Os paradoxos do teletrabalho

  • Elisa Summavielle
  • 21 Dezembro 2020

Neste momento, são ainda muitas as interrogações em torno do futuro do teletrabalho e respetivo regime jurídico. Os trabalhadores estão de um modo geral satisfeitos com esta realidade.

Foi nos anos 70, nos Estados Unidos da América, que Jack Nilles, um físico e engenheiro, lançou a ideia de teletrabalho (telecommuting ou telework) para diminuir os custos (em tempo e dinheiro) de deslocação casa/trabalho/casa. Desde então, o teletrabalho tem vindo a ser adotado por grandes empresas americanas, sobretudo na área das tecnologias. Na Europa, a adoção do teletrabalho tem sido menos expressiva, muito embora tenha crescido na última década, sobretudo nos países do norte da Europa. De acordo com o Eurostat, em 2009, na Europa, o número de trabalhadores a prestar trabalho de casa era inferior a 6%.

Em 2020, quase 50 anos depois de se iniciarem os estudos sobre as vantagens e desvantagens do teletrabalho, a necessidade de controlo da pandemia do Covid-19 impôs o recurso a esta modalidade a nível global e em larga escala. Em Portugal não foi diferente.

Fará sentido, no meio da pandemia, legislar sobre o teletrabalho?

Neste momento, são ainda muitas as interrogações em torno do futuro do teletrabalho e respetivo regime jurídico. Os trabalhadores estão de um modo geral satisfeitos com esta realidade, muitas empresas estão, tal como o Estado, a ponderar manter o teletrabalho após a pandemia, e os sindicatos apontam fragilidades na garantia dos direitos dos trabalhadores.

O governo português, até à data, optou por clarificar alguns aspetos do regime de teletrabalho (obrigatório) no contexto da pandemia, mas decidiu aguardar pelas conclusões do livro verde sobre o futuro do trabalho para fazer uma revisão do regime. Na Europa, só em Espanha, onde não existia regulamentação sobre teletrabalho, é que foi aprovada uma lei (bastante detalhada) sobre trabalho à distância.

Desde o Acordo-Quadro Europeu sobre Teletrabalho de 2002 (que serviu de base ao nosso e a outros regimes jurídicos de teletrabalho na Europa) que o carácter voluntário do teletrabalho é uma das suas principais características.

Rever o atual quadro jurídico do teletrabalho, no contexto da pandemia, é um risco, pois a experiência do teletrabalho que foi, e ainda está, a ser vivida, por empresas e trabalhadores, não foi precedida do normal e desejável planeamento e ponderação antes da sua implementação, nem tão pouco assentou num dos seus principais pressupostos – o acordo das partes. Por esse motivo, o ponto de partida para qualquer revisão deverá ser: não ir além daquilo que não possa ser resolvido pela via negocial, incluindo pela via da negociação coletiva.

Neste sentido, é prudente refletir sobre o quadro jurídico existente, e sobre as dificuldades com que trabalhadores e empresas se possam confrontar para implementar teletrabalho de forma mais generalizada. É expetável que o livro verde sobre o futuro do trabalho contribua para esta reflexão.

Uma das dificuldades com que as empresas se deparam aquando da implementação do teletrabalho está relacionada com a abundância de paradoxos do teletrabalho, sendo os principais: (i) mais flexibilidade e mais regras; (ii) mais individualismo e mais trabalho de equipa; (iii) mais autonomia e mais controlo. A capacidade que a organização tenha para conciliar estes paradoxos, em vez de optar por um destes binómios, é fundamental para o sucesso do teletrabalho e a legislação deverá facilitar esta conciliação. Vejamos cinco pontos principais que merecem reflexão numa potencial revisão do regime jurídico.

1 – O conceito: estamos a falar da mesma coisa?

O teletrabalho no ordenamento jurídico português está definido como “a prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação”. Consiste numa modalidade de contrato de trabalho, ou seja, é tratado como um tipo de contrato especial que se desvia do modelo comum. Na Alemanha, por sua vez, o teletrabalho rege-se, sobretudo, por uma lei sobre o local de trabalho (Verordnung über Arbeitsstätten). Deverá o teletrabalho continuar a ser enquadrado como uma modalidade/tipo de contrato de trabalho especial, ou deverá antes passar a ser tratado como uma forma de organização de trabalho, em termos de tempo, local e meios?

Por outro lado, o nosso regime, não prevê de forma clara a possibilidade de ser prestado trabalho alternadamente nas instalações e fora das instalações da empresa, uma vez que o artigo 165.º do Código do Trabalho define teletrabalho como aquele que é prestado “habitualmente fora da empresa”. Será que a prestação de trabalho dois dias por semana em casa se qualifica como teletrabalho? Se não, como se qualifica e quais as obrigações do empregador?

De acordo com o inquérito realizado pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho a 10.300 empresas em atividade, na semana de 16 a 20 de Novembro, já o teletrabalho tinha voltada a ser obrigatório, e a percentagem de empresas com trabalhadores em teletrabalho era de 33%, sendo que nesse caso a percentagem de trabalhadores a exercer funções em teletrabalho era de apenas 31% (i.e., cerca de 10% dos trabalhadores das empresas inquiridas). Será que o teletrabalho, nos termos em que está definido hoje na lei, é adequado às necessidades e modelos de organização das nossas empresas?

Em Espanha, optou-se por definir teletrabalho, trabalho à distância e trabalho presencial para limitar o âmbito de aplicação da lei sobre trabalho à distância. Será que em Portugal faria sentido olharmos para estas definições? O trabalho à distância sem recurso a TIC não se qualifica como teletrabalho, deverá seguir o mesmo regime?

2 – A reversibilidade: é precisa uma lei para regular a reversão de um acordo?

O Acordo-Quadro Europeu sobre Teletrabalho, previa a possibilidade de reverter o teletrabalho por iniciativa do trabalhador ou do empregador. Em Portugal, a possibilidade de reverter a situação de teletrabalho para trabalho presencial, fora do “período de arrependimento” de 30 dias estabelecido no artigo 167.º, n.º 2 do Código do Trabalho, está sujeita a acordo (artigo 165.º, n.º 6 do Código do Trabalho). Existem certamente motivos objetivos que poderão justificar essa reversão de forma unilateral após o período de arrependimento (e.g., segurança e saúde do trabalhador, redução anormal de produtividade, etc.). A recente lei espanhola, regula este tema remetendo os termos da reversibilidade do acordo de teletrabalho para o próprio acordo ou instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicável. E em Portugal, fará sentido fazer o mesmo? Ou será que o artigo 165.º, n.º 6 do Código do Trabalho, conjugado com o artigo 405.º do Código Civil (liberdade contratual) já permitem às partes estabelecer, no próprio acordo/contrato, a possibilidade de reversão unilateral do teletrabalho?

3 – O local: quem deve responder quando as coisas correm mal?

A flexibilidade e liberdade do trabalhador para decidir onde irá trabalhar encontra-se limitada, não porque a lei atualmente determine a obrigação de definir o local onde o teletrabalho será prestado, mas porque o empregador é responsável por assegurar as condições de segurança e saúde no trabalho dos teletrabalhadores nos mesmos termos e condições que assegura aos trabalhadores presenciais cfr. artigo 169.º do Código do Trabalho e da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro). Da mesma forma, para efeitos de qualificação de uma lesão como acidente de trabalho, o “local de trabalho” continua a ser fundamental.

Este é um dos casos em que os paradoxos do teletrabalho (mais flexibilidade, mais regras; mais autonomia, mais controlo) devem ser conciliados, e para cuja conciliação a legislação poderia contribuir de forma mais evidente. Por diversos motivos, o local da prestação, deverá ser tão flexível quanto seja possível, sob pena de se perder a aclamada flexibilidade do teletrabalho, mas para isso a responsabilidade do empregador sobre as condições de segurança e saúde no trabalho deve ser exigida dentro de um quadro de razoabilidade e, dentro do possível, ser repartida com o trabalhador.

4 – O tempo: quem organiza?

De acordo com o atual quadro jurídico, o teletrabalhador continua a estar sujeito a um período normal de trabalho diário e semanal, bem como às regras gerais sobre organização de tempos de trabalho.

Por sua vez, o empregador continua a ser responsável por garantir que os seus trabalhadores respeitam os limites de duração máxima de tempos de trabalho e cumpram os períodos de descanso impostos por lei. Assim, o registo de tempos de trabalho e a definição de regras relativamente ao horário em que os trabalhadores devem prestar a sua atividade, quando estão fora das instalações da empresa e do controlo físico do empregador, são imposições legais que se mantém no regime de teletrabalho. Caberá assim ao empregador encontrar mecanismos não invasivos da privacidade do trabalhador que permitam registar e controlar os tempos de trabalho de forma rigorosa e transparente, ciente de que no teletrabalho se aplica a regra geral de proibição de utilização de meios de vigilância à distância, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.

Os tempos de trabalho das equipas, incluindo equipas mistas de teletrabalhadores e trabalhadores presenciais, devem ser organizados de forma a permitir uma comunicação eficiente, sob pena de perda de níveis de produtividade e aumento do número de horas de trabalho/conexão injustificáveis. Por esse motivo, ainda que não exista uma rigidez de horários de trabalho devem prever-se períodos de disponibilidade imediata dos teletrabalhadores, tal como sucede no regime do horário flexível, estabelecido no artigo 56.º do Código do Trabalho. De resto, o regime de horário flexível, em muitos casos, poderá ser mais adequado ao teletrabalho do que o regime de isenção de horário (estabelecido no artigo 265.º do Código do Trabalho), passível de ser aplicado ao teletrabalho, e que poderá resultar num injustificado aumento dos tempos de trabalho, mas também num custo adicional para o empregador (o subsídio de isenção de horário de trabalho).

De acordo com os resultados do inquérito realizado pela Escola Nacional de Saúde a teletrabalhadores, dos inquiridos, 59% (n=661) considera que “trabalha mais horas do que o habitual”, e 42% (n=453) considera não ser possível “desligar-se do trabalho para poder descansar”. Assim, será este o momento certo para se legislar sobre o direito à desconexão? Em França e Espanha já existe legislação específica sobre direito à desconexão digital, na Alemanha não, mas existem já bastantes instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho a regular o tema.

A flexibilidade dos tempos de trabalho dos teletrabalhadores estará sempre dependente das necessidades operacionais do empregador, que terá de definir regras precisas sobre os tempos de trabalho. Por sua vez, a maior autonomia dos teletrabalhadores estará sempre limitada pelas obrigações legais de controlo dos tempos de trabalho impostas ao empregador. Como é que o quadro jurídico aplicável poderá facilitar a conciliação destes paradoxos (autonomia/controlo)?

5 – A integração: equipas em teams?

O teletrabalho poderá traduzir-se num maior individualismo, e para contrariar esta tendência existe a necessidade de mais trabalho de equipa. De resto, um dos elementos essenciais do acordo de teletrabalho é precisamente a identificação do estabelecimento ou departamento ao qual o teletrabalhador está alocado, bem como identificação da pessoa a quem o trabalhador reporta ou que deverá contactar no âmbito da prestação de trabalho. Este é um dos casos em que a legislação existente já ajuda a conciliar este importante paradoxo do teletrabalho, mas a integração de um trabalhador numa estrutura não se basta com a existência de uma pessoa de reporte

É fundamental que os teletrabalhadores, além de terem uma pessoa de contacto ou de reporte, estejam integrados em equipas com as quais mantenham contacto regular, pois estas condições são essenciais no combate ao isolamento dos teletrabalhadores, na criação de cultura da empresa, na criação de sistemas eficazes de organização e distribuição do trabalho, na garantia da igualdade de tratamento em termos de progressão na carreia e condições de trabalho, mas também para avaliar a performance e exercer o poder de direção e disciplinar sobre os teletrabalhadores.

6 – Os instrumentos de trabalho: quem é o responsável?

No quadro jurídico atual, a transição de trabalhadores para o regime de teletrabalho deverá ser precedida de decisões relativas aos instrumentos de trabalho. Desde logo, será necessário definir no acordo o que se entende por instrumentos de trabalho. Se serão apenas computadores, se serão também os telemóveis, ratos, impressoras, ecrãs, auscultadores, mobiliário de escritório. Deverá ainda ficar claro quem é que será o proprietário dos instrumentos e o responsável pela respetiva manutenção, uma vez que nada se dizendo, presume-se que os instrumentos de trabalho respeitantes a tecnologias de informação e de comunicação utilizados pelo trabalhador pertencem ao empregador, que deve assegurar a respetiva instalação, manutenção e o pagamento das inerentes despesas. Mas a que despesas se refere e lei? Despesas de consumo e utilização dos referidos equipamentos também (e.g., luz, internet, chamadas telefónicas)?

Este tema é especialmente relevante quando estamos a falar de acordos para transitar do regime convencional de trabalho presencial para o teletrabalho, até porque, em certos casos, se poderá justificar alterar o pacote remuneratório do trabalhador. Algumas das prestações acessórias e benefícios, que pressupunham a compensação do trabalhador por custos decorrentes da necessidade da sua presença física na empresa, poderão deixar de se justificar, da mesma forma que poderá justificar-se a atribuição de prestações assessórias que visem compensar o trabalhador por custos relacionados com aquisição, manutenção e despesas com equipamentos de trabalho.

O teletrabalho é voluntário, carece de acordo das partes para ser implementado, pelo que só irá vingar se for um win win para empregadores e trabalhadores. Alterar a legislação no sentido de onerar demasiado as partes com obrigações, reduzir a sua liberdade contratual e imprimir maior rigidez num regime que deve ser por natureza flexível, poderá muito bem ditar o fim do início do teletrabalho.

  • Elisa Summavielle
  • Associada da Gama Glória

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