Há um vírus no Banco de Portugal

No caso BES/KPMG em tribunal, o Banco de Portugal entrou em contradições, foi vago e parcial, e o ex-governador usou expressões levianas, tais como como “Surprise!”.

Os últimos dez anos foram os mais negros na história do Banco de Portugal que não fez o seu trabalho de supervisão bancária (veja-se o caso BES ou Banif), não se preocupou com a supervisão microprudencial (veja-se o caso do cartel da banca), foi um desastre a comunicar e desempenhou o seu papel de autoridade de resolução de forma “desastrosa”. O adjetivo não é meu, é do ex-ministro das Finanças e atual governador do Banco de Portugal, Mário Centeno.

Havia um bastião na Rua do Comércio, em Lisboa, que até agora mantinha-se imune e assintomático à forma incompetente como a instituição estava a ser gerida; era o Departamento Jurídico. Mas mesmo aqui, no final dos dois mandatos de Carlos Costa, começaram a surgir as primeiras fissuras. A incompetência é como um vírus; é contagiosa, propaga-se nas hierarquias e é transmissível por aproximação.

Veja-se o caso do Montepio e de Tomás Correia. Em 2019, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS) anulou coimas de 4,9 milhões que tinham sido aplicadas pelo Banco de Portugal a oito antigos administradores do banco por infrações especialmente graves. O grave é que o Tribunal nem chegou a apreciar a robustez das acusações ou a veracidade das infrações. Simplesmente anulou o processo por considerar que foi violado o direito à defesa na fase administrativa. Em causa estava o facto de os elementos de prova terem sido apresentados em 303 anexos, não identificando o BdP a acusação “facto a facto”, o que levou o Tribunal a concluir que os arguidos deveriam ter tido acesso a um processo “pelo menos organizado”, para se puderem defender.

Se o caso Montepio abriu uma pequena fissura, o caso KPMG/Banco de Portugal abriu uma cratera na credibilidade do departamento legal do Banco de Portugal. Mais uma vez com o alto patrocínio do ex-governador cujo papel enquanto testemunha no processo foi lamentável e de uma leviandade confrangedora. Vamos por partes.

Neste processo, basicamente, o BdP acusou e condenou a KPMG e cincos associados por terem alegadamente violado os deveres de auditores externos, prestando informações incompletas e falsas, para além de não terem facultado informação sobre a qualidade da carteira de créditos do BES Angola (auditado pela KPMG Angola), situação que poderia levar a uma emissão de reserva às contas consolidadas da casa-mãe (auditada pela KPMG Portugal). O erro já vem a montante: o BdP nunca deveria permitir esta relação incestuosa entre o BES e o BES Angola e que eram auditados pela KPMG e pela KPMG Angola. Adiante.

Este caso não era muito difícil de defender em Tribunal. Recorde-se que a KPMG também foi alvo de uma condenação semelhante por parte da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários que a acusou e condenou por, entre outras coisas, falhas de auditoria e por ter prestado “informações falsas” também no caso BES. Só que o Banco de Portugal conseguiu a proeza de ver a sua acusação anulada logo na primeira instância pelo Tribunal da Concorrência.

Porque é que o Banco de Portugal sofre uma derrota humilhante? Fica-se com uma ideia bastante clara lendo este trabalho da jornalista Filipa Ambrósio de Sousa, no ECO, e este da jornalista Cristina Ferreira, no jornal Público, sobre o acórdão. O BdP perde este caso na substância e na forma.

A hermenêutica à volta da alínea c) do n.º 1 do artigo 121.º

Na substância, o BdP perde o caso porque deixou que este se afunilasse numa discussão hermenêutica à volta do artigo 121.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF). A alínea c) do n.º 1 desse artigo basicamente afirma que um auditor deve comunicar ao Banco de Portugal, “com a maior brevidade”, factos que possam determinar a recusa de certificação das contas ou a emissão de reservas.

Basicamente, o BdP defende que o dever do auditor de comunicar ao BdP “existe logo que se conheça um facto que, por si só, revele uma mera potencialidade abstrata de vir a originar a emissão de uma reserva”. Já a KPMG defendia que esse dever “apenas surge quando, depois de devidamente analisado e julgado à luz do seu contexto, o facto em causa revele, em concreto e de forma segura, uma aptidão para gerar uma emissão de reserva”.

O Tribunal dá razão à interpretação da KPMG que diz não ser uma mera ‘estafeta’ do Banco de Portugal. É uma interpretação perigosa esta a do Tribunal, porque se fizer jurisprudência e se for levada à letra, só quando um caso transitar em julgado ou se for demasiado evidente é que fará soar as campainhas de auditoria e, consequente, o dever de comunicação ao Banco de Portugal. Ou seja, quando a informação chegasse ao BdP, o mal já estaria densificado e o papel do BdP limitar-se-ia a ser um mero ‘estafeta’ a correr atrás dos prejuízos. Então para que serve uma auditora se não para detetar e comunicar falhas e ameaças de forma precoce para que possam ser corrigidas, seja pelos acionistas, seja pelos reguladores? Contudo, o Banco de Portugal foi incapaz de fazer valer a sua posição.

Se na substância o BdP até poderá ter razão na leitura mais restritiva que faz do artigo 121º, perde essa razão quando convoca para o tribunal testemunhas de defesa como Carlos Costa que teve uma participação miserável à frente da juíza Vanda Miguel e ajudou a enfraquecer a defesa da instituição.

1) Contradições entre o BdP e o seu governador

No Tribunal, escreve a juíza no acórdão, o Banco de Portugal começou por entrar em contradição. A juíza perguntou se alguma vez já tinha proferido “decisões condenatórias em processo contra-ordenacional que tivessem na sua base a violação do dever” do dito no artigo 121, e o BdP responde que não. Já Carlos Costa, quando foi testemunha, respondeu que sim.

“Com todo o respeito não se logra compreender este tipo de asserções contraditórias, sobre questões que não podem suscitar controvérsia alguma. Ou existiram processos de contra-ordenação” ou “não existiram”, desabafou a juíza.

2) A vaguidade das respostas

Ainda sobre o mesmo artigo 121º, o Tribunal também perguntou ao BdP se ao longo do tempo recebeu de auditores externos comunicações a propósito desse artigo. O banco respondeu que recebeu “efetivamente várias comunicações ao abrigo do disposto no artigo 121.º do RGICSF”, mas, “por força do dever de segredo a que está vinculado e porque não estão relacionadas com a matéria objeto do presente julgamento, não é possível detalhar as situações em concreto”.

Ora, refere o tribunal, como recorda o jornal Público, “com todo o respeito, o termo ‘várias’ é um termo totalmente vazio. ‘Várias’ podem ser duas, como podem ser mil comunicações. Não contribui para o que quer que seja, incluindo para a própria tese do BdP”. Respostas que deixaram o Tribunal “em sobressalto, pela sua vaguidade”.

3) A melhor resposta do julgamento: “Surprise!”

Além de acusar Carlos Costa de uma “preconceção de um juízo de culpa sobre os Recorrentes”, e de não responder a questões sobre documentos que “pudessem eventualmente beneficiar os Recorrentes”, a juíza conta ainda que se “deparou com respostas inesperadas” ouvidas à testemunha Carlos Costa.

Por exemplo, o ex-governador optou por “responder com a expressão ‘Surprise!’ sobre uma inspeção que não era do conhecimento de nenhum dos sujeitos processuais”, deixando “no ar a afirmação sem a densificar, tal como sucedeu noutras situações, em que sistematicamente invocou ‘segredo bancário’, mesmo quando as informações que lhe estavam a ser questionadas não estavam evidentemente cobertas por esse ‘segredo bancário’”.

Responder a uma juíza num caso destes com a expressão “Surprise!” é confrangedor. Estamos a falar da dignidade do cargo de um governador, e não a de um adolescente que está na escola a mascar pastilha elástica e a ser admoestado pela professora.

Esta, aliás, não é a primeira vez que governador invoca o “segredo bancário” para esconder situações que não lhe dão jeito. Basta recordar o famoso relatório Costa Pinto e da Boston Consulting Group que fez uma avaliação muito crítica à forma como o BdP atuou no caso BES e que até hoje está fechado numa gaveta a apanhar pó na Rua do Comércio.

O atual governador Mário Centeno já mostrou vontade e já deu indicações de querer tornar público esse documento assim que tiver ‘ok’ do Tribunal. É uma decisão importante no sentido de higienizar a instituição e de colocar um cordão sanitário à volta dos dois mandatos de Carlos Costa, os piores da história do Banco de Portugal.

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