A regulação do trabalho nas plataformas digitais é urgente e tem de ser feita não a nível nacional, mas internacional. O apelo é feito pelo diretor-geral da OIT, em entrevista ao ECO.
A pandemia fez tremer o mundo do trabalho, tendo afetado particularmente os trabalhadores que, mesmo antes da crise sanitária, já estavam em desvantagem. Quem o diz é o diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que, em entrevista ao ECO, adianta que hoje a sua maior preocupação sobre o futuro do mercado laboral é a sua polarização, a par do agravamento da desigualdade e das tensões social.
Por ocasião da Cimeira Social do Porto, Guy Ryder esteve em Portugal e à conversa com o ECO, sublinhando que a flexibilidade — identificada pelos especialistas como uma das tendências dos próximos anos — é uma “palavra ambígua”, já que nela tanto podem caber situações positivas, como o trabalho nas plataformas digitais, ao qual falta regulação.
Hoje há uma “cacofonia” no que respeita a esses trabalhadores, diz o líder da OIT, apelando, por isso, a que se avance na criação de normas. Esse trabalho, diz Ryder, deve ser feito, contudo, não a nível nacional, mas internacional.
Sobre a crise pandémica, o responsável mostra-se preocupado com a recuperação desigual dos países e dos seus mercados de trabalho e salienta que o último ano deixou clara uma lição: é preciso prioritizar o reforço dos níveis mínimos de rendimentos e proteção social.
Qual é hoje a sua maior preocupação em relação ao futuro, a curto prazo, do mercado de trabalho?
Estamos ainda na maior crise global do mercado de trabalho dos últimos 100 anos. Tem sido um processo dramático. Tenho esperança de que estejamos a sair dessa crise, mas [já] deixou enormes danos. Estimamos que em 2020 o mundo tenha perdido o equivalente a 255 milhões de empregos. O que é particularmente preocupante é que o impacto tem sido particularmente acentuado nas pessoas que já estavam numa má situação, em desvantagem: mulheres, jovens, migrantes, trabalhadores informais.
Portanto, a minha preocupação é que esta crise tenha mostrado os níveis de desigualdade que existem nas nossas sociedades — as pessoas que estavam em dificuldades estão hoje em dificuldades ainda maiores — e a probabilidade é que, à medida que recuperamos da crise, essas desigualdades continuem a crescer. Por isso, a minha maior preocupação é com a polarização dos mercados de trabalho, mais desigualdade, mais tensão social.
A flexibilidade é uma palavra muito ambígua nos mercados de trabalho. A flexibilidade precisa de ser acordada, as pessoas têm que ter escolha.
Os especialistas acreditam que a flexibilidade será uma das grandes tendências do mercado de trabalho, nos próximos anos. É possível que tal resulte em novas formas de exploração dos trabalhadores?
A flexibilidade é uma palavra muito ambígua nos mercados de trabalho. Se puder escolher como trabalhar de modo flexível; Se puder escolher se quero trabalhar hoje em casa, a [flexibilidade] é muito boa. Mas se lhe disserem que deve trabalhar aqui, amanhã e de uma certa maneira, então a [flexibilidade] já não é tão boa. Portanto, a flexibilidade precisa de ser flexibilidade acordada: as pessoas têm que ter escolha. Acho que há uma boa possibilidade, por causa da digitalização do trabalho e da passagem para o trabalho remoto, de termos mais flexibilidade e isso terá de ser algo bom para o ambiente e para a conciliação entre a vida profissional e pessoal.
Mas deixe-me dar-lhe um comentário negativo sobre a crise. As pessoas passaram, em grande escala, ao trabalho remoto e poderíamos imaginar que isso seria positivo para as trabalhadoras, porque lhes daria a oportunidade de participarem mais nos mercados de trabalho, mas todos os indícios mostram, infelizmente, que as mulheres foram consideravelmente prejudicadas, porque tiveram de combinar o trabalho profissional em casa com o cuidado das crianças com as responsabilidades privadas. Portanto, as mulheres foram, na verdade, prejudicadas por algo que as devia ter ajudado. A minha conclusão é que nada será automático, temos de gerir as formas flexíveis de trabalho e temos de nos assegurar que operam de modo a beneficiar as pessoas e não a colocar mais stress sobre essas pessoas.
Segundo a OIT, milhões de trabalhadores passaram a trabalhar remotamente por força da pandemia. Este é o momento adequado para começar a pensar em formas de regular melhor o teletrabalho ou seria preferível esperar a pandemia terminar antes de mudar a lei?
Temos de pensar agora. Temos de ser cuidadosos. Quando falamos de trabalhar remotamente, há vários significados. Por exemplo, os meus colegas trabalham a partir de casa, mas têm o mesmo salário, os mesmos direitos. [A diferença] é que estão fisicamente em casa. Ainda têm um empregador como antes. Nada mudou, exceto termos de ser cuidadosos com a saúde e a segurança. É uma história diferente se as pessoas estiverem a trabalhar em casa em plataformas digitais, como gig workers, sem um empregador. Há pouquíssima regulação hoje relativamente a esse trabalho.
Acabámos de lançar um relatório sobre o trabalho em plataformas digitais que argumenta fortemente — e estou contente que está na agenda da União Europeia — que precisamos de regular estas formas de trabalho e devemos fazê-lo agora. As realidades acontecem sempre mais rapidamente do que a nossa capacidade de reagir, temos que recuperar o atraso.
Esta situação [dos trabalhadores das plataformas digitais] tem que ser clarificada tanto através de ação a nível europeu como a nível internacional.
Existe atualmente muita discussão sobre como regular a chamada “economia Uber” e o trabalho feito através de plataformas digitais. Considera que estes trabalhadores deveriam ser reconhecidos como um novo tipo de trabalhador? Ou devem ser reconhecidos como trabalhadores das plataformas para as quais trabalham?
Estes são os chamados gig workers e como sabe há muito debate acerca desta questão. O que está a acontecer hoje é que estão a ser tomadas decisões nos tribunais. É um estafeta da Uber um trabalhador [dependente] ou não? Um tribunal diz que sim, outro diz que não. O que temos hoje é uma cacofonia, não há uniformidade, nem clareza, e isso não bom.
Esta situação tem que ser clarificada tanto através de ação a nível europeu como a nível internacional. Qual é o estatuto de emprego destas pessoas? Não lhe vou dizer qual é a resposta certa, mas o que é claro é que a atual situação de falta de proteção é insustentável, prejudicial e pode levar a situações de abuso. Não é uma questão que possa ser resolvida a nível nacional por cada país. Por exemplo, se uma empresa em Londres contrata um trabalhador em Bombaim para fazer um relatório ou desenvolvimento de software, que lei de trabalho será aplicável, que salário lhe pagará, qual a proteção social que terá? Não temos resposta. Por isso necessitamos de uma resposta internacional a estas perguntas, mas, para já, não existe.
Com que rapidez pensa que o mercado de trabalho irá recuperar da crise pandémica? O desemprego irá agravar-se quando todas as medidas extraordinárias forem levantadas?
As estimativas do FMI são que a economia global irá crescer 6% este ano. Se isso for verdade, é muito preocupante, uma vez que o mercado laboral não conseguirá ainda recuperar os valores que tinha em 2019. Ainda haverá um défice de emprego.
O que é ainda mais preocupante é que os países mais desenvolvidos vão recuperar muito mais rapidamente que os países em vias de desenvolvimento, que terão uma recuperação mais lenta e isto dará lugar a ainda mais desigualdade. É necessário que a comunidade internacional encontre os melhores meios para permitir uma recuperação mais uniforme e, claro, que ainda temos que resolver a pandemia.
pandemia nos ensinou uma lição: Temos de dar prioridade a certificarmo-nos que esses níveis mínimos [salariais] são aumentados.
Vários Governos europeus — incluindo o português — decidiram aumentar o salário mínimo, em plena pandemia. Para a OIT, esta foi a opção mais correta ou tal atualização das retribuições mínimas garantidas pode levar a uma onda de falências?
Sei que o assunto esteve em discussão em Portugal e que houve aumento do salário mínimo. No passado, envolvemo-nos nestas discussões, mas não vou fazer comentários diretos acerca do valor do salário mínimo em Portugal. O que é claro para mim é que o debate europeu em torno dos salários mínimos adequados é muito importante e acho que esta pandemia mostrou-nos que as pessoas não têm garantidos níveis adequados de salários mínimos ou acesso à proteção social. Existe um nível extremo de vulnerabilidade.
Acredito que esta pandemia nos ensinou uma lição: Temos de dar prioridade a certificarmo-nos que esses níveis mínimos são aumentados. Por isso, estou muito satisfeito que no plano de ação do Pilar Europeu [dos Direitos Sociais] há uma atenção muito direcionada à pobreza, exclusão social e proteção das crianças, o que nos traz a certeza que estes assuntos serão tratados.
Os detalhes acerca dos valores do salário mínimo e do impacto que possam eventualmente ter na viabilidade das empresas… Na maioria dos casos sabemos que não há uma relação assim tão direta entre o aumento do salário mínimo e os resultamos da empresa. Na Alemanha, que teve a mesma discussão, [a atualização do] salário mínimo não resultou em danos significativos nos negócios.
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Regulação do trabalho nas plataformas digitais “não pode ser resolvida a nível nacional”, diz diretor-geral da OIT
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