Lei de Bases da Habitação entrou em vigor há um ano, mas “não resolveu praticamente nada”
A Lei de Bases da Habitação entrou em vigor há um ano mas, desde então, proprietários e inquilinos afirmam que praticamente nada mudou.
O Governo considera que a Lei de Bases da Habitação (LBH), em vigor há um ano, representa “uma nova era” em termos de política pública no setor, indicando que o primeiro passo na regulamentação passou pela adequação dos programas existentes. Contudo, proprietários e inquilinos dizem que LBH ainda não mudou praticamente nada.
A propósito do primeiro ano da entrada em vigor da LBH, o Gabinete da secretária de Estado da Habitação recorda à Lusa que, ao mesmo tempo em que era discutida e aprovada no Parlamento esta legislação, foi desenvolvida a Nova Geração de Políticas de Habitação, que “procurou erguer uma estratégia coerente e integrada, definindo objetivos e instrumentos adequados a um efetivo reconhecimento do direito à habitação”.
Na perspetiva do Governo, a LBH “marca uma nova era em termos de política pública de habitação, desde logo no relacionamento entre as diferentes esferas do Estado (administração central e local) e na relação entre este e os cidadãos”.
No âmbito da implementação da Nova Geração de Políticas de Habitação, com instrumentos como os programas 1.º Direito, Porta de Entrada e de Arrendamento Acessível, o primeiro passo na regulamentação da LBH passou pela adequação dos programas de apoio existentes, bem como pela adaptação da lei orgânica do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU).
Com novas competências, como a elaboração do Programa Nacional de Habitação, o IHRU vai ter um reforço de meios técnicos e humanos, “valorizando o seu papel de entidade pública nacional” no setor, refere o Gabinete de Marina Gonçalves. Sobre a “efetiva garantia” do direito à habitação a todos os cidadãos, em que “o Estado é o garante” desse direito, segundo a LBH, o Governo reforça que a prioridade é o aumento da oferta pública.
“Uma política pública de vocação universal não se faz, contudo, sem a mobilização de um parque público de dimensão adequada, de modo a garantir o cumprimento dos seus objetivos, tanto na vertente do reforço da oferta direta, sob a forma de arrendamento de fogos propriedade pública, seja pela capacidade regulatória que um maior peso do parque público no conjunto do parque habitacional passa a deter”, explica a tutela.
No contexto da pandemia, especificamente na relação que a habitação tem na proteção individual e familiar, designadamente no período de confinamento, o Governo lembra as medidas que permitiram a proteção dos arrendatários e senhorios, seja pela não cessação dos contratos de arrendamento em vigor, seja pelo apoio concedido pelo IHRU aos inquilinos que tenham sofrido quebras de rendimento.
A 17 de setembro, a anterior secretária de Estado da Habitação anunciou a aprovação de um diploma que regulamenta vários aspetos da LBH, adequando inclusivamente os instrumentos criados no âmbito da nova geração de políticas nesta área. O anúncio de Ana Pinho coincidiu com a sua última intervenção como membro do Governo, uma vez que horas depois passou a pasta à sua sucessora, Marina Gonçalves.
Adaptando os programas 1.º Direito, Porta de Entrada e de Arrendamento Acessível, bem como a orgânica do IHRU, o diploma de regulamentação entra em vigor no dia 02 de novembro — com exceção das adaptações do Programa de Arrendamento Acessível, que apenas são aplicadas 90 dias após a publicação, ou seja, no fim de dezembro.
Em vigor desde 1 de outubro de 2019, a primeira LBH em Portugal foi aprovada no Parlamento a 5 de julho de 2019, com os votos a favor de PS, PCP, BE, PEV e PAN e os votos contra de PSD e CDS-PP, determinando que “o Estado é o garante do direito à habitação”.
Além da “efetiva garantia” do direito à habitação a todos, estabelece a função social da habitação, em que “os imóveis ou frações habitacionais detidos por entidades públicas ou privadas participam (…) na prossecução do objetivo nacional de garantir a todos o direito a uma habitação condigna”. Entre as medidas que compõem o diploma, destacam-se a criação do Programa Nacional de Habitação e da Carta Municipal de Habitação, assim como a proteção no despejo e a integração do direito à habitação nas políticas de erradicação de pessoas em condição de sem-abrigo.
Proprietários e inquilinos dizem que LBH ainda “não resolveu praticamente nada”
A LBH “não resolveu praticamente nada”, defendem os inquilinos, manifestando expectativa quanto à entrada em vigor da regulamentação da legislação, enquanto os proprietários criticam o ataque à propriedade privada. “A LBH é um enunciado de boas intenções […]. De todas as boas intenções que estão plasmadas, nada foi posto em prática”, afirma à Lusa o presidente da Associação Nacional de Proprietários (ANP), António Frias Marques, considerando que o trabalho da Secretaria de Estado da Habitação tem sido “hostilizar os proprietários privados”.
Ressalvando que a LBH fazia falta, tal como existe para outras áreas como Saúde e Educação, António Frias Marques lembra que “90% do parque habitacional do país é privado”, considerando que tal é um handicap na intervenção do Estado e lamentando a falta de auscultação dos proprietários, capítulo no qual “o Governo é autista”.
“Concordamos, plenamente, que é ao Estado que compete a função de pôr em prática o artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa — direito à habitação — e a regulação do mercado habitacional e o combate à especulação […], mas no combate à especulação não vimos nada, os especuladores andam para aí à vontade“, destaca o presidente da ANP.
Sobre o objetivo do Governo de colmatar as carências habitacionais até 2024, António Frias Marques critica a sucessão de anúncios de instrumentos legislativos, que resultaram num “grande edifício de papel”.
“O Estado enquanto garante do direito à habitação o que é que fez? A resposta, todos sabem, é nada. Apresentam-se com uma reciclagem de intenções e anúncios vagos e ocos de utilização do património do Estado para efeitos de habitação”, declara a vice-presidente da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP), Iolanda Gávea.
Reiterando que não pode haver soluções para o “gravíssimo problema da habitação” sem o diálogo e o envolvimento de todas as partes, a representante da ALP contesta a aprovação de legislação “sempre à revelia dos proprietários”. “A ALP vaticinou, desde logo, que a lei seria completamente ineficaz e um fracasso, que não teve qualquer efeito útil”, refere Iolanda Gávea, acrescentando que há falta de confiança dos proprietários, o que “mina todos os programas públicos”.
No âmbito da pandemia, as medidas aprovadas vieram “reforçar o profundo desequilíbrio que existe entre os parcos direitos dos proprietários e a elevada parcela dos deveres”, aponta a vice-presidente da ALP, explicando que a função social da habitação tem sido transferida para os proprietários e “o Estado tem de assumir o seu papel”.
Com o balanço de que a LBH, “até agora, não resolveu praticamente nada”, o presidente da Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL), Romão Lavadinho, apresenta uma visão mais otimista para a execução após a regulamentação da legislação, cujo prazo era de nove meses, a concluir até maio, mas apenas foi publicada em outubro no Diário da República.
“Como vimos a dizer ao longo dos anos, é uma lei de bases que é fundamental para resolver o problema da habitação e responsabilizar o Estado, o Governo, pela resolução do problema”, sustenta Romão Lavadinho, destacando a importância da regulamentação para definir os apoios aos inquilinos que não tenham condições de habitabilidade, assim como a questão dos despejos.
Entre as expectativas dos inquilinos está a reivindicação de “não permitir que os proprietários continuem a fazer especulação no arrendamento”, para o qual contribui a oferta de património público a rendas acessíveis, inclusive a criação de uma bolsa que dispõe já de cerca de 15 mil imóveis habitacionais. “Vai fazer com que possa, finalmente, estar em confronto a propriedade pública com a propriedade privada e resolver o problema das famílias mais carenciadas, especialmente a classe média, que foi a que sofreu mais com esta pandemia“, perspetiva Romão Lavadinho.
Associação Habita preocupada com falta de respostas
A associação Habita considera que “não se passou praticamente nada” no primeiro ano da entrada em vigor da LBH, mostrando-se preocupada com o recente decreto-lei de regulamentação, devido à falta de respostas de emergência habitacional. “Não houve uma regulamentação, na verdade não se passou praticamente nada em torno da lei de bases, isso preocupa-nos”, disse à Lusa Rita Silva, porta-voz da associação Habita, lembrando que o prazo de regulamentação era de nove meses após a publicação do diploma no Diário da República. Como a publicação aconteceu em setembro de 2019, a regulamentação deveria ter sido elaborada até maio de 2020, mas só a 2 de outubro é que foi publicado o primeiro decreto-lei para o efeito.
Ressalvando que a associação Habita ainda está a analisar com detalhe o decreto-lei de regulamentação, Rita Silva adiantou que uma das preocupações tem a ver com o papel do IHRU como promotor e coordenador da política de habitação, em que se determina a possibilidade de “participar em sociedades, fundos de investimento imobiliário, consórcios, parcerias públicas e público-privadas e outras formas de associação”.
Outra das preocupações é que “há em todo o texto uma tendência de mudança da linguagem — de habitação pública e habitação social para habitação com interesse social” –, uma vez que pode significar que as novas políticas sejam novamente financiar os atores privados e não aumentar, efetivamente, a oferta pública acessível.
Relativamente à adaptação dos programas em vigor, a porta-voz da Habita sublinhou que estarão sempre dependentes de orçamento e da sua execução, pelo que “é fundamental que haja o pacote financeiro necessário, porque se não houver tudo fica no papel”.
Classificando como “muito insuficiente” o decreto-lei de regulamentação da LBH, Rita Silva adverte que o diploma não incide sobre os problemas fundamentais no setor e “continua a não garantir efetivamente o direito à habitação”. “Não referem nada sobre o impedimento de continuar a haver demolições e despejos sem alternativas de habitação, ou seja, o direito à habitação continua a não estar consagrado como direito inalienável, humano e constitucional”, declarou.
Para a Habita, “há vários domínios que devem ser regulamentados com toda a urgência”, para que o objetivo da lei de bases que reflete o artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa sobre o direito à habitação se possa concretizar, nomeadamente a proteção e o acompanhamento no despejo, e a regulação do arrendamento habitacional que estabeleça um sistema de renda compatível com o rendimento familiar.
Apesar da decisão de se suspender o ato de execução dos despejos no âmbito da pandemia, “os processos em tribunal ou os atos administrativos estão a decorrer”, alertou Rita Silva, defendendo que devem ser implementadas medidas para evitar que os processos sejam executados mais tarde.
Reforçando a importância da LBH, a associação lembrou que “já existia uma crise habitacional e que, neste momento, o que se está a instalar é uma crise social e económica grave” em resultado da pandemia, pelo que a regulamentação desta legislação “é urgente, necessária e deve garantir, efetivamente, o direito à habitação para todas as pessoas”.
Na perspetiva da plataforma Stop Despejos, o balanço do primeiro ano da entrada em vigor da LBH “é desastroso”, em particular durante a crise pandémica, até porque “a implementação prática tem sido nula”.
“Se virmos o que tem acontecido agora durante a pandemia, é extremamente grave, porque os despejos continuam a acontecer e não há garantias nenhumas de que as pessoas sem alternativas de habitação não vão parar à rua”, referiu João Eça, membro da Stop Despejos, em declarações à Lusa.
Com intervenção junto de pessoas em condição de sem-abrigo na cidade de Lisboa, a Comunidade Vida e Paz apoia a LBH, por prever a integração do direito à habitação nas políticas de erradicação de pessoas em condição de sem-abrigo, defendendo que, se estivesse regulamentada, neste momento de pandemia, “os resultados poderiam ser, sem dúvida, muito mais benéficos para as pessoas que estão na rua”.
“Temos conhecimento de que algumas pessoas têm ficado desalojadas, porque ficaram desempregadas e financeiramente não têm condições para suportar rendas […]. Com certeza que, com a regulamentação da lei, poderíamos estar a falar de outro tipo de cenários, sobretudo nesta altura para a qual ninguém estava preparado”, referiu a diretora-geral, Renata Alves. Verifica-se ainda, acrescentou, “um grande número de pessoas que se encontra em situação sem-abrigo e tudo indica que vai aumentar”.
Antes da pandemia, esta instituição de apoio a sem-abrigo, que oferece uma ceia e pretende estabelecer uma relação de confiança para ajudar a sair da rua, acompanhava “cerca de 430 pessoas” na cidade de Lisboa, mas o início da pandemia aumentou para 800 o número de pessoas apoiadas. “Nos primeiros tempos, passámos a ter de reforçar as nossas ceias e, em vez de distribuirmos 430, estávamos a distribuir 800. Entretanto, estamos com a distribuição entre 500 e 550, ou seja, estamos a apoiar entre 500 e 550 pessoas que estão nas ruas”, adiantou Renata Alves, referindo-se à situação na capital
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