Covid-19: o elemento que faltava para a transição tecnológica?

Face à pandemia Covid-19, o setor da advocacia tornou-se mais digital do que nunca. Mas será que a transição tecnológica veio para ficar? Ou será retomado o modo de trabalho pré-covid e à distância?

Com a pandemia Covid-19 a impor que os profissionais permanecessem em casa e que daí executassem o seu trabalho, o processo de modernização tecnológica no setor jurídico acelerou, uma vez que, segundo defendeu João Miranda de Sousa, sócio da Garrigues, já estava a ter lugar na advocacia.

A sensação é que, em apenas alguns meses, avançámos vários anos. Agora temos de fazer um grande esforço de adaptação a este ritmo de mudança acelerado. Para isso, precisamos de ser mais rápidos e ter uma mentalidade ainda mais flexível”, refere o sócio da Garrigues em Portugal.

João Amaral, associado coordenador da Miranda & Associados, admite que a pandemia serviu de “catalisador” para formas mais colaborativas de trabalho. “Este período atípico poderá revelar-se útil para projetos futuros de implementação tecnológica mais arrojados que talvez fossem mais difíceis de promover e implementar antes da pandemia, nomeadamente no que diz respeito a métodos mais flexíveis de trabalho”, acrescenta.

João Amaral, associado coordenador e responsável pela coordenação da área de tecnologia da Miranda & Associados

Também na Caiado Guerreiro a pandemia veio acelerar a modernização tecnológica que já estava em curso na firma. “A continua digitalização do setor é uma realidade que veio para ficar, sendo previsível que num futuro próximo observemos o aprofundar da utilização tecnológica em novas vertentes”, refere João Caiado Guerreio, managing partner da firma.

Mas a aceleração da modernização neste setor não significa que este esteja preparado para mudanças.

Se considerarmos o setor no seu todo, cremos que é prematuro defender que está preparado para ficar mais tecnológico, pois associada à implementação de novas tecnologias existe a necessidade de educação, formação, estudo e, essencialmente um fortíssimo investimento financeiro que, admitimos, poderá não estar num futuro próximo ao alcance de todos os advogados, se bem que uma parte das sociedades de advogados em Portugal já se encontra nesse processo”, explica Nuno Pena, sócio da CMS Rui Pena & Arnaut.

Apesar da imagem “antiquada” que está associada à advocacia, António Soares, managing partner da Linklaters, defende que o setor não vive à margem das evoluções que as sociedades vão tendo, e que já existe uma preocupação com a inteligência artificial e a tecnologia de blockchain na execução de contratos.

“O estar a par dos desenvolvimentos tecnológicos e a adoção de novos métodos de trabalho e de prestação de serviços a clientes são essenciais para melhorar a qualidade dos nossos serviços e para ter os ganhos de eficiência que nos são requeridos”, nota António Soares.

António Soares, managing partner da Linklaters

O sócio da Garrigues considera por outro lado que o setor já estava preparado para uma modernização e que a pandemia só demonstrou esta realidade, pelo menos os grandes escritórios.

Todas as sociedades entrevistadas garantiram à Advocatus que a transformação tecnológica é uma prioridade e que não é um objetivo recente, mas antes algo que pugnam há alguns anos.

“A constante evolução tecnológica vai apresentando novos desafios e oportunidades para a firma e para os seus clientes, e assumimos como nosso dever mantermo-nos atualizados e adotar, na medida do possível e de forma sustentada, todas as ferramentas que nos permitam oferecer o melhor serviço possível aos nossos clientes”, assegura o associado coordenador da Miranda.

António Soares, managing partner da Linklaters, vai mais longe e garante que todos aqueles que não querem “ficar para trás” têm de priorizar a transformação tecnológica. À Advocatus, o advogado diz que a firma não quer “perder o comboio” da inovação e estão disponíveis para abraçar novas ferramentas.

“Quem, nos anos oitenta do século passado, não quis de imediato abraçar o desafio de aprender a lidar com computadores viu-se forçado a fazê-lo mais tarde e com maiores custos de aprendizagem”, conta o managing partner da Linklaters.

Modernização pode aumentar “fosso entre pequenas e grandes sociedades”

Com a transição digital no setor a impor-se perante a pandemia Covid-19, vários são os benefícios apontados pelas sociedades, que são transversais aos outros setores e indústrias.

“A comodidade, a maximização da eficiência, rapidez, imediatismo e menor custo dos novos meios de comunicação são claros benefícios”, nota João Caiado Guerreiro, managing partner da Caiado Guerreiro.

João Caiado Guerreiro, managing partner da Caiado Guerreiro

Para Nuno Pena, da CMS, vários são os benefícios, mas destaca a “economia e gestão de tempo” e “flexibilização na realização de diligências,” uma “crescente e eficaz data analytics” e a “promoção da segurança da informação”.

“O advento da tecnologia e a transformação digital ajudam-nos a seguir em frente, a ser melhores. Surgirão novos modelos e serviços na indústria jurídica e será necessário desenvolver diferentes competências. Portanto, o que realmente importa é ter uma equipa talentosa, que contribua todos os dias com novas ideias”, nota João Miranda de Sousa, sócio da Garrigues.

Ainda assim, nem tudo é vantajoso. “Creio que a maior desvantagem decorre de uma redução do número de interações pessoais que se estabelecem, o que pode limitar a criatividade emergente dos ‘brainstormings’ e ser um entrave à adoção de uma cultura comum, que creio que seja mais difícil transmitir através dos meios digitais”, assegura António Soares.

Para João Amaral, a formação dos advogados mais novos terá que ser “forçosamente diferente” e todo o processo e cultura de aprendizagem do setor serão alterados pela adoção de novas ferramentas tecnológicas. Para o advogado, o poder de compra e o nível de investimento em tecnologia pode também contribuir para uma fase de “maior polarização do setor cavando um fosso maior entre pequenas e grandes sociedades”.

“A título individual a maior desvantagem que os advogados poderão sentir será eventualmente uma aparente maior dificuldade em ‘desligar’ e em manter uma maior separação entre a vida pessoal e a vida profissional”, refere o associado coordenador da Miranda.

Nuno Pena assegura que a modernização do setor deverá ser feita de forma pensada e estruturada e deverá ser garantida a implementação de todos os mecanismos de salvaguardar necessários para proteger todos os intervenientes. “O desafio, diria, é assegurar que os novos meios não potenciem uma certa erosão da identidade das organizações”, acrescenta.

Nuno Pena, sócio da CMS Rui Pena & Arnaut

À Advocatus, João Caiado Guerreiro garante que a digitalização não vai colocar em risco a segurança dos dados dos clientes. “A digitalização do setor deve ser acompanhada com as necessárias medidas de segurança para a proteção de dados. Atualmente já existem mecanismos sofisticados na área da cibersegurança implementados no setor que dão garantias. A aposta em novas ferramentas de trabalho digital exige o contrabalançar da implementação de medidas de segurança e proteção”, explica o managing partner da Caiado Guerreiro.

Ainda assim, João Miranda de Sousa admite que essa é uma das principais preocupações das empresas, mas que prestam especial atenção de forma a atuarem de acordo com as melhores práticas internacionais.

“Apesar de existirem já diplomas que visam promover uma maior segurança ao nível dos sistemas de informação para setores essenciais, facto é que ao nível do setor da advocacia não existe um regime próprio que seja aplicável e que promova um maior rigor, cuidado e zelo na implementação de sistemas de informação capazes de proteger verdadeiramente os dados dos clientes e, com isso, promover e assegurar os princípios inerentes à relação entre advogado e cliente”, alerta Nuno Pena, sócio da CMS.

O papel da Ordem e do ministério da Justiça

A Ordem dos Advogados (OA) pode vir a ter um papel essencial no processo de transição digital. Segundo João Caiado Guerreiro, a OA deve procurar ser um agente promotor da modernização, bem como assumir um papel de sensibilização e clarificação das ferramentas existentes.

“A Ordem dos Advogados poderia funcionar, desde logo, como uma divulgadora das novas tecnologias e promover formação nestas matérias. Parcerias entre a OA e as universidades, que não apenas as de direito, e também com empresas tecnológicas, poderiam facilitar o acesso dos advogados às tecnologias de ponta, sendo que a Ordem poderia igualmente desempenhar um papel relevante na adaptação destas ferramentas às necessidades específicas dos advogados e à preparação destes para poderem maximizar o seu potencial de utilização”, nota António Soares, managing partner da Linklaters.

Já Nuno Pena, considera que a OA deve acima de tudo compreender a essencialidade do seu papel e ter consciência que representa um setor heterogéneo, que possui realidades distintas e necessidades contraditórias. “Deverá ter uma voz ativa relativamente aos meios, ferramentas e soluções digitais para que seja respeitado o acesso ao direito, na defesa do Estado de Direito e na promoção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, acrescenta.

Sobre as medidas adotadas pelo ministério da Justiça, face à Covid-19, como os julgamentos virtuais, João Miranda de Sousa acredita que foram um acelerador da transição digital que a Justiça e os tribunais vão ter de fazer.

João Miranda de Sousa, sócio da GarriguesD.R.

Não há eficiência, celeridade e redução de custos sem inovação e modernização tecnológica neste setor. Como em todas as transições, há sempre resistências e inércias, mas não podemos nem devemos voltar para trás, isso seria trágico para a Justiça. Não podemos ter um mundo cada vez mais digital e uma Justiça e tribunais a operar, nalguns aspetos, ainda como se estivéssemos no tempo da Revolução Industrial. Neste contexto, também os advogados vão ter que se preparar e formar para esta transição digital pois o exercício da advocacia tem que acompanhar os novos tempos (digitais) que já estão aí”, explica o sócio da Garrigues.

Por outro lado, o managing partner da Linklaters, considera que o que se passou nos tribunais não foi diferente dos escritórios. “Todos fomos forçados a ir para casa e a continuar a trabalhar a partir daí, com recurso aos meios tecnológicos de que dispúnhamos. Não tenho dúvidas que este forçar do uso das tecnologias induzido pela pandemia de Covid-19 vai mudar a forma de trabalhar e vai implicar o recurso a mais ferramentas digitais”, conta.

Apesar de João Caiado Guerreiro prever que os julgamentos possam regressar ao seu modelo tradicional, ou seja presencial, “não se deve abandonar o ímpeto de procurar utilizar tecnologia para desmaterializar alguns procedimentos no setor”.

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