PGR quer ser avisada de investigações a figuras públicas
Diretiva publicada em Diário da República diz ainda que os chefes do Ministério Público (diretores do DIAP, DCIAP e a própria PGR) podem chamar a si processos mediáticos.
A Procuradora-Geral da República — órgão máximo da investigação criminal — quer ser avisada pelos magistrados do Ministério Público das investigações que envolvam figuras públicas ou mediáticas. Chama esses arguidos de “pessoas particularmente expostas”, investigados em processos “que se preveja que venham a ter repercussão mediática” e de “particular sensibilidade em razão da relevância dos interesses envolvidos e da qualidade dos sujeitos processuais”. Lucília Gago quer ainda ser notificada pelos ‘seus’ procuradores das decisões finais desses inquéritos (arquivamento ou acusação). Comunicações que devem ficar registadas por escrito, no que a PGR chama de dossier a instaurar pelo magistrado titular do processo. Estas e outras regras constam da diretiva 4/2020 que prevê os procedimentos no “Exercício de poderes hierárquicos em processo penal”, publicada esta semana em Diário da República.
O mesmo documento prevê ainda que esses mesmos processos com repercussão pública possam ser avocados aos superiores hierárquicos dos procuradores do Ministério Público. Ou seja: que possam ir parar às mãos dos diretores dos DIAP, diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e ainda a própria Procuradora-Geral.
Concretizando, e imaginando que esta nova orientação já estivesse em vigor há uma década, teríamos a titular da investigação criminal a ser avisada de que José Sócrates, Ricardo Salgado, António Mexia, Luís Filipe Vieira, Miguel Macedo, Vale e Azevedo, Azeredo Lopes ou Rui Rangel estavam a ser investigados e que contra eles estava a ser preparada uma acusação. Mais: poderia dar-se o caso do processo passar a ficar com a PGR como responsável pela investigação. A recordar que o cargo da titular de investigação criminal é de nomeação política.
Perante a publicação desta diretiva — depois de em fevereiro ter sido discutido o assunto — a polémica já estalou, com o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público a marcar uma Assembleia Extraordinária de Delegados Sindicais para 9 de janeiro para decidir “as medidas adequadas a adotar” para combater esta diretiva.
“Se nos conformarmos com a vigência deste instrumento hierárquico, tal significa que aceitamos renunciar à nossa condição de magistrados e passemos a ser mais uma roda dentada numa engrenagem, em que perdemos o nosso valor individual e profissional”, segundo o líder sindical, António Ventinhas.
“De um momento para o outro, os Procuradores-Gerais Adjuntos e os Procuradores da República deixaram de ser magistrados dotados de autonomia técnica e tática e transformaram-se em funcionários ao serviço da Senhora PGR!”, diz a mesma fonte. E avisam que esta medida “abre a porta ao controlo político da investigação criminal através da emissão de ordens concretas nos inquéritos, não se esquecendo que no vértice da pirâmide se encontra alguém que é nomeado politicamente”.
A diretiva diz ainda que, caso o queiram, os sujeitos processuais em causa (arguidos e não só) podem sempre pedir o esclarecimento dessa determinação hierárquica — que deverá estar sempre registada por escrito — à exceção dos casos que estejam em segredo de Justiça.
As justificações da PGR para as novas regras
No documento, são várias as explicações dadas pela PGR para a publicação destas novas regras. Porque a autonomia interna dos magistrados do Ministério Público “pressupõe tanto a vinculação aos critérios de objetividade e de legalidade, como a sujeição às diretivas, ordens e instruções dos superiores hierárquicos, balanceada pela salvaguarda da sua consciência jurídica” ou porque “a clarificação da intervenção hierárquica em processo penal que decorre do novo Estatuto do Ministério Público mantém inalterado o quadro constitucional, legal e estatutário vigente do exercício dos poderes de direção pelo magistrado do Ministério Público hierarca, destacando dois planos distintos do exercício do poder de direção que, em todo o caso, não conflituam nem se anulam, antes se intersetam”.
Diz ainda que com “o presente instrumento pretende-se uniformizar procedimentos no âmbito do exercício de poderes hierárquicos em processo penal e, pela sua especial relação com aquele exercício, introduzem-se orientações relativas ao exercício hierárquico do poder diretivo de avocação do inquérito”.
Autonomia ou não?
Já em outubro do ano passado, o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) colocava em cima da mesa a questão: a autonomia do MP absorve a hierarquia do Ministério Público? Ou a hierarquia do Ministério Público anula essa mesma autonomia? Concretizando: os magistrados do MP são subordinados à hierarquia do diretor do DCIAP, dos DIAP ou da Procuradora-Geral da República (PGR)? Ou a sua autonomia expressa na Constituição permite tomarem decisões relativas aos processos de que são titulares sem prestar contas a essa mesma hierarquia?
E se a anterior PGR Joana Marques Vidal considerava que essa autonomia, per si, era praticamente garantida na Constituição da República Portuguesa, Lucília Gago vem agora esclarecer que a hierarquia existe e é para ser respeitada. E que a autonomia terá sempre de ter em consideração essa mesma hierarquia.
Em fevereiro foi pedido um parecer pela titular da investigação criminal, que dizia então que os superiores hierárquicos do MP (PGR, diretor do DCIAP e dos DIAP) têm o direito de “emitir diretivas, ordens e instruções” concretas sobre determinadas diligências processuais. E os procuradores titulares do processo apenas podem negar-se a cumprir essa ordem caso seja uma “ordem ilegal”, ou seja, “uma grave violação da consciência jurídica”, que deverá ser devidamente fundamentada pelo magistrado. Caso contrário, pode vir a ser alvo de uma sanção disciplinar.
O parecer do Conselho Consultivo faz uma distinção entre o que é a autonomia externa (face ao poder político) e a autonomia interna (a autonomia de cada magistrado para tomar as decisões processuais que entender face à hierarquia). E conclui que a Constituição da República Portuguesa (CRP) estipula a independência face ao poder político é garantida pela lei. Mas quanto à autonomia interna, a CRP é omissa. Contudo, segundo o relator do parecer, o Estatuto dos Magistrados do Ministério Público (EMMP) estipula essa mesma autonomia interna. Que tem limites.
Caso Tancos – quis iuris?
Basta olhar para o processo de Tancos – que agora já se encontra em fase de julgamento — em que os procuradores do processo quiseram ouvir o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, António Costa, sobre os factos que envolveram a Polícia Judiciária Militar na recuperação das armas furtadas, mas o diretor do DCIAP, Albano Pinto, e a PGR opuseram-se, no que foi visto como um conflito entre a autonomia dos procuradores e a (des)obediência à hierarquia. Na altura, Lucília Gago entendeu que a decisão do diretor do DCIAP foi tomada no uso das funções diretivas, que consta do Estatuto do Ministério Público.
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