“Não há quase empresas portuguesas nos Óscares da Sustentabilidade”

Pai dos chamados "Óscares da Sustentabilidade", Miguel Martins esteve 20 anos no Banco Mundial e no dia 29 de junho estará presente na primeira edição do ESG Portugal Forum do ECO e do Capital Verde.

No início do século, já lá vão 20 anos, Miguel Martins era um homem da banca, um ‘hardcore investment officer’, quando de repente percebeu que “queria fazer algo diferente” no setor financeiro. “A primeira vez que eu me comecei a apaixonar pela sustentabilidade ainda nem sequer se dava nome a esta temática”, lembra o agora Sustainable Investments Partner da Grosvenor Investments, que passou as duas últimas décadas no Banco Mundial, em Washington.

Na altura, a sua opção de carreira num minúsculo nicho de mercado não foi bem vista: “Mas o que é que aconteceu contigo? Agora vais começar a abraçar árvores?”, chegou a ouvir dos colegas de profissão, que estavam longe de adivinhar que os investimentos “verdes” se tornariam anos mais tarde na regra, em vez da exceção.

Miguel Martins criou os Transformational Business Awards, dos quais ainda é júri, e é hoje um especialista internacional em sustentabilidade financeira. No dia 29 de junho estará presente na primeira edição do ESG Portugal Forum do ECO e do Capital Verde, para debater “O estado do reporte ESG nas empresas portuguesas” no primeiro painel do evento.

“Para mim, quando se fala de sustentabilidade é também falar sobre paixões e emoções. A sustentabilidade está a trazer essa vertente da inteligência emocional para dentro das empresas, além da inteligência intelectual, o que é muito importante”, disse em entrevista ao Capital Verde.

Quando começou a lidar com os temas da sustentabilidade no setor financeiro, estes estavam muito longe de ser uma tendência?

A primeira vez que me apaixonei pela sustentabilidade ainda nem sequer se dava nome a esta temática. Comecei o meu percurso profissional em Portugal, no Banco Português do Atlântico, depois mudei-me para o BCP e fui convidado para ir para Moçambique fundar o BIM – Banco Internacional de Moçambique, que agora é o Millenium BIM. Isto em 1995. Moçambique era o país mais pobre do mundo. Na altura não se falava tanto em termos ambientais, mas em termos sociais. E foi aí que eu comecei a sentir que gostaria de trazer isso para o meu trabalho. Em 2000 mudei-me para o International Finance Corporation (IFC), a sucursal do Banco Mundial que trabalha exclusivamente para o setor privado, e a minha primeira função foi aumentar o portfólio de projetos nos PALOP. Aí surgiu uma linha de financiamento verde que ninguém sabia muito bem o que aquilo era, com o Banca Real no Brasil. Eu aceitei logo o projeto porque queria fazer algo diferente, queria começar a trabalhar noutras geografias que não só a África subsariana. Virou um projeto de referência no IFC porque foi o primeiro 100% focado na área da sustentabilidade: começou muito pequenino, com 25 milhões de dólares e rapidamente expandiu-se para 150 milhões de dólares, passando a incluir não só a área ambiental, mas também a área social e de governance. Então, este projeto-projeto, que era suposto ser um só um teste, levou à criação de um grupo exclusivamente para sustentabilidade no setor financeiro e eu nunca mais quis sair desta área, desde 2001.

Mas, nessa altura, a sustentabilidade era algo completamente de nicho?

O IFC já tinha uma série de políticas na área ambiental e social. Mas existiam para setores de atividade que tinham uma pegada ecológica muito pesada, como por exemplo o setor mineiro. O que não havia era uma política concertada que tratasse destes assuntos e, muito menos, na área financeira. Quando eu fui convidado e aceitei este projeto, os meus colegas tiveram dois tipos de reações e nenhuma delas foi positiva. Por um lado, havia aqueles que me diziam: “Mas o que é que aconteceu contigo? Agora vais começar a abraçar árvores?”. E houve outros que, claramente, me disseram: “Olha, Miguel, é uma proposta arriscada porque tu vais deixar de ser considerado um hardcore investment officer. Mas eu nunca pensei duas vezes porque logo desde o início o projeto foi fascinante. Era suposto focar-se só no E do ESG [questões ambientais], mas depois expandiu-se para a área de corporate governance porque criámos, a pedido do banco, um projeto ligado a empresas familiares. E depois expandiu-se também para a área social, onde começamos a tratar temas como a inclusão digital e a literacia financeira. O Banco Real tornou-se referência a nível internacional na área da sustentabilidade no mercado financeiro.

O que mais resultou desse primeiro projeto em que esteve envolvido?

O IFC do Banco Mundial veio a criar os performance standards, que depois foram utilizados como base para a criação dos Equator Principles. Para lhes dar mais visibilidade, criei um projeto muito interessante (no qual continuo envolvido) que foi uma parceria com o Financial Times: os Sustainable Banking Awards. A ideia era não só dar visibilidade aos Equator Principles, mas também premiar os bancos que estavam, claramente, à frente na área da sustentabilidade. Nós criamos os prémios em 2005, e depois expandiram-se da área da banca para a área do investimento e, hoje em dia são os Transformational Business Awards, focados em projetos concretos de todos os setores de atividade. Chamam-lhes Óscares da Sustentabilidade mas não vemos por lá muitas empresas nem muitos projetos portugueses. Não vemos quase nenhuns.

A partir de que momento a sustentabilidade deixou de ser irrelevante para os bancos, na forma como investem, para começar a ter importância?

Em 2000, falava-se muito pouco e havia uma diferença muito grande entre o setor financeiro e os outros setores produtivos, que já estavam muito mais a par de questões de sustentabilidade, mas de uma forma reativa, quando algo corria mal ou por questões de reputação para a empresa. Já o setor financeiro tinha muito aquela postura de “nós só emprestamos o dinheiro”. Hoje o setor financeiro está muito mais envolvido, percebe que tem muito poder na forma como aloca os fundos que tem disponíveis. E existem, inclusive, instituições financeiras que têm departamentos na área de assistência técnica, que trabalham com estas empresas, a quem eles entregam dinheiro para ajudá-los a trabalhar nestes temas. Em 20 anos estamos num mundo completamente diferente. Mas não foi uma evolução contínua, foi uma evolução exponencial.

Agora, temos países que durante e após a Covid-19 estão a dizer que a recuperação vai ser feita com base em modelos económicos mais holísticos. Temos a Holanda a dizer que vai começar a olhar para o capital natural e para o capital social. A Alemanha também está a fazer as suas experiências. Eu gostaria que Portugal também entrasse por aí, porque estes tipos de experiências funcionam muito melhor em países de média dimensão, como o nosso.

Miguel Martins, Grosvenor Investments

Houve algum projeto de sustentabilidade que o tenha marcado mais?

Um dos projetos mais fascinantes em que trabalhei foi na cadeia de valor do cacau. Fiz vários projetos nesta área na América Latina, no Sudoeste Asiático, mas foi em África que me tocou mais. O objetivo deste projeto eram os pequenos agricultores da Costa do Marfim que produz, aproximadamente, 65% dos grãos de cacau do mundo inteiro. Houve um trabalho muito grande a nível ambiental de melhores práticas agrícolas, de aplicação de adubos, de pesticidas, de tratamento das águas, mas também em termos de práticas financeiras. Na área social foi particularmente grave porque apercebemo-nos que havia trabalho infantil forçado e casos de tráfico de crianças. Teve de ser resolvido porque o projeto incluía o envolvimento de instituições financeiras para fazerem o financiamento aos pequenos agricultores. E isto foi interessante porque quando se fala em sustentabilidade e setor financeiro, tudo tem muito a ver com confiança. Isto para dizer que hoje em dia o novo normal é que a sustentabilidade tem que estar no centro de qualquer estratégia corporativa. E isto é um desenvolvimento fascinante.

Que importância dá a tomadas de posição do setor financeiro em relação à sustentabilidade, como por exemplo as duas últimas cartas do CEO da BlackRock?

No início de 2020, a carta escrita por Larry Fink fez realmente estrondo. As duas são importantes, mas a primeira foi, efetivamente, a grande revolução. Ter o CEO de uma empresa com o peso que a BlackRock tem no setor financeiro a afirmar que, devido a mudanças climáticas, nós estamos no limiar de uma estruturação fundamental do mundo financeiro, isto tem um impacto brutal. O mundo vai ouvir o que ele está a dizer e reagir a isto. A carta de 2021 reforça a mensagem e torna-a mais abrangente. Fala em mudanças tectónicas que vão, claramente, favorecer as empresas focadas em sustentabilidade. A mensagem é um pouco a mesma, mas mais forte.

A sustentabilidade já não é um ‘nice to have’, nem um ‘must have’. Agora, as empresas que apostarem nisto vão ter mais lucros?

Exatamente. E se o Larry Fink diz “eu decidi que esta é a nossa postura”, essa será também a postura da BlackRock quando faz alocações de capital nos seus investimentos. Outra coisa que ele diz é que este processo vai acontecer muito mais rápido do que se esperava inicialmente, por causa da Covid-19. Então, na realidade, o que ele está a dizer é que a sustentabilidade é o novo standard. E se as empresas não tiverem um plano ou um programa ou uma estratégia de sustentabilidade, claramente, não estão a satisfazer este standard.

No que consiste este novo standard?

Um dos temas que para mim é muito querido tem a ver com o Produto Interno Bruto. O PIB foi uma medida que foi criada para a primeira revolução industrial, nós estamos na quarta e continuamos a medir os desempenhos das economias com base numa medida que está completamente desajustada. Porque incluímos o capital económico e o financeiro, mas o senhor que definiu o PIB disse: “mede o desempenho económico e financeiro, mede o setor produtivo, mas aquilo que não se podem esquecer é que o PIB nunca vai medir o bem-estar da vossa população”. Agora, temos países que durante e após a Covid-19 estão a dizer que a recuperação vai ser feita com base em modelos económicos mais holísticos. Temos a Holanda a dizer que vai começar a olhar para o capital natural e para o capital social. A Alemanha também está a fazer as suas experiências. Eu gostaria que Portugal também entrasse por aí, porque estes tipos de experiências funcionam muito melhor em países de média dimensão, como o nosso.

A recuperação económica pós-pandemia tem mesmo de ser “verde.” Mas como é que, de repente, se põem questões sociais e sustentabilidade no PIB?

O PIB é bom para medir o capital económico e financeiro. Nós temos é que torná-lo mais abrangente. Por exemplo, no setor privado as empresas que estão a abraçar a sustentabilidade já falam de medir as vertentes ou variáveis não financeiras, outras chamam-lhes de externalidades. Um dos projetos em que eu estive envolvido, na altura em que se estava a preparar a conferência do Rio+2020, no Rio de Janeiro, foi medir o valor económico e financeiro dos ecossistemas dos mangais na Tailândia. Apurámos 1000 dólares por hectare, mas contabilizando o capital natural e humano já estávamos afinal a falar de um custo de 23 mil dólares. Isto porque de cada vez que se destrói uma floresta de mangal deixa de existir proteção contra as enchentes, por exemplo, a biodiversidade de toda aquela região altera-se, os peixes mudam-se para outro lugar, os pescadores vão-se embora, as aldeias ficam completamente abandonadas.

A decisão de regressar a Portugal prendeu-se com o facto de não ver empresas nacionais nos Óscares da Sustentabilidade?

Falando com os meus contactos e com os meus amigos aqui em Portugal, todos me diziam que havia muito para fazer em Portugal. Esse é o tipo de desafio que eu gosto. Antes de mais, a sustentabilidade é criação de valor. Mas normalmente a entrada das empresas na sustentabilidade é feita pela gestão de riscos operacionais. Ou seja, não estão concentradas em criar valor, mas apenas em reduzir potenciais problemas que venham a existir no futuro. É quando se olha para a área das oportunidades que fica uma mensagem muito mais aliciante para as empresas. Foi por isso que o Brasil durante muito tempo esteve na vanguarda internacional na área de sustentabilidade, por trabalhar bem a área de oportunidades. Ao nível das soluções, temos de olhar para as métricas não financeiras e para a liderança e inteligência emocional. As empresas têm que se tornar bons cidadãos corporativos. Sei que quase todas as grandes faculdades em Portugal já estão a trabalhar o tema da liderança responsável porque é algo que, cada vez mais, vai ser necessário daqui para a frente.

Os setores em que nos estamos a focar são a agricultura, a indústria, as energias renováveis, a economia azul, a saúde e as ciências da vida. Portugal está a começar a dar cartas na área da economia azul. Sempre foi um país virado para o mar e, efetivamente, há muito que está a ser feito nesta área.

Miguel Martins, Grosvenor Investments

Como é que surgiu este novo projeto da Grosvenor House of Investments no seu percurso profissional?

Quando eu falei pela primeira vez com o Duarte Costa, que é o nosso Managing Partner, aquilo que ele me disse foi: “Estamos a criar um fundo que vai ser o primeiro de vários, que é o Sustainable Inovation Fund”. Gostei por ter duas palavras que são muito queridas para mim — sustentabilidade e inovação –, porque uma está sempre de mão dada com a outra. Muitas das soluções que nós temos para a sustentabilidade estão ligadas com tecnologia, então tem que se trabalhar também a área de inovação. E aquilo que ele me disse era que queria criar um fundo que se dedicasse, exclusivamente, a investimentos sustentáveis e inovadores, com uma clara capacidade de ter uma forte liderança nos setores onde se vão implementar e algum poder disruptivo. Os setores em que nos estamos a focar são a agricultura, a indústria, as energias renováveis, a economia azul, a saúde e as ciências da vida.

Em qual destes setores Portugal se destaca?

Portugal está a começar a dar cartas na área da economia azul. Sempre foi um país virado para o mar e, efetivamente, há muito que está a ser feito nesta área. O Sustainable Innovation Fund é um fundo de 50 milhões de euros, a sete anos. Portanto, não faz sentido falar de sustentabilidade a curto prazo, então isto está traduzido num ciclo de investimento que nós temos definidos para o fundo. Um dos critérios de seleção que nós temos para o fundo é os projetos terem uma certificação da ANI – Agência Nacional de Inovação. Mas se os projetos não tiverem essa certificação, nós trabalhamos com eles a fim de a conseguirem. Nós estamos interessados em projetos que, potencialmente, tenham alinhamento com os critérios ESG. Se sentirmos que o potencial existe, a nossa proposta é: “Vamos levar este projeto ao nosso comité de investimento, mas nós temos que trabalhar convosco em definir melhor estas áreas”.

Portanto, se virem potencial não dizem logo que não e ajudam?

Exato. Nós queremos ter esta postura construtiva e dizer: “Vamos trabalhar a sustentabilidade”. A definição mais bonita que eu tive de sustentabilidade foi na Costa do Marfim, quando perguntava aos pequenos agricultores se eles sabiam o que era e houve uma senhora, que era a chefe da cooperativa, que me disse: “Sustentabilidade, para mim, é como abraçar um embondeiro. A gente não consegue abraçá-lo sozinho. Nós temos que o abraçar com todas as outras pessoas que a gente conhece”. É uma forma muito simples de falar de stakeholder engagement e a nossa postura com os nossos potenciais investimentos. Nós não fechamos a porta. Agora, se não virmos sustentabilidade, dizemos que não. E o projeto até pode ser muito rentável. Mas já se nota alguma diferença nos projetos que vêm destas gerações mais novas. Porque esse conhecimento e esse comprometimento estão lá.

É fácil encontrar em Portugal estes projetos sustentáveis e financeiramente rentáveis?

Sim. Quando eu me mudei para Portugal era-me relembrado várias vezes: “Miguel, não te esqueças que nós somos pequeninos”. Somos um país de pequena dimensão, o que tem vantagens, mas aquilo que me fascinou em Portugal é que existe uma cultura de empreendedorismo muito forte. E nós temos visto, não só empreendedores, mas também soluções propostas por eles, que são projetos incríveis. Outra coisa que também temos visto é que também existe um ecossistema de projetos e soluções desenvolvidas em Portugal, mas por empreendedores estrangeiros, que adotaram Portugal como o seu país. Então, existe esta amálgama muito interessante, que eu acho que torna Portugal um país muito interessante para trabalhar esta área.

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