Ex-diretora de research do BCE Lucrezia Reichlin diz que o novo normal será de forte ação de bancos centrais como está a acontecer na pandemia. Confia na resposta da UE, mas alerta que há riscos.
A Europa está mais bem preparada para responder à pressão económica e financeira gerada pelo coronavírus do que estava na última crise. É esta a convicção da economista italiana e ex-diretora de research do Banco Central Europeu (BCE), Lucrezia Reichlin, que aponta a rapidez e tamanho da ação de banco central e governos europeus como fatores distintivos face a 2008. Mas alerta que o dinheiro da União Europeia ainda precisar de aprovação e, mesmo depois disso, vai demorar a chegar.
Em entrevista ao ECO, Reichlin elogia a nova presidente do BCE, Christine Lagarde, e diz que a autoridade monetária ainda tem espaço para surpreender, nomeadamente financiando diretamente empresas. Defende ainda que não será possível ao banco central deixar de ter uma forte intervenção no mercado financeiro, mas para isso é preciso repensar a relação com a política orçamental.
Vai participar numa conferência da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre dívida e partilha de risco na UE em tempos de pandemia. Qual o impacto que espera do coronavírus? Trata-se de uma nova crise da dívida soberana?
Não vejo necessariamente uma crise da dívida, mas vejo que a pandemia está a ter um impacto devastador no PIB e a questão será se é temporário ou permanente. Ou seja, se terá efeitos duradouros além do próximo trimestre ou dos próximos dois trimestres. Penso que provavelmente vai ter efeitos duradouros e que vamos enfrentar um período de baixo crescimento e de muita transformação setorial.
Nestas circunstâncias, será muito importante o que os governos de todo o mundo, e na Europa, vão fazer para apoiar empresas e famílias. Penso que as finanças públicas vão ficar sob pressão, sem dúvida, mas também que há formas de prevenir os erros do passado. Devemos evitar o que fizemos no passado que foi iniciar a consolidação orçamental demasiado cedo, durante um período de condições económicas ainda muito fracas. Desta vez, os europeus conseguiram erguer um pacote melhor de resposta à crise, tanto do lado da política monetária como da política orçamental. Portanto, há razões para estar mais otimista. O que não significa que não haja riscos.
Há países que vão aumentar a dívida para mais de 100% do PIB. No caso de Portugal, a projeção é de um recorde de 134,4%. Nestes níveis pode haver sustentabilidade das finanças públicas?
Sustentabilidade depende de vários fatores. Em particular, depende da relação do ritmo ao qual os portugueses se endividam, ou seja de aumento da dívida pública, e o ritmo de crescimento da economia. É muito importante manter a primeira abaixo da segunda. Antes da pandemia, era o caso e havia um ambiente muito benigno de taxas de juro. O futuro vai depender da combinação entre política monetária e orçamental e do que ela conseguir. O que é preciso é que as taxas de juro se mantenham baixas por muito tempo e, idealmente, com um pouco de inflação. É possível conseguir com a combinação correta entre política monetária e orçamental.
É esse o seu cenário base? É isso que está a ver acontecer?
Penso que as taxas de juro vão estar baixas durante muito tempo e as taxas reais também… Mas há que ter em conta as várias condicionantes. A dívida de países como Portugal, mas também do meu país — Itália –, são vulneráveis à volatilidade do prémio de risco porque está relacionada com a confiança do mercado em que Portugal ou Itália continuarão a ter acesso ao mercado. Em 2011 e 2012, houve uma crise da dívida porque a resposta política não chegou a tempo. Desta vez, penso que tendo em conta o tipo de política que o BCE pôs em curso, há razões para estar confiante. As taxas de juro vão manter-se baixas com a ajuda do programa compra de ativos.
Claro que o fundo de recuperação da UE não é um game changer completo porque este dinheiro só vai chegar — com sorte — em 2021 e possivelmente até depois. E ainda teremos de passar por um processo de aprovação muito complexo.
Antes de falarmos da resposta do BCE, queria perguntar-lhe sobre o fundo de recuperação da União Europeia. Espera que a proposta da Comissão Europeia seja aprovada? Será suficiente?
As negociações vão ser difíceis… Alguma coisa certamente será feita. Mas há negociações sobre o tamanho e a forma do programa, se serão empréstimos ou subvenções. Há muitos critérios a decidir. É uma questão complexa a muitas dimensões. Mas, de qualquer forma, mesmo que os países não aceitem a forma como a Comissão propôs o fundo, penso que algo na mesma lógica acabará por ser feito. Penso que há muita boa vontade neste momento entre os países da UE, para mostrar que a Europa, desta vez, é capaz de responder de forma apropriada.
Claro que o fundo de recuperação não é um game changer completo porque este dinheiro só vai chegar — com sorte — em 2021 e possivelmente até depois. E ainda teremos de passar por um processo de aprovação muito complexo: requer não só unanimidade de todos os Estados-membros, mas também a aprovação de cada um dos Parlamentos nacionais e do Parlamento Europeu.
As pessoas não vão sentir logo o dinheiro no bolso. Para isso há outras ferramentas, como o programa SURE (Support to mitigate Unemployment Risks in an Emergency) contra o desemprego ou a linha para despesas específicas de saúde. Mas o tamanho desses programas é muito mais pequeno, portanto, penso que o BCE vai ter de desempenhar um grande papel nos próximos anos.
Se as pessoas não vão sentir o dinheiro a chegar já, então quando?
O fundo de recuperação não está desenhado para esta fase da pandemia. Está desenhado para a recuperação. Podemos esperar que haja dinheiro em 2021 ou 2022. Mas não é algo que vá responder a uma emergência. Para isso, há outras ferramentas, principalmente os programas a nível nacional.
O BCE já ajustou o tamanho do pacote e prolongou o horizonte temporal em seis meses. Estão prontos a agir. As compras diretas e o financiamento direto, sem passar pelo sistema financeiro, são definitivamente o próximo passo da intervenção do BCE.
Quanto ao BCE, como avalia a atuação da nova presidente do BCE, Christine Lagarde?
Lagarde tem provado ser muito eficiente. O programa é bastante impressionante e conseguiu trazer alguma inovação. Não é apenas a compra de dívida soberana e obrigações de bancos. É um programa muito complexo. Tem empréstimos especiais para os bancos e uma política de colaterais bastante generosa, por exemplo. E tem conseguido comunicar com o mercado que a compra de ativos será feita de forma flexível portanto sem necessariamente respeitar a chave de capital, mas possivelmente comprando maior percentagem de países que estão a enfrentar desafios maiores. A flexibilidade e prontidão são muito positivas no que o BCE tem feito até agora.
Como é que compara com outros bancos centrais, em especial a Reserva Federal norte-americana (Fed)?
Se olharmos somente para o tamanho da folha de balanço, o aumento do quantitative easing (QE) da Fed foi superior, mas isso não é necessariamente uma base de comparação porque os Estados Unidos têm um mercado financeiro muito diferente. Tenho a certeza que o BCE vai fazer tudo o que seja preciso, portanto não acho que tenhamos de comparar em termos de tamanho da folha de balanço.
Mas a Fed anunciou que retirou os limites à compra dívida pública e privada. É algo que o BCE pode também fazer?
Bem, sim… O BCE já ajustou o tamanho do pacote e prolongou o horizonte temporal em seis meses. A comunicação é que irão ajustar a política consoante a economia. Portanto, estão prontos a agir.
Acho que não há forma de voltar atrás para uma situação em que os centrais bancos perdem peso nos mercados financeiros. Este é o novo normal. Claro que tem consequências na forma como pensamos na política monetária e na forma como esta se relaciona com a política orçamental e financeira.
O BCE ainda tem margem para conseguir surpreender?
Penso que poderá haver outras ferramentas. Por exemplo, o BCE não fez empréstimos diretos a pequenas e médias empresas (PME) como a Fed está a fazer. É algo que seria difícil de implementar no BCE, e haveria com certeza dúvidas sobre a distribuição entre países… Mas as compras diretas e o financiamento direto, sem passar pelo sistema financeiro, são definitivamente o próximo passo da intervenção do BCE.
Como é que seria possível que o BCE adotasse medidas de financiamento direto a Estados e empresas sem quebrar os tratados europeus?
Teria de ser através de um mecanismo. Não o poderiam fazer diretamente. A diferença entre os EUA e a Zona Euro é que o mercado de capitais norte-americano é maior portanto é mais fácil. O mercado de dívida privada europeu é mais limitado. Mas políticas direcionadas às PME poderão ser a resposta.
E depois da crise? O BCE alguma vez vai conseguir abandonar os estímulos?
Se o BCE vai conseguir diminuir a folha de balanço nos próximos anos? Penso que será difícil de o fazer. Temos de nos habituar a uma realidade em que os bancos centrais têm folhas de balanço maiores do que costumavam ter. Acho que não há forma de voltar atrás para uma situação em que os centrais bancos perdem peso nos mercados financeiros. Este é o novo normal. Claro que tem consequências na forma como pensamos na política monetária e na forma como esta se relaciona com a política orçamental e financeira.
É uma grande mudança. Depois de 2008, as pessoas pensaram que poderíamos voltar facilmente ao que era antes, mas não é assim. Penso que este é o novo normal. Por um lado, há muito mais instrumentos agora, que os bancos centrais têm usado de forma muito criativa. Mas, por outro, levantam-se questões sobre independência, por exemplo. Na Zona Euro, há um desafio particular porque há vários governos, que definem a política orçamental.
Penso que o impacto da taxa de depósitos negativa na rentabilidade da banca tem sido exagerado. O setor bancário, na Europa, tem de passar por uma grande transformação, em termos de tecnologia e competitividade. Os desafios vêm de muitos outros fatores. O problema não são as taxas negativas.
A intervenção dos bancos centrais levou a questões sobre o desfasamento entre o mercado de capitais e a economia real. Concorda? É algo que veja como problemático?
Se por desfasamento está a dizer que insuflaram os valores dos ativos… Penso que se olharmos para os dados históricos do programa de compra de ativos, as conclusões são mistas. Houve alguns efeitos na economia real, mas não foram enormes. Mas têm havido sim efeitos para as condições financeiras, o sistema bancário e o financiamento dos soberanos. Ainda não é totalmente sólido qual é o efeito destas políticas, nem na Zona Euro nem noutras geografias. Penso que temos de ver o contraditório: o que é que teria acontecido sem essas políticas? É muito difícil… São tempos desafiantes em que se está a aprender à medida que se faz e temos de ter consciência do risco nos mercados financeiros, mas há ferramentas para monitorizar esse risco.
De que forma é que o risco nos mercados financeiros está a ser controlado?
Na Europa, há regulação macro e micro prudencial, que é bastante eficaz e que não havia em 2008. Houve uma construção das capacidades de supervisão da banca, que garante que são cumpridos rácios de capital e de liquidez. Onde deveríamos focar a nossa atenção é nos “bancos-sombra” e no financiamento de neobanks. Mas penso que os reguladores estão mais conscientes dos riscos do que estavam há dez anos.
Mas os bancos queixam-se que a ação do BCE penaliza a rentabilidade…
A taxa de depósitos negativa é uma das mais polémicas políticas do BCE. Os estudos económicos mostram que os bancos mais capitalizados não são afetados porque têm capacidade de repassar a taxa de juro negativa aos clientes. E, além disso, o BCE tem o sistema de escalões, que controla os efeitos na rentabilidade. Portanto, penso que este impacto, na rentabilidade, tem sido exagerado. O setor bancário, na Europa, tem de passar por uma grande transformação em termos de tecnologia e competitividade. Os desafios vêm de muitos outros fatores. O problema não são as taxas negativas.
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