questão central”, assumiu Costa aos deputados, revelando que aqui encontram-se novamente as divisões entre os países que temem ficar sem capacidade de pagar a sua dívida e os países que temem que haja uma excessiva partilha de risco que seja paga pelos seus contribuintes. Além disso, coloca-se a questão: deverá a redistribuição dos fundos beneficiar os países mais afetados pela pandemia ou os que têm mais dificuldades económicas, ou então deve ser equitativa?

Pedindo solidariedade, o Governo português, à semelhança de Itália, tem argumentado que os países que mais beneficiam do mercado europeu único, como é o caso da Holanda, são os que têm mais interesse “racional” e económico em que a recuperação da economia europeia pós-pandemia aconteça em condições equitativas nos diferentes países, que têm diferentes capacidades de resposta. “Ou se mutualiza o esforço da recuperação ou só estaremos cá todos para mutualizar as perdas da recuperação”, disse António Costa.

À esquerda, Sebastian Kurz (Áustria) e Mark Rutte (Holanda). Ao centro, Angela Merkel (Alemanha) e Emmanuel Macron (França). À direita, António Costa (Portugal), Pedro Sánchez (Espanha) e Giuseppe Conte (Itália).

Michel traça roteiro e prioridades

Na carta que enviou aos chefes de Estado a convidar para a reunião, o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, em linha com a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, vincou várias vezes a “urgência” de se chegar a acordo, nomeadamente para dar luz verde ao pacote aprovado pelo Eurogrupo de modo a que este esteja disponível “o mais rapidamente possível”, tendo como referência a data de 1 de junho.

A mesma rapidez é necessária para um acordo sobre o Fundo Europeu de Recuperação, “o qual ainda não foi acordado” no Eurogrupo. “A minha sugestão é que haja acordo para trabalhar no desenvolvimento deste fundo o mais cedo possível”, escreve Michel, assinalando que terá de ter uma “magnitude suficiente” e ser “focado nos setores e nas partes geográficas da Europa mais afetadas”.

Contudo, a própria carta dá a entender que os avanços na reunião desta quinta-feira serão limitados. Charles Michel propõe que os Estados-membros peçam à Comissão Europeia para analisar exatamente quais são as necessidades e, com base nessa informação, que apresente uma proposta em articulação com o Quadro Financeiro Plurianual (QFP, o orçamento europeu). “É fundamental discutir estes assuntos de forma aberta entre nós [Conselho Europeu] e avançar urgentemente de forma a registar progressos”, pede.

Porém, os líderes europeus terão de dar orientações à Comissão Europeia. Anexo à carta, Charles Michel avança com um “roteiro para a recuperação”, articulado com as outras instituições europeias, onde define as prioridades: é preciso evitar que a recuperação seja “assimétrica”, pelo que terá de haver solidariedade com os países com menos capacidade financeira; deverá haver flexibilidade para adaptar o plano no futuro consoante a evolução da pandemia (nomeadamente uma segunda vaga); o respeito pelo Estado de direito “não é negociável”, naquilo que parece ser uma referência a países como a Hungria em que as medidas para conter o vírus abriram a porta a um alegado abuso de poder.

Mas o que fazer, em concreto, com o dinheiro? O presidente do Conselho Europeu propõe que a “transição verde” e a “transformação digital” estejam no centro da recuperação económica, mas acrescenta-lhe uma nova dimensão: a autonomia “estratégica” da Europa na política industrial e um controlo do investimento estrangeiro, um problema colocado a nu pela pandemia. Na prática, Michel propõe que o fundo invista para que os países europeus tenham capacidade de produzir bens críticos, como os de saúde, recuperação cadeias de valor e reduzir a dependência “excessiva” do exterior.

“O novo QFP deveria ser acordado o mais rapidamente possível para evitar atrasos no investimento essencial e devem ser encontradas soluções para assegurar que os recursos possam ser direcionados para onde são necessários assim que possível”, lê-se no documento que será analisado pelos líderes europeus. Este roteiro será acompanhado por um futuro plano de ação.

Negociações vão continuar após Conselho Europeu

Nas últimas semanas têm sido várias as propostas dos países. Recentemente, Espanha propôs um fundo de recuperação de até 1,5 biliões de euros assentes no orçamento comunitário, um valor que fica acima do 1 bilião admitido pelo comissário europeu para a economia, Paolo Gentiloni, à semelhança de Ursula Von der Leyen. Esse plano seria financiado por dívida perpétua da União Europeia, que não seria contabilizada nos países de forma individual, e poderia vir a ser paga através dos recursos próprios da UE, nomeadamente novos impostos como os do digital ou os da transição verde.

Já Itália parece que irá tentar novamente forçar a ideia de mutualização da dívida com a emissão de “coronabonds”. O primeiro-ministro, Giuseppe Conte, disse mesmo que não irá assinar um “compromisso mínimo”, antecipando que irá bloquear um comunicado do Conselho Europeu que não vá ao encontro dos interesses do país europeu mais afetado pela pandemia. Contudo, esta ideia não deverá ter pernas para andar uma vez que Merkel já a voltou a rejeitar convictamente. Há ainda França que, na verdade, prefere um fundo temporário e que esteja fora do orçamento comunitário, apesar de Bruno Le Maire, ministro das Finanças francês, estar aberto às outras alternativas.

A proposta de colocar a Comissão Europeia e o orçamento comunitário no centro da resposta europeia para o pós-pandemia parece ganhar tração, como descrito no início deste artigo, mas não escapa a críticas. É que o artigo 122 que prevê a cláusula de solidariedade também refere que esta ajuda extraordinária acontece no curto prazo pelo que um plano de recuperação no longo prazo poderá ter aqui problemas, recorda o Politico. O Luxemburgo, apesar de não se opor, teme que uma solução ligada ao orçamento comunitário demore demasiado tempo uma vez que as negociações do QFP são das mais complicadas a nível europeu.

Também não é de excluir uma “luta” de argumentos quanto às garantias que os Estados terão de dar para que a Comissão Europeia possa endividar-se e alavancar o dinheiro a nível europeu para depois distribuir novamente a nível nacional. O tema das garantias nacionais já está a criar polémica no SURE, fundo de apoio ao emprego proposto pela Comissão Europeia, com vários países do Norte da Europa descontentes com o desenho financeiro do programa.

Há ainda a proposta do presidente do Eurogrupo que esta terça-feira, numa audição extraordinária no Parlamento Europeu, ressuscitou o BICC, no qual trabalhou nos últimos dois anos. Mário Centeno recordou que este instrumento orçamental para a convergência e competitividade pode fazer parte do plano de recuperação, desde que com uma dimensão maior, uma vez que já estava previsto que integrasse o próximo QFP. Para Centeno, que como presidente do Eurogrupo também está no centro da discussão, “podemos vir a ter um misto de mecanismos de apoio, em parte financiados por empréstimos com alavancagem e em parte financiados por dívida comum”.

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