A grande redistribuição
Mais pentelho, menos pentelho, em Portugal vai-se produzir quase tanto este ano como se produziu em 2010. É aqui que deixa de ser importante perceber de economia monetária e basta saber fazer contas.
Hoje irei escrever sobre Política Monetária. Deixo isto claro logo no princípio para que os leitores possam desligar logo o iPad e voltar a colocar os olhos no mar ou na piscina, consoante os gostos e a carteira de cada um. A política monetária é um assunto chato e, provavelmente, a área mais complexa da economia. Tão complexa que a esmagadora maioria dos economistas não percebe nada sobre o tema. Eu acabei o curso entre os melhores do meu ano na melhor faculdade de economia do país [1], num tempo em que os cursos eram de 5 anos (e, portanto, num tempo em que se aprendia alguma coisa), e não percebia nada de Política Monetária. É até algo irónico que a população pense que nos cursos de Economia só se fala de dinheiro quando a coisa que os economistas menos percebem é de dinheiro, como ele é criado, como circula e os efeitos de tudo isso.
Apesar de ser um assunto chato, ninguém perceber muito disso (incluindo eu), é um assunto importante porque podemos estar perante o maior processo de redistribuição inversa de riqueza que já se assistiu na história. Ou seja, sem as pessoas perceberam muito bem como nem porquê, a política monetária pode hoje estar a ser responsável por uma enorme transferência de riqueza dos mais pobres para os mais ricos. Tudo isto com o apoio, silêncio e/ou ignorância de todos os quadrantes políticos.
De forma muito simples, a política monetária tem como objectivo gerir a quantidade de dinheiro que existe numa economia. Podemos pensar no governador do Banco Central como a pessoa que liga e desliga a máquina de imprimir notas consoante as necessidades. Se a máquina trabalhar sem parar, entra muito dinheiro na economia. Quando entra muito dinheiro e a economia produz a mesma quantidade de coisas, essas coisas custarão mais, ou seja, teremos inflação. Se a máquina deixar de funcionar muito tempo, a economia pode não ter dinheiro para funcionar ou continuar a crescer [2].
O problema surge depois de imprimir [3] o dinheiro: como o introduzir na economia? Contratar um helicóptero para o atirar à população, a solução preferida por alguns macroeconomistas [4], seria pouco prático e era capaz de causar alguma disrupção na paz social. O dinheiro é então introduzido no sistema através dos bancos. Quando os bancos centrais querem introduzir dinheiro, baixam as taxas de juro a que emprestam aos bancos, os bancos vão buscar mais dinheiro ao Banco Central, têm mais dinheiro para emprestar, e assim entra mais dinheiro na economia. Quando querem fazer o oposto, aumentam as taxas de juro. Isto era mais ou menos assim até à última crise, quando os bancos centrais se aperceberam que nem a taxas de juro negativas os bancos estavam dispostos a emprestar dinheiro. Tiveram que recorrer a uma forma mais directa de introduzir dinheiro no sistema: comprar activos directamente. Começaram a comprar dívida soberana, mas como isso não chegou, hoje compram basicamente tudo o que os mercados financeiros têm para oferecer, mesmo activos sem qualidade nenhuma como acções do Sporting [5].
Ao contrário do que alguns previam, esta política de loucura monetária não levou a uma inflação nos preços dos consumidores. Aliás, a inflação no preço dos consumidores continua relativamente baixa. Mas teve um outro efeito: fez aumentar em muito o preço dos activos, ou seja, das acções, obrigações, imobiliário, e todos as outras formas que as pessoas têm de acumular riqueza [6].
Quem tinha riqueza há 10 anos teve um bónus monumental graças a esta política monetária. O principal índice bolsista americano quase quadriplicou, na Europa esteve perto de duplicar, o ouro está novamente perto dos 2000$, só para não falar de fenómenos mais particulares como bitcoin. Em Portugal como não temos um mercado de capitais digno desse nome, este fenómeno notou-se no imobiliário. No final de 2019, as casas estavam 46% mais caras do que em 2010. Em zonas mais concorridas, como a cidade de Lisboa, os preços estiveram perto de duplicar.
Qual é o problema de tudo isto? É que a economia real não seguiu estas valorizações. A economia americana não produz hoje 4 vezes mais do que produzia em 2010. A economia Europeia não produz o dobro. Mais pentelho, menos pentelho, em Portugal vai-se produzir quase tanto este ano como se produziu em 2010. E é aqui que deixa de ser importante perceber de economia monetária e basta saber fazer contas de somar e dividir.
Se o país produz o mesmo, mas quem tinha riqueza em 2010 tem mais capacidade de consumir graças à política monetária dos bancos centrais, alguém terá que consumir menos. Se o bolo se mantém igual, mas quem tinha riqueza acumulada em 2010 pode ter uma fatia maior, alguém terá que comer menos bolo. Esse alguém será quem não tinha riqueza acumulada em 2010.
De acordo com os cálculos do JN, o preço das casas em Portugal subiu 4,5 vezes mais do que os salários. Quem não tinha casas em 2010, e vive apenas do seu salário, hoje tem muito mais dificuldade em comprar casa. Quem tinha casas em 2010, pelo contrário, tem muito mais capacidade para consumir aquilo que o trabalhador produz.
Este desligamento entre a economia real e o valor dos activos chegou a um ponto ridículo durante a pandemia nos EUA. Enquanto na economia real se contavam recordes de desempregados, as bolsas subiam para os mesmo níveis em que estavam antes da pandemia, como se ela nunca tivesse acontecido. A produção e os lucros das empresas a cair, empresas a precisar de ajuda para se manterem vivas, e o valor das acções a subir. O Banco Central Americano (a FED) a fazer tudo para garantir que quem vive da riqueza que acumulou não sofre qualquer perda.
Não me interpretem mal. Não há nenhum problema em acumular riqueza, pelo contrário. Portugal até precisa de acumular mais e atrair quem já a tenha acumulado. Eu até beneficiei deste bónus dos bancos centrais que fez com que a (pequenina) riqueza que acumulei a trabalhar fora do país me tenha permitido exercer algumas actividades giras mas mal pagas como dar aulas, escrever em jornais ou presidir a partidos políticos. Mas seja qual for a opinião que o leitor tenha sobre políticas activas de redistribuição de riqueza, dificilmente defenderá que essa redistribuição aconteça de forma tão agressiva e em benefício de quem tem mais riqueza. Das profundezas da minha ignorância em assuntos de política monetária, parece-me que é isso que está a acontecer e numa escala nunca vista. E raramente coisas destas dimensão acontecem sem que haja consequências políticas graves.
[1] Alunos e Professores de faculdades que não a Faculdade de Economia do Porto, podem enviar hate mail para o Director do ECO que, a ver pela sua conta de Instagram, anda com imenso tempo livre para responder.
[2] A explicação para isto é demasiado longa, complexa e pouco consensual. Os meus amigos gold bugs irão desmentir, mas não se preocupem que eles também não percebem nada de política monetária tal como eu, com a diferença de que eles não o admitem.
[3] Sim, é verdade, grande parte do dinheiro hoje não é impresso, mas não me deixem perder esta imagem simples por favor.
[4] Não estou a brincar.
[5] Ver nota 1) e adaptar. Na verdade não sei se o BCE compra acções do Sporting, mas há bancos centrais a comprar activos com qualidade semelhante.
[6] Nada contra a acumulação de riqueza. Eu próprio acumularia mais se pudesse.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
A grande redistribuição
{{ noCommentsLabel }}