Aqui, os barcos ainda são feitos à mão. A paixão é o segredo para resistir a um século de história

É o único estaleiro de construção de barcos rabelos no país e fica na margem ribeirinha de Gaia. A paixão é o segredo para fazer sobreviver uma profissão em vias de extinção, a carpintaria naval.

Localizado na margem do Rio Douro e com um vista privilegiada para a cidade do Porto, o estaleiro de Vila Nova de Gaia é o único sobrevivente dos 13 estaleiros que existiam entre a Ponte Luiz I e a zona da Afurada e é atualmente o único estaleiro do país a dedicar-se à construção de barcos rabelos. A paixão, a historicidade, o turismo e a missão de manter viva uma arte que está em vias de extinção são alguns dos segredos para este estaleiro ter sobrevivido ao longo de um século de história.

No último ano foram construíram e reparadas mais de 30 embarcações nos estaleiros de Gaia, mas são os barcos rabelos a mascote da casa. “Temos um papel extremamente importante que é a preservação do património marítimo regional, neste caso no Rio Douro. É o único estaleiro que existe no Rio Douro que faz a construção e manutenção de qualquer tipo de embarcação, embora a nossa atividade esteja mais concentrada nos barcos rabelos, ao representar 90% da nossa atividade”, explica ao ECO, António Sousa, administrador da Socrenaval, empresa que detém o estaleiro.

Mesmo com todas as dificuldades que tem enfrentado ao longo dos tempos, o estaleiro continua, no mesmo local, firme e hirto desde 1952. E é neste estaleiro com vista para o Douro que se fazem todas as reparações das embarcações que por ali passam dignas de um postal. “Fazemos a manutenção de todas as embarcações tradicionais que existem no Rio Douro. Todas as embarcações de transporte de passageiros foram construídas neste estaleiro há 10, 15, 20 anos. São sempre embarcações inspiradas no antigamente, no tradicional, na história de toda uma indústria”, refere António Sousa. A grande maioria das reparações das embarcações são para empresas do Vinho do Porto. “É uma embarcação emblemática que tem uma ligação muito forte com o transporte de vinho do Porto”, conta.

Ao entrar no estaleiro de Vila Nova de Gaia com vista desafogada para a Invicta é como recuar na história. As técnicas mais ancestrais ainda se mantêm no tempo e o estaleiro permanece intacto na margem do Rio Douro, desde a década 50. António Sousa conta que o estaleiro já existia uns metros mais à frente onde é hoje o Cais de Gaia com o nome do seu avô. “Temos documentação desse estaleiro desde 1920, mas também já veio do meu bisavô. Estamos a falar pelo menos até onde a memória nos leva ao século XIX”, conta com orgulho.

Ricardo Castelo

Na altura, a carpintaria naval era uma profissão com imensa saída, hoje está em vias de extinção. O administrador tem a certeza que a paixão é o principal motor para manter viva esta profissão. “É a paixão que move o negócio a par de querer manter viva toda esta tradição. Quando estamos a construir este tipo de embarcações é muito importante para nós que se consiga manter ao longo dos anos as características tradicionais para não desvirtuar a tradição”, diz o administrador.

Quebra do turismo prejudicou os estaleiros de Gaia

Apesar de toda a dedicação e entrega, António Sousa, conta que a pandemia provocou perdas de 35% em comparação com o período homólogo, mas que nem esta quebra no volume de negócios impediu o estaleiro de continuar todos estes meses de portas abertas, sem recorrer a apoios do Estado e com todos os funcionários a bordo desta embarcação. Todavia, mesmo a tentar levar o barco a bom porto, o administrador afirma que a pandemia do novo coronavírus está a afetar a empresa. O principal motivo é a falta de turismo.

Com a cidade deserta de turistas, a forte procura pelos tradicionais cruzeiros pelas sete pontes do Rio Douro caiu drasticamente. Esta paragem abrupta no turismo afetou o estaleiro centenário de Vila Nova de Gaia que viu as empresas das Caves de Vinho do Porto a adiar as reparações nas embarcações e até mesmo construções. “A pandemia veio afetar todas as atividades de uma forma transversal. Na nossa área da construção e reparação naval sofremos obviamente com isso porque temos clientes com embarcações marítimo-turísticas totalmente paradas o que acaba por atrasar no tempo os processos de reparação”, conta o administrador que pertence à quarta geração.

Para chegar a este marco de cem anos, António Sousa, abdicou há 20 anos do cargo de diretor de uma multinacional francesa, em Lisboa, para dedicar-se a tempo inteiro à empresa de família, os estaleiros de Vila Nova de Gaia. Conta “se não houver pessoas que abracem determinado tipo de atividades, este desinteresse pode levar ao fim do setor“. Em conversa com o ECO destaca que chegou a uma altura que ou abraçava este projeto ou os estaleiros acabariam. “Foi a aposta que fiz, mesmo contrariando a vontade da família, que me dizia sempre para pensar em trocar o certo pelo duvidoso”.

Somos o único estaleiro no país que constrói barcos rabelos tradicionais, como os que transportavam as pipas de Vinho do Porto, com mastro e vela.

Administrador dos Estaleiros de Vila Nova de Gaia

António Sousa

Rumou contra a maré e duas décadas depois continua a ter paixão por aquilo que faz e a lutar pela sobrevivência do estaleiro e do negócio que já vai na quarta geração e conta com nove colaboradores. É um trabalho manual, à mercê do tempo, que requer esforço e paixão. E que o diz é Manuel Lopes. Trabalha nos estaleiros de Vila Nova de Gaia há 35 anos e é o funcionário mais antigo. Conta ao ECO que foi a única profissão que teve na vida e confessa que para manter uma profissão durante tanto tempo “é preciso gosto e paixão”. “Quem não tiver gosto não consegue aguentar isto”. “Nunca tive outra profissão na vida desde os 14 anos e não me vejo a sair daqui de maneira nenhuma, só mesmo quando for para a reforma”, afirma Manuel Lopes com um brilho no olhar e enquanto calafeta um barco. O carpinteiro naval garante saber fazer tudo nesta arte e que conseguir construir um barco do princípio ao fim.

Manuel Lopes é o funcionário mais antigo dos Estaleiros de Vila Nova de Gaia. Ricardo Castelo

Joaquim Martins, também ele carpinteiro naval, pega na deixa do colega. “É uma profissão que é preciso gostar daquilo que estamos a fazer e eu acabei rendido a isto”, diz. Trabalha nos estaleiros há nove anos e tem uma história diferente. Trabalhou 25 anos nas caves do Vinho do Porto a construir pipas, na empresa Barros Almeida que foi vendida ao Grupo Sogevinus Fine Wines. Mas acabaram por extinguir o posto de tanoaria. Passados poucos meses foi bater à porta dos estaleiros de Vila Nova de Gaia e acabou por “encontrar uma grande paixão”. “Já não trocava este trabalho por nada. Agora acabo aqui”, conta Joaquim Martins enquanto restaura um barco rabelo. Confessa que gosta mais de trabalhos puros e duros. “Acabamentos e perfeccionismo não é bem a minha área”, desabafa.

A remar contra a crise, em setembro recrutaram um novo colaborador e têm mais uma ou outra vaga em aberto, mas António Sousa garante que “precisam de pessoas que queiram aprender e trabalhar”. “As pessoas não estão abertas a novas apostas”, lamenta, “isto é um trabalho manual e é preciso gostar daquilo que se está a fazer”.

Toda a construção de determinada embarcação ou até mesmo a reparação é um processo manual e minucioso que demora o seu tempo. Não é como levar o carro ao mecânico. António Sousa explica que construir um Barco Rabelo, com cerca de 17 metros, do princípio ao fim pode demorar cerca de três a quatro meses, enquanto embarcações maiores entre os 20 e os 30 metros podem demorar aproximadamente nove meses.

A Socrenaval trabalha com todas as Caves de Vinho Porto. Gran Cruz, Grupo Sogevinus, Taylor’s Port, Sogrape, são alguns dos exemplos. Trabalham também com todas os operadores marítimos turísticos, como a Douro Azul, Tomaz do Douro, Rota Douro, entre outras. Neste momento têm 15 embarcações das Caves de Vinho do Porto para requalificar e estão quase a terminar uma embarcação turística para a Ria de Aveiro. É uma embarcação com 22 metros, capacidade para 70 passageiros e três tripulantes e ficará pronta no princípio do próximo ano. António Sousa levanta a ponta de véu e revela que a embarcação tem o nome de “Xávega”, um método tradicional de pesca de arrasto.

Tem tudo a ver com as embarcações tradicionais daquela região”, diz António Sousa. Desataca que é importante “oferecer” a quem os visita “embarcações baseadas num conceito de historicidade”. “Queremos que as pessoas viagem num barco que tem tudo a ver com a região que está a visitar”. Conta com orgulho que é “única embarcação deste género” e que desenvolveu este projeto com um gabinete de engenharia naval em Vigo (Espanha) e que têm o registo da patente a nível de toda a União Europeia.

Ricardo Castelo

A embarcação Xávega foi construída de raiz e demorou alguns anos. “Temos imenso trabalho e somos poucos. Tentamos privilegiar muitas vezes as embarcações que já estão construídas e a operar para não prejudicar as empresas que precisam desses barcos para trabalhar”, explica. Caso fosse um processo contínuo a embarcação demorava cerca de um ano a ser construída.

Um século depois quer ser património da humanidade

Ao longo deste século de história já sofreram vários contratempos. “Os estaleiros de construção naval que existiam no Rio Douro, entre o século XIX e XX, foram desaparecendo. Já passamos por momentos de crise, mas o meu pai, o meu avô e bisavó tiveram a coragem de estar preparados para esses momentos e conseguir ultrapassa-los sempre à custa do nosso próprio esforço”, destaca com orgulho o administrador.

Com o suor e a dedicação de quatro gerações, António Sousa ambiciona que o estaleiro passe a Património da Humanidade e conta que existe um interesse por parte da Câmara Municipal de Gaia. “Há interesse da autarquia de Gaia que o estaleiro faça parte do património da humanidade inserido no centro histórico de Vila Nova de Gaia. É um passo muito importante para nós até porque é um reconhecimento do nosso trabalho”, reconhece António Sousa.

Ricardo Castelo

Lamenta que não haja apoio institucional. “Quando falo institucionalmente é o reconhecimento que esta atividade é importante, a conservação do património, por ser único, mas também por ser uma indústria”. O administrador refere ainda que têm travado uma longa luta com a Administração dos Portos do Douro e Leixões (APDL) que quer acabar com o único estaleiro que constrói barcos rabelos no país ou mudá-lo para outro lugar. “Temos um local privilegiado, mas isso está relacionado com a atividade. É completamente ilógico o estaleiro existir no interior ou noutro espaço qualquer sem ser o centro histórico de Vila Nova de Gaia”, reafirma.

“Temos tido alguns problemas e dificuldades mesmo por parte de algumas entidades públicas como a Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo (APDL). Tem-nos causado alguns problemas que temos conseguido de alguma forma ultrapassar nomeadamente a vontade manifestada de acabar com a nossa atividade ao ponto de existir uma proposta para acabar com este estaleiro e criar um monumento que de alguma forma possa lembrar que nessa zona existiu um estaleiro de construção naval que se dedicava a este tipo de atividade”, lamenta.

Enquanto a APDL não reconhece o valor deste património histórico, António Sousa relembra que são visitados por “imensos turistas de todas as partes do mundo que ficam surpreendidos porque não sabiam da existência de um estaleiro de construção naval” e lembra ainda que têm sido reconhecidos por muitas entidades, cadeias de televisão internacionais e alguns museus como o museu marítimo de Barcelona. “Estas são algumas das partes que leva a que esta atividade se mantenha”, confessa. Acrescenta ainda com algum entusiasmo que foi feito “há uns anos um filme nos estaleiros de Gaia”.

Requalificar o estaleiro é um sonho

A par da distinção de património da humanidade, um dos objetivos do administrador é requalificar o estaleiro de Vila Nova de Gaia, uma decisão que depende da APDL. “A requalificação já foi apresentada no ano 2000, mas tem sido sempre adiada por situações que se prendem com a administração dos portos. A conclusão desse projeto está dependente da APDL. Em 20 anos não conseguimos fazer essa requalificação”, lamenta António Sousa.

Está convicto que um dia o sonho se transformará em realidade nunca perdendo a autenticidade. “Queremos que o estaleiro se mantenha com uma construção artesanal com a presença das madeiras. Queremos é renovar algumas estruturas que já existem, alargamento do espaço, criação de infraestruturas que nos permitam no próprio terreno melhor qualidade de trabalho”, explica António Sousa.

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